Capítulo 220: As marés da batalha
O som que veio da escuridão não foi apenas ouvido, foi sentido. Um guincho grave, que reverberou no peito como se tivesse garras invisíveis. A onda inicial de inimigos já parecia perigosa, mas os novos… os novos eram algo diferente. Maiores, mais fortes e mais resistentes. O fogo não os afetava tanto.
Eles emergiram como sombras sólidas, mais altos que um homem, carapaças cobertas por fungos que brilhavam em tons doentios de verde e púrpura. Seus olhos nos fixavam.
Engoli a saliva espessa que não queria descer pela garganta.
— Formação apertada! — gritei. — Os grandes são meus.
A primeira investida foi brutal. O monstro abriu caminho com um braço coberto de placas, como um aríete vivo. A lâmina da minha espada riscou o ar, e o impacto ressoou como ferro contra pedra. O choque me jogou dois passos para trás. O braço latejou.
Respirei fundo. Canalizei mana. Runas se acenderam ao longo da lâmina. A próxima estocada explodiu em luz azulada e cortou fundo, arrancando faíscas da carapaça do inimigo. Ele rugiu, recuando.
— Finalmente se soltando? — ouvi Cass zombar, à minha esquerda. Ela brincava, mas suor escorria por sua testa.
Ela girava sua lâmina longa em movimentos tão fluidos que pareciam dança. Cada golpe era acompanhado de estalos secos e jorros de fluido escuro das criaturas menores que ousavam se aproximar. Um inimigo mais rápido saltou em sua direção, mas Cass girou no ar, sua lâmina separando a criatura de sua cabeça.
— Não me distrai, Cass — rosnei, aparando um golpe.
— Você que não me alcance ainda — ela devolveu, e percebi um sorriso rápido, mesmo no meio da carnificina.
Um estrondo reverberou atrás de mim. Niana. Ela ativava sua forma de combate.
Ela avançava como uma tempestade. Suas garras, cobertas com uma camada de mana azulada, perfurava as criaturas maiores com força absurda. Uma delas, do tamanho de um cavalo, tentou esmagá-la com seu peso, mas Niana recuou meio passo, torceu o corpo e atravessou o peito do monstro em um único golpe. O bicho convulsionou, caído no chão, até parar.
— Fiquem firmes! — bradei. — Eles não são imortais!
O ar vibrou com uma descarga. Pandora.
Vi quando ela ergueu ambas as mãos, e a energia ao redor dela distorceu como ar sobre fogo. Um dos monstros avançava sobre Calmon, que já mal conseguia erguer seu escudo. Pandora disparou uma lamina de mana que dividiu a criatura em suas partes. Calmon olhou de volta, retribuindo e empurrando uma metade da criatura para trás com seu pé.
— Se recomponha, Calmon! — ela gritou. — Ou vai ser o próximo!
Calmon cambaleou, mas obedeceu, respirando ofegante, buscando forças.
Mais ao fundo, o céu se incendiou. Gus e Milena. As colunas de fogo deles caíam sobre os inimigos que tentavam cercar o grupo, queimando fileiras inteiras. Entre uma investida e outra, sentia o fluxo de magia de suporte me atingir, uma pressão firme no peito, fortalecendo músculos e clareando os pensamentos.
— Mais energia em todos! — Gus gritou lá de trás.
Um calor percorreu minhas veias, e avancei. A espada brilhava como um relâmpago. Cortei diagonalmente, liberando um arco de luz que abriu a carapaça do monstro diante de mim. O impacto espalhou faíscas pelo campo.
O bicho rugiu, tentou me agarrar, mas Cass chegou como um raio. Sua lâmina se cravando nos tendões expostos, e a criatura tombou. Eu completei o movimento, cravando minha espada em seu crânio.
— Boa sincronização — Cass disse, ofegante.
— É bom se acostumar — respondi rindo, já me virando para o próximo.
À nossa volta, o campo era um inferno vivo. Os mais fracos entre nós mal conseguiam manter posição. Vi Karel tropeçar, a lança trêmula, enquanto duas criaturas menores a cercavam. Antes que pudesse gritar, Pandora lançou outra lamina de mana que abriu espaço para ela.
— Cobre seu lado, ou vai morrer sem nem perceber! — Pandora rugiu.
A cada momento, ficava claro: nós, os mais fortes, éramos a muralha. Os demais… apenas tentavam não cair.
Outro guincho ecoou da floresta. Mais corpos surgiram da escuridão. Eram ainda maiores. Um deles caminhava sobre quatro patas, carapaça como aço, chifres alongados brilhando em verde.
O suor escorreu pela minha têmpora. Apertei o cabo da espada.
— Essa coisa não cai fácil… — murmurei.
— Então vamos juntos — Niana respondeu, surgindo ao meu lado.
Cass sorriu com sangue escorrendo pelo rosto. — Que seja. Já estava ficando entediada.
