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    De posse do conhecimento sobre o comportamento dos esporos e do efeito estabilizador da mana gélida, tomei a dianteira e trouxe cada uma das pessoas para fora do campo de força. Até mesmo aqueles que não sabiam empunhar armas, todos precisavam ser expostos ao mesmo processo. Não podíamos deixar ninguém vulnerável. A ideia de que algum esporo pudesse se desenvolver me deixava apreensivo. Se acontecesse enquanto estivéssemos lá fora, eles não sobreviveriam aqui, no acampamento.
     

    O trabalho consumiu não apenas toda a luz do dia, mas também um pedaço da noite que se insinuava com seu frio silencioso. Estranhamente, não senti o esgotamento devastador que me acompanhara nos dias anteriores; havia cansaço, sim, mas também uma firmeza nova, como se meu corpo estivesse se ajustando ao esforço. Para minha surpresa, não fiquei sozinho por muito tempo. Depois de observarem meu procedimento, Milena e Gus arriscaram-se a tentar manipular a natureza de sua própria mana. Suas primeiras tentativas foram vacilantes, cheias de tremores e hesitação, mas com o tempo conseguiram produzir, ainda que de modo instável, aquela energia gélida que neutralizava os esporos.
     

    Vi em seus olhos o temor de falharem, mas também a determinação de não se tornarem peso morto. Permiti que o processo de infecção corresse naturalmente em seus corpos, apenas observando, atento para intervir. Felizmente não precisei. Os esporos reagiram à mana de frio como previsto, retraindo-se e congelando-se em silêncio. Foi um alívio que arrancou de mim um suspiro longo e pesado.
     

    Quando finalmente terminei, voltei-me para Marreta. Ele havia sido o primeiro a receber minha ajuda, horas antes, e com uma mana que eu mesmo havia injetado. Acompanhei seu estado com inquietação: ele não tinha o controle necessário para manter o fluxo de mana fria constante. Meu temor era que, pouco a pouco, a semente incrustada em seu cérebro começasse a descongelar, despertando. A simples ideia fazia o ar ao redor pesar.
     

    Meus receios, no entanto, se provaram infundados. Por algum mecanismo além da minha compreensão, o invasor permanecia imóvel, preso em um cárcere de gelo invisível. Estava lá, mas inerte.
     

    Quando tudo terminou, a fome se impôs. Peixes recém-pescados e pedaços de carne foram assados no fogo improvisado. O aroma se espalhou, aquecendo o coração de todos. Fiz sinal para que se aproximassem da fogueira. Era hora de mais do que comida; precisávamos de um plano.
     

    À luz das chamas, vi algo que há dias não surgia nos rostos de meus companheiros: esperança. Os olhares, antes marcados pelo medo constante, agora brilhavam com uma centelha de vontade. Risadas ecoaram, trocadas sem receio, e Karel, como quem não aguentava guardar mais a alegria, entoou uma canção antiga de sua família. Sua voz, doce e surpreendentemente forte, calou por um instante até mesmo o crepitar das chamas. Era como se, por alguns minutos, fôssemos apenas pessoas reunidas numa noite tranquila, e não guerreiros em meio ao caos.
     

    Mas a realidade nos puxou de volta. Respirei fundo e me levantei.
     

    — Bem… — minha voz cortou a atmosfera leve. Olhei para Calmon, depois para cada um dos meus amigos, minhas irmãs, e por fim a fogueira. — A hora de esperar terminou. Precisamos decidir o que fazer.
     

    Um silêncio pesado caiu. O brilho alegre apagou-se em segundos, substituído por olhares duros. Todos sabiam que não tínhamos informações suficientes sobre a verdadeira extensão de nossos inimigos. O que enfrentamos até agora era apenas a superfície. Deduzia, com certo receio, que havia uma mente por trás da horda de criaturas, uma mente fria, calculista e muito mais perigosa do que simples instintos bestiais.
     

    — Temos que saber mais antes de engajar com o inimigo — disse Germano, a voz grave, carregada de cautela.
     

    Assenti. Não podíamos nos dar ao luxo de entrar em um combate sem rota de fuga. A lembrança da velocidade com que aquele túnel foi aberto para nos surpreender me assombrava. Era uma prova clara de que nosso inimigo tinha raízes no subterrâneo e poderia, se quisesse, nos engolir vivos sob toneladas de terra.
     

