Capítulo 217: Finalmente entendendo
Os esporos vieram lentamente em minha direção, como um enxame silencioso e paciente.
Os mais próximos logo se grudaram em minha pele e na roupa, pequenos pontos quase imperceptíveis a olho nu, mas que, através de meus sentidos expandidos, revelavam uma atividade inquieta. Não eram partículas passivas, como poeira suspensa no ar. Eram organismos ativos, insistentes, movendo-se como se seguissem uma lógica interna.
Procuravam fissuras, orifícios, qualquer entrada para dentro do meu corpo. Era assustador perceber que cada um deles parecia guiado por uma espécie de instinto de invasão.
A mana alterada corria pelo meu corpo, fria como um rio subterrâneo. Havia escolhido o elemento gelo inspirado no exemplo de Cris, na esperança de que meu corpo reagisse de forma semelhante. O que eu queria descobrir era se a mana seria capaz de atuar como uma defesa autônoma, repelindo ou ao menos enfraquecendo a infecção antes que ela se consolidasse.
Não demorou para que alguns dos esporos encontrassem passagem. Entraram pelas minhas narinas, deslizaram pela traqueia, alcançaram os pulmões e, de lá, infiltraram-se na corrente sanguínea. Acompanhei cada movimento com atenção quase obsessiva. Era como observar ladrões silenciosos explorando os corredores de uma fortaleza, testando portas e janelas em busca de fraquezas. Um deles, mais ousado ou simplesmente mais rápido, avançou até se instalar próximo ao meu cérebro.
Fiquei impressionado, e, ao mesmo tempo, alarmado, com a velocidade daquele processo. Em menos de dez minutos já estava, em teoria, infectado. Isso explicava por que tantas pessoas sucumbiam antes mesmo de perceber o que havia acontecido. Cheguei a conclusão que tivemos sorte.
Mantive a calma. Não podia me dar ao luxo de ceder ao pânico. Minha mente permanecia atenta, preparada para intervir no instante em que minha teoria sobre a mana alterada se mostrasse falha.
Então percebi algo inesperado. O esporo que havia alcançado o cérebro emitiu algum tipo de sinal, uma comunicação muda, porque os demais esporos espalhados pelo meu corpo simplesmente cessaram o movimento. Era como se tivessem recebido uma ordem. Além disso, notei que sua vitalidade diminuía; eles murchavam, como sementes privadas de qualquer água.
Continuei observando. Quando o esporo atravessou a barreira do sangue e se fixou no tecido cerebral, algo mudou. Ele deixou de vagar e passou a absorver mana. Minha mana. Não era apenas um invasor físico, era um parasita energético.
De súbito, compreendi o princípio da infecção. O fungo não possuía núcleo próprio, não tinha a capacidade de metabolizar mana sozinho. Ele dependia do hospedeiro como uma forja emprestada, um mecanismo de processamento. Cada pessoa infectada se tornava, na prática, um núcleo de mana vivo, uma extensão involuntária do parasita.
A lembrança das estátuas vivas no acampamento voltou à mente. Eles absorviam compulsivamente as pedras de mana escondidas no subterrâneo, como se fossem presas de fome insaciável. Agora tudo fazia sentido: não era desejo, era necessidade do fungo.
Um pensamento ousado surgiu. E se eu negasse ao esporo o acesso à mana? Essa resposta seria minha próxima investigação. Primeiro, os esporos.
O experimento enfim trouxe a minha resposta. O esporo em meu cérebro absorveu a mana gélida que circulava em mim… e congelou. Não precisei agir além disso; a reação ocorreu de maneira automática, natural. O inimigo se neutralizava sozinho, usando contra si a própria energia que roubava.
Era uma possibilidade promissora, embora limitada. Dessa forma, não servia para todos, não sem riscos.
Continuei testando, variando a natureza da mana. Fogo, água, terra, vento. Cada elemento provocava um efeito diferente. O fogo, embora eficaz em eliminar o esporo, deixava danos colaterais graves, queimando as delicadas regiões cerebrais. Já o gelo se mostrava estável, controlado, mantendo o invasor inerte sem comprometer as funções vitais.