Pandora não disse nada, mas vi a energia se acumulando em suas mãos, como tempestade prestes a explodir.
Atrás, Milena gritou:
— Cuidado! Eles estão tentando nos flanquear!
Olhei rápido e vi novas silhuetas surgindo, menores, mas em maior número. A retaguarda ameaçava ceder.
O coração batia pesado. A luta estava longe de acabar.
Me concentrei e causei uma explosão de fogo bem onde as criaturas pequenas estavam tentando nos pegar desprevenidos. O perigo de ser colocado numa bigorna para ser golpeado pelos lados tinha desaparecido, pelo menos momentaneamente.
Com isso, ritmo da batalha finalmente começava a pender para o nosso lado. Meu corpo ardia em esforço, mas cada golpe da espada ressoava com a magia que eu infundia nela. Fendas de luz azulada cortavam as criaturas, atravessando carapaças e explodindo fungos em borrifos de esporos que se dissipavam no ar congelado da minha aura.
Cass estava à minha direita, tão rápida que seus movimentos se confundiam com a escuridão. Cada vez que uma das feras se aproximava, ela surgia em um corte diagonal, abrindo espaço para que Niana passasse logo atrás com suas garras, esmagando ossos e crânios em estalos secos. Pandora, por sua vez, era um turbilhão caótico. Os cabelos desgrenhados, os olhos brilhando em frenesi, ela girava sua espada como uma extensão do corpo, deslizando entre monstros como se dançasse uma coreografia macabra.
Eu conseguia sentir a pressão dos aliados na retaguarda. Gus murmurava encantamentos de suporte, fortalecendo nossos músculos com reforços temporários de mana, e Milena disparava bolas de fogo concentradas nas criaturas que tentavam cercar o grupo por trás. Cada explosão iluminava a noite em clarões laranja, lembrando-nos de que ainda estávamos vivos, ainda estávamos resistindo.
— Avançar! — gritei, erguendo minha espada infundida de mana. — Eles estão cedendo!
Cass lançou um sorriso rápido antes de desaparecer em mais um corte. Niana urrava, abrindo caminho com golpes potentes. Senti, pela primeira vez desde o início, que talvez estivéssemos conseguindo. Cada vez que empunhava minha lâmina, eu cortava mais fundo, mais rápido, imbuindo-a de camadas crescentes de mana. Meu instinto gritava para aproveitar o momento, para esmagar a onda antes que ela se reorganizasse.
E assim fiz. Avancei.
Minha espada se chocava contra carne e ossos, mas era o poder que fluía dela que realmente devastava. Cada impacto abria brechas, e nessas brechas os outros mergulhavam, como uma corrente fluindo por onde eu forçava passagem.
— Mais forte, Lior! — Cass exclamou, com um tom que parecia tanto incentivo quanto desafio.
Obedeci. Reforcei ainda mais minha mana, e as criaturas diante de mim começaram a hesitar. A barreira da horda, antes sólida, agora tremia. Pela primeira vez, a maré negra de corpos deformados recuava, forçada por nossa união, pela violência controlada que imprimíamos.
Atrás de mim, ouvi o riso breve e insano de Pandora. Ao lado, Niana ergueu a voz em um brado de vitória.
Sim, estávamos vencendo.
Foi então que o chão tremeu.
No início, achei que fosse reflexo do impacto de tantas criaturas amontoadas. Mas a vibração continuou, um pulsar irregular vindo de baixo, como se a própria terra respirasse de dor.
— Algo não está certo… — murmurei, mesmo sem querer acreditar.
Antes que pudesse reagir, a retaguarda explodiu em gritos.
Virei a tempo de ver o solo se partir em uma rachadura grotesca, sugando para dentro tudo o que estava sobre ele. As pedras, o fogo de Milena, os corpos das criaturas. E entre eles, os nossos.
— Gus! Milena! — minha voz ecoou, carregada de desespero.
Pude ver o olhar de pânico de Cris quando o chão se desfez sob seus pés. O mesmo com Karel, que tentou segurar-se em uma raiz exposta, mas não teve tempo. Ambos foram tragados para dentro da escuridão da fenda, engolidos pelo abismo que surgia.
O rugido das criaturas voltou a se erguer, desta vez ainda mais selvagem. Era como se a própria horda comemorasse a perda de nossos aliados.
Meus instintos me puxavam em duas direções: continuar pressionando a linha de frente ou mergulhar atrás dos que caíram. O choque me paralisou por um segundo, e nesse único segundo, senti que o fio frágil da esperança que havíamos conquistado estava prestes a se romper.
O buraco crescia, engolindo mais pedaços do campo, cuspindo esporos em rajadas que se misturavam ao ar. As criaturas, antes recuadas, agora avançavam de novo, alimentadas pelo caos.
A vitória que começávamos a saborear se esfarelava diante dos meus olhos.
E tudo que consegui pensar, ofegante, espada erguida, foi:
— Não posso perder mais ninguém.
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