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    A preocupação me corroía por dentro, como se cada batida do meu coração batesse junto com o receio.
    O cérebro… aquele era um território sagrado, delicado demais para qualquer intervenção precipitada. Um erro ali não se corrigia, não facilmente.

    Fechei os olhos e mergulhei fundo nas memórias de Mahteal, remexendo no que ele sabia sobre anatomia humana, sobre infecções raras, sobre maneiras de sondar e manipular áreas tão frágeis sem destruí-las.

    As respostas que encontrei eram poucas e insatisfatórias, ele nunca fora um especialista nesse campo.

    Se ao menos Naksa estivesse ali… ela sim teria mãos firmes e o conhecimento exato para lidar com isso.
     

    Meus amigos não demoraram a perceber a mudança no meu semblante. O silêncio deles pesava. Niana foi a primeira a se aproximar, seguida de Pandora, Marreta e André, como se a gravidade da minha expressão os atraísse.
     

    — Que foi? — perguntou o grandalhão, com aquela voz grave.
     

    — Descobri algo… incômodo. Talvez perigoso — respondi, medindo as palavras. — Senta aqui na minha frente. Quero confirmar uma coisa.
     

    Hesitante, Marreta obedeceu, acomodando-se no mesmo toco onde, horas antes, os homens de Calmon tinham se sentado.
     

    — Relaxa — pedi, notando como os ombros dele estavam duros, quase erguidos até o pescoço.
     

    — Pode ser um pouco dolorido e desconfortável — avisei, já posicionando minha atenção no fluxo de mana dele.
     

    Ele apenas assentiu. Era um gladiador; para ele, dor era tão familiar quanto o cheiro do sangue na arena.
     

    Agora que eu sabia exatamente o que procurar, o processo foi rápido, mas não indolor. Ele soltou alguns gemidos contidos, enquanto os outros, que já se aproximavam, observavam em silêncio, atentos. O ar ao nosso redor parecia mais frio, e até o crepitar da fogueira ao lado perdeu o ritmo. Marreta resistiu até o fim sem reclamar.
     

    — Pronto — anunciei, mesmo sabendo que as palavras não carregavam boas notícias.
     

    O que encontrei nele era idêntico ao que havia detectado em mim: um caroço minúsculo, quase imperceptível, enraizado no cérebro, e gavinhas finas, pacientes, enroladas no coração.
     

    Examinei Pandora e Cass na sequência, e o resultado foi o mesmo. Já não era hipótese, era padrão.
     

    Reuni meus homens e amigos num círculo mais afastado, longe dos ouvidos curiosos. Mesmo assim, percebi os guerreiros da Casa Argos nos observando com atenção, como se pressentissem a gravidade do que viria.
     

    — Temos um problema — comecei, e minha voz saiu mais áspera do que eu pretendia. — Os esporos estão mais fundos do que eu imaginava.
     

    — Quão fundo? — perguntou Niana, com os olhos fixos em mim.
     

    — No cérebro e no coração — confirmei. — São áreas críticas. Um único erro e posso causar danos irreversíveis.
     

    O silêncio que se seguiu pesou como pedra.
     

    — Antes de tentar qualquer coisa, preciso ensinar magia de cura e reparação para Gus e Milena — continuei. — Vou experimentar primeiro em mim.
     

    — Prefiro ficar com sequelas para sempre do que acabar como aquelas pessoas do acampamento que você incendiou — disse Alissande, séria, sem hesitar. — Aquilo não é vida.
     

    Um a um, os outros assentiram, alguns com mais firmeza, outros com o olhar carregado de medo, mas todos concordando.
     

    Dei um sorriso breve, tenso, quase mais para mim do que para eles. Eu sabia o que precisava ser feito.
    Só não fazia ideia do preço que teríamos que pagar.
     

    Ensinar magia de cura a gus e Milena seria demorado e difícil. Nem mesmo Claire que era talentosa, e vivia comigo ainda não tinha aprendido. Quanto tempo levaria para Gus ou Milena aprender era incerto.

