Capítulo 214: Uma tarefa difícil e desesperada
Não havia o que fazer imediatamente com todos que caíram. Era impossível, mas eu tinha que fazer o meu melhor.
Usando os ensinamentos e a prática de Mahteal, dividi minha mente racional não em quatro como costumava fazer, mas em dezesseis. A dor veio como um trovão dentro da minha cabeça, invadindo meus sentidos e deixando cada respiração pesada. Era difícil até mesmo manter o esporo que estava em meu próprio cérebro sob controle, parecia que ele percebia minha distração.
Senti as gavinhas que enrolavam meu coração se contraírem e penetrarem mais fundo no músculo, como se tentassem se agarrar a mim. Consegui, em tempo recorde, envolver toda a criatura em um campo de mana e, num impulso quase instintivo, a incinerei, como havia feito com o esporo de Alissande.
Meus sentidos estavam espalhados em dezesseis direções ao mesmo tempo. Cada percepção era um fragmento vivo da minha consciência. Usei uma das mentes para cada um dos meus amigos que caíra ali, no chão, imóveis ou se debatendo. Cris parecia preocupado, mas intacto. Alissande estava de pé, embora com sangue escorrendo pelo nariz, consequência direta de eu ter destruído o esporo que a consumia. Nela, apliquei uma magia de cura simples, apenas para estabilizar e evitar complicações maiores. Depois haveria tempo para um tratamento completo.
Era uma corrida contra o tempo. Cada segundo, os esporos dentro deles cresciam, avançando por áreas que eu não queria nem imaginar. Marreta permanecia em pé, mas seus urros reverberavam no ambiente ao nosso redor. Assustador. Era a resistência dos orcs que o mantinha consciente, mas não ileso.
Fui envolvendo e isolando um a um os corpos estranhos que se alojavam nos cérebros e corações de meus companheiros. Quando o último estava protegido, incinerei todos ao mesmo tempo. O ar pareceu ficar mais pesado. Sem dar chance ao caos, comecei as magias de cura, simples, rápidas, mas suficientes para impedir sangramentos e conter os danos mais imediatos.
Quando terminei com Marreta, ele relaxou os músculos e caiu como um saco de pedras. Parecia a mim que suas forças de resistência finalmente se esgotaram.
Um grunhido escapou da minha garganta. O sol de mana queimava com fúria no meu peito. Eu estava gerando e consumindo energia numa velocidade absurda. A fumaça subia da minha pele. A pressão nas têmporas latejava como golpes de martelo. Manipular tantas runas simultaneamente tinha um preço, e ele vinha me cobrando em cada fibra do meu corpo. Ainda assim, não havia espaço para hesitação. Os homens de Calmon ainda precisavam de mim, inclusive ele próprio, caído adiante, convulsionando.
Dei um passo na direção deles e o gosto metálico do sangue inundou minha boca antes de eu perceber que havia vomitado um pouco. Alissande e Cris, os únicos que permaneciam despertos ao meu lado, me sustentaram pelos ombros.
— Me ajudem a chegar até eles — murmurei, apontando para onde eles todos jaziam caídos.
Cris praticamente me ergueu no colo e me posicionou no meio deles.
Minha mente dividida retomou a tarefa, e para mim aqueles minutos se arrastaram como se a eternidade tivesse decidido se instalar ali. Quando terminei de queimar os esporos e estabilizar todos com magias simples de cura, minhas pernas vacilaram.
O sangue escorria dos meus ouvidos e nariz. Sentia o rosto pálido, a pele quente, o corpo fervendo como se estivesse preso dentro de uma fornalha. Desativei as mentes extras e quase desabei junto. Não podia me permitir parar. Eu era a última barreira entre nós e o que quer que estivesse por vir.
Não percebi que estava caindo até que Cris e Alissande se colocaram a meu lado para me segurar.
— Não posso cair… sou a última linha de defesa — murmurei, com a voz fraca e os lábios manchados de vermelho.
— Estamos aqui, irmão — consolou-me Alisande. — Podemos ajudar.
Sorri para ela. Nunca a considerei uma irmã. Ter renascido como Lior tinha sido uma benção disfarçada.
Nem terminei de respirar fundo e uma explosão ecoou ao longe, no topo de um dos vulcões. Uma coluna de fogo subiu, iluminando de vermelho e laranja as nuvens negras que giravam sobre nossas cabeças. A terra tremeu sob meus pés. Senti no íntimo que algo lá dentro havia acordado, e não estava contente com o que eu havia feito.
— Droga… — sussurrei. Cris e Alissande trocaram um olhar preocupado. — Estou fraco. Não vou conseguir nos defender. Temos que sair daqui.
Eles me encararam, esperando instruções.
— Tragam todos aqui perto. Vou tentar uma coisa, talvez pra isso eu tenha forças restando.
Rapidamente, trouxeram todos os desacordados ao nosso redor. O chão continuava a tremer, agora mais forte. Sabia que havia urgência.
Sentei-me no chão, sentindo o frio áspero da terra atravessar o tecido das minhas roupas, e alcancei mentalmente a runa do campo de força que havia erguido no dia anterior. A estrutura estava lá, pulsando como um coração distante, sustentada pelo fluxo constante do mana ambiente. Reconheci as marcas de reforço que Gus e Milena haviam deixado mais cedo, linhas sutis, mas firmes, como cicatrizes luminosas na teia da magia. Com cuidado, comecei a remodelá-la. Reduzi seu raio até que a energia se recolhesse como uma maré que volta para o mar, e ajustei a base para seguir o contorno irregular do solo, encaixando-se como se fosse parte dele. Aos poucos, a barreira se fechou sob nós, um casulo translúcido que abafava o som e afastava o vento. Não podia me dar ao luxo de uma falha, uma brecha e estaríamos novamente à mercê dos esporos.
Fiz novas alterações, inserindo outra runa, levitação, e alimentei o sol em meu peito até sentir a mana ferver dentro de mim. O campo começou a se erguer lentamente, nos levando junto. Quando estávamos a cerca de cinco metros de altura, o chão sob o ponto onde havíamos estado rachou, e uma onda de raízes emergiu, afundando o solo.
Então vi. Do subterrâneo, como se a terra tivesse cuspido sua praga, surgiu uma horda de animais, humanos e criaturas distorcidas, todos cobertos de cracas e apêndices fúngicos. Urravam enquanto avançavam, empurrando-se uns aos outros numa massa compacta.
Gelei com aquela visão. Fiz o campo acelerar em direção do céu. Ao meu lado, Alissande e Cris observavam em silêncio, como se tentassem acreditar no que viam. Eu só queria encontrar algum lugar onde pudéssemos repousar, seguros.
Ainda teria que lidar com os feridos, com as sequelas do que os esporos haviam feito, e tomar uma decisão sobre o nosso próximo passo. Haviam muitas incertezas sobre a saúde de meus companheiros. Eles precisavam de cuidados imediatos, e eu estava acabado, pelo menos por algumas horas.
No fundo, minha mente repetia o mesmo pensamento: pegar nossas pedras de ancoragem e fugir talvez fosse a única escolha sensata.
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