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    A noite ainda não tinha se encerrado quando nos reunimos no centro do acampamento. A fogueira lançava sombras vacilantes sobre rostos marcados pelo cansaço, enquanto o lago refletia a lua em cacos prateados, como se até a natureza compartilhasse do nosso desalinho.

    O silêncio pesava. Depois de uma batalha como aquela, ninguém queria ser o primeiro a quebrá-lo. Parte de mim também desejava que o silêncio durasse, mas havia urgência. O inimigo não iria esperar.
     

    — Eles vão voltar — murmurei por fim. Minha voz soou áspera, quase estranha nos meus próprios ouvidos. — E da próxima vez podem vir em maior número.
     

    Cass bufou, cruzando os braços.

    — Isso é certo. A questão é: ficamos e erguemos defesas, ou partimos?
     

    — Se ficarmos, estaremos presos em uma ilha — retrucou André. A chama iluminava de lado seu rosto suado, a mão ainda pressionando a coxa ferida. — Não teremos para onde correr.
     

    — A água nos protege — insistiu Germano. — Eles não ousaram atravessá-la.
     

    — Ainda não — corrigi, olhando em volta. Pandora, em silêncio, assentiu. — Mas nada impede que aprendam. Já mandaram criaturas capazes de nos atingir à distância.
     

    A lembrança dos gritos, do sangue e das garras rasgando carne me fez estremecer. Permanecer aqui seria esperar a próxima onda, talvez maior. Estaríamos sempre reagindo, nunca conduzindo.
     

    Ergui os olhos para o horizonte. As cordilheiras se erguiam imponentes contra o céu estrelado, muralhas escuras coroada por neve. Lá, o frio era constante. E onde o frio imperava, os fungos não prosperavam.
     

    — Vamos mudar o acampamento — anunciei. As palavras caíram como pedras. — Amanhã cedo, subiremos em direção às montanhas.
     

    O murmúrio se espalhou. Uns aprovaram de imediato, outros hesitaram.
     

    — É arriscado — Milena disse, mordendo o lábio. — A subida será dura, e temos feridos.
     

    — Posso transportar todos, como fizemos antes — respondi. — Nas montanhas teremos o frio ao nosso lado, e do alto poderei sobrevoar a região. Se descobrirmos onde estão reunidos, talvez possamos pensar numa tática de ataque à distância. Não podemos esperar que continuem ditando o ritmo.
     

    Alissande apoiou-se no cabo da espada e assentiu.

    — Concordo. Quanto antes nos movermos, menos previsíveis seremos.
     

    Cass franziu a testa, dividida.

    — E se for uma armadilha? E se já estiverem nos esperando lá em cima?
     

    Dessa vez foi Pandora quem respondeu, calma, mas firme:

    — Se fosse esse o caso, não teriam desperdiçado forças hoje. O ataque desta noite foi uma tentativa de nos quebrar de surpresa. Não conseguiram.
     

    Germano suspirou, baixando os ombros.
     

    — Então está decidido.
     

    Olhei para cada um deles, buscando uma centelha de confiança. Não havia sorrisos, apenas o desgaste estampado em seus rostos, mas também um fio de determinação. Havíamos sobrevivido ao pior, e isso nos unia.
     

    — Descansem enquanto podem — ordenei. — Ao amanhecer, vou explorar o buraco. Precisamos entender como se locomovem debaixo da terra.
     

    Quando a primeira luz do dia tingiu o céu, já estava de pé. O lago refletia o dourado tímido da manhã, e a brisa fria soprava das cordilheiras. Para mim, era um sinal. Nosso caminho estava traçado.
     

    Enquanto eu descia ao buraco, os demais se ocupavam dos preparativos: armas revisadas, mochilas firmemente presas, suprimentos contados e divididos com cuidado. Os feridos foram estabilizados com talas improvisadas; Gus e Milena recorreram à pouca magia de cura que dominavam para aliviar a dor. Ninguém reclamou, ninguém protestou. O silêncio do grupo falava mais do que qualquer palavra: todos sabiam que esta mudança era questão de sobrevivência.
     

    Ao analisar o buraco, percebi que fora o cupim gigante o responsável pelas escavações. Na luta não havia reparado, mas agora via com clareza: seu abdômen possuía uma extensão longa, rígida e deformada.
     

    Reuni coragem e cortei o couro espesso. O que encontrei foi perturbador — uma câmara oca, como se fosse um compartimento