    — tudo bem… — falei por fim. Teria que fazer com meus amigos primeiro.

    Chamei gus e Milena para me observar. Caso eu usasse magia de cura, queria que eles estivessem vendo.

    — Fiquem bem atentos às runas, suas variações e ao fluxo de mana — orientei.
     

    Alissande já estava na minha frente. Seu olhos encontraram os meus em um aceite silencioso.
     

    Primeiro, analisei a situação dela com calma. Era como a minha, idêntica até nos detalhes mais incômodos. E então, sem mais tempo a perder, passei à extração.
     

    Era tentativa e erro… mas naquele momento não havia espaço para erros. Cada movimento meu precisava ser perfeito. Fiquei alguns segundos parado, decidindo por onde começar. Coração ou cérebro? O dilema me queimava por dentro. Acabei optando pelo coração. Chame de instinto, mas aquelas gavinhas enroscadas me pareciam mais do que um sintoma: eram um sistema de defesa do esporo. E para desmontar qualquer fortaleza, primeiro é preciso derrubar os muros.
     

    Envolvi o coração dela com uma camada firme de mana, respirando fundo. Fechei os olhos, deixando que a energia me mostrasse o caminho. A sensação era como mergulhar num rio escuro, onde cada corrente revelava um fragmento oculto do corpo dela.
     

    Quando o campo ficou estável, comecei a envolver cada ramo daquelas gavinhas que se enraizavam ali. Elas se infiltravam pelas paredes do órgão, serpenteando como raízes famintas. Segui o traço de um fio quase invisível, tão fino e singelo que na exploração inicial eu sequer havia notado. Ele subia e sumia em artérias, reaparecendo em outras, como se brincasse de se esconder. Segui-o com paciência até perceber a verdade: o ponto no coração e o caroço no cérebro estavam ligados. Era um projeto perfeito, algo que havia evoluído especificamente para nos infectar e se manter.
     

    Continuei. O suor frio escorria pela minha testa, colando meu cabelo à pele, e já encharcava minhas roupas. Meu corpo inteiro estava tenso. Aquilo era muito mais delicado, e muito mais difícil, do que eu tinha previsto.
     

    Aos poucos, fui isolando o fio. Soltando-o, milímetro a milímetro, de cada estrutura que o prendia. Segui-o até chegar ao cérebro dela.
     

    O caroço ali dentro pulsava, quase como se tivesse vida própria, e vibrou assim que percebi sua presença. Era como se sentisse minhas ações. Um arrepio gelado percorreu minha espinha, e o estômago afundou como pedra em lago fundo. Não era só instinto, era um pressentimento macabro: se eu não me apressasse, poderia provocar algo irreversível.
     

    Com a máxima delicadeza que a pressa permitia, comecei a envolver o corpo estranho num segundo campo de mana. Ao fechar o círculo, senti a resistência dele, uma pressão constante, tentando se expandir, tentando abrir. Mas a barreira que criei o mantinha imóvel, preso.
     

    Finalmente, pude sorrir.
     

    Com um estalo de dedos, incendiei o espaço interno do campo.
     

    Alissande gemeu, arqueando o corpo.
     

    No mesmo instante, uma pontada brutal atravessou minha cabeça. O caroço no meu cérebro reagia. Não hesitei, mergulhei para dentro de mim, visualizando o ponto infectado, e o cerquei com mana antes que pudesse se abrir.
     

    Levantei os olhos, em pânico. Se tinha acontecido comigo, aconteceria com todos.
     

    E não tive tempo nem de gritar o aviso.
     

    Num único momento, todos que estavam à minha frente, e também onde os homens de Calmon repousavam, caíram no chão em espasmos violentos.

    O som dos corpos batendo contra a terra se misturou a gritos curtos e ofegantes. Os únicos de pé éramos eu, Alissande, Cris, e Marreta… que, embora ainda estivesse de pé, segurava a cabeça com as duas mãos e urrava como se algo estivesse tentando arrancar-lhe o cérebro por dentro.

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