Naquele instante, uma epifania me atingiu.
Se o movimento dos esporos cessava quando um deles se alojava no cérebro, talvez esse fosse o ponto-chave. Cris permanecera com o esporo congelado e imóvel, e durante todo o tempo em que tratei de todos, nenhum outro agente conseguiu avançar. Era como se a presença daquele fragmento neutralizado criasse um bloqueio natural contra novas infecções.
Isso mudava tudo.
Refiz o teste, concentrando-me em transmutar novamente a mana de gelo, e, para minha felicidade, a teoria confirmou-se. Enquanto o esporo permanecia congelado e inerte no cérebro, os demais que tentavam invadir simplesmente murchavam, incapazes de progredir.
O que antes parecia apenas desespero agora se transformava em algo que eu não sentia fazia muito tempo: esperança. Pela primeira vez desde o início daquela desgraça, havia a possibilidade real de termos encontrado uma forma de virar o jogo.
Voei de volta ao acampamento, varrendo com chamas todos os esporos que se aproximavam de mim, abrindo caminho até os nossos. Assim que pousei, chamei Cris. Precisava analisar de perto como a infecção reagiria nele.
Quando o trouxe para fora da redoma, os esporos não hesitaram. Vieram famintos, como um enxame invisível, e o invadiram quase de imediato. Mantive meus sentidos amplificados, monitorando cada detalhe de seu corpo e de sua mente. Funcionou. Uma vez que o fungo era atingido e congelado, a nova infecção não tinha como se firmar. Era como se eu tivesse, ainda que de maneira precária, criado um escudo interno contra aquilo.
Não podia parar por ali. Chamei então Marreta. Sua constituição era forte, resistente, e se algo desse errado ele teria mais chances de aguentar. Assim que o trouxe para fora, mais uma vez o ar se tornou hostil, carregado de inimigos invisíveis. Os esporos o atacaram, mas eu estava pronto. Diferente de Cris, Marreta não possuía a capacidade de manipular sua própria mana, e por isso cabia a mim agir no momento exato. Quando senti a invasão se firmando, transmutei sua mana com precisão, infundindo-a com o frio que havia aprendido a moldar.
Deu certo de novo. O fungo congelou, e permaneceu ali, inerte, como se tivesse sido posto em hibernação. Ainda assim, a dúvida me corroía: o que aconteceria se eu parasse de fornecer mana gelada? Será que ele despertaria, retomando o controle de dentro para fora? Esse era o último obstáculo.
Esperei. Minuto após minuto, atento a cada alteração em sua mente, cada pulso de energia que fluía por seu corpo. O tempo passou arrastado, e quando quase uma hora se completou, o fungo continuava preso em seu casulo de gelo, imóvel, silencioso. Meu coração disparou. Aquilo era mais do que uma vitória momentânea, era a chance que precisávamos. A chance de evitar infecções, de não sermos mais controlados mentalmente, de finalmente dar o troco naquela coisa que já havia ceifado tantos de nós.
Radiante, voltei para dentro do acampamento, tomando cuidado em purificar o ar ao redor, garantindo que nenhum esporo entrasse comigo.
Antes de meus pés tocarem o chão, percebi todos os olhos sobre mim. Não desperdicei o momento. Mantive-me suspenso por alguns segundos, flutuando, e deixei que a teatralidade falasse por si. Então, ergui a voz para todos ouvirem:
— Descobri uma maneira de evitarmos as infecções. Não estamos mais condenados a fugir. Agora podemos lutar. Podemos levar a luta até eles!
O silêncio foi imediato, pesado. Os olhares eram um misto de espanto e descrença, como se não ousassem acreditar de imediato. Mas, aos poucos, vi os sorrisos nascerem, tímidos no início, depois mais firmes, até se espalharem de rosto em rosto. Não precisavam dizer nada, aquele brilho nos olhos bastava. Todos queriam ir à forra.
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