    — Sugiro montarmos uma equipe de ataque. Os mais fortes entre nós, para provocar uma reação — disse Pandora, sua expressão resoluta. — Assim poderemos medir o tamanho real da ameaça.
     

    — É uma boa ideia — André concordou quase de imediato, cruzando os braços.
     

    Olhei em volta e percebi os acenos de concordância. A proposta fazia sentido. Estava cansado de surpresas que quase nos custavam vidas.
     

    — Estamos todos de acordo? — perguntei, deixando minha voz firme. — Para essa primeira incursão, acho que o melhor é irmos eu, Niana e Pandora. Se algo sair do controle, eu posso voar, tirando junto, as duas de lá. Entre nós, não há guerreiros mais fortes. O restante deve ficar aqui até nossa volta.
     

    A aprovação foi unânime, mas não sem dor. Vi os rostos de Cass, Alissande, André, Marreta e Cris se contraírem, feridos em silêncio. Não se consideravam menos capazes que nós, e no fundo eu entendia. Mas a verdade era outra: eu jamais havia visto um guerreiro capaz de se comparar ao sol de mana que queimava dentro de Pandora. Nem mesmo meu pai, nem o Imperador, ambos pináculos de poder, poderiam rivalizar com aquela força bruta. Talvez Pandora ainda carecesse de experiência em batalha, mas em termos de energia… Depois de ter despertado seu sol, era de uma outra grandeza.
     

    Com aquilo decidido, deixei que todos aproveitassem o restante da noite. Em silêncio, me afastei da fogueira e me alcei aos céus. Precisava ter certeza. Iria fazer uma varredura, verificar se a caverna que havia surgido para nos capturar ainda permanecia ativa. A escuridão não era obstáculo. Meus sentidos, aguçados pela mana, abriam caminho através do véu noturno como se fosse pleno dia.
     

    Dessa vez, sem carregar uma redoma e tantas vidas sobre meus ombros, avancei rápido. O vento frio da noite parecia cortar meu rosto, lembrando-me de que agora estava sozinho. Em minutos, alcancei o local.
     

    A cicatriz no solo ainda escancarava sua garganta para as profundezas. Um rasgo irregular na terra, como se o mundo tivesse sido aberto à força para liberar algo que jamais deveria ter visto a luz. Na entrada, meia dúzia de criaturas infectadas se arrastava em silêncio.
     

    Eram como os corpos que vi no acampamento queimado: figuras humanas deformadas, cobertas por colônias de fungos que brotavam em cracas ásperas sobre a pele e nos orifícios. De suas órbitas vazias, dois talos fúngicos se erguiam para o céu, longos e pulsantes, como antenas grotescas que pareciam captar algo além da minha percepção.
     

    Aproximei-me, curioso. Queria testar seus limites. Pousei a uns quatro ou cinco metros deles.
     

    Nenhuma reação. Apenas aquele murmúrio de vento passando pela fenda e o cheiro acre de podridão úmida.
     

    Dei dois passos hesitantes em sua direção.
     

    Foi o bastante. As hastes começaram a se agitar, espalhando uma nuvem de esporos e vibrando com um som agudo que parecia atravessar meus ossos. Não era apenas barulho, era um chamado. Senti o solo estremecer, como se algo vivo se movesse nas profundezas. Então, das sombras da fenda, vultos começaram a se projetar, emergindo em marcha lenta, mas constante.
     

    Meu instinto rugiu dentro de mim, exigindo que atacasse. A parte mais selvagem de minha alma queria abrir fogo, esmagá-los ali mesmo, provar que ainda tinha domínio sobre o campo de batalha. Mas outra voz, fria e estratégica, me obrigou a conter a fúria. Eu sabia que aquele chamado não atraía apenas alguns. Era um convite para o enxame. Se ficasse, seria engolido.
     

    Respirei fundo, forçando a tensão a se dissolver. Já tinha visto o suficiente.
     

    Com um último olhar para a cicatriz na terra e para os corpos corrompidos que guardavam sua entrada, levantei voo, afastando-me das presas que ainda se agitavam em busca de mim. Voltei para o acampamento com uma certeza gravada em minha mente:
     

    Amanhã, eu retornaria. E quando isso acontecesse, meu instinto de luta finalmente seria saciado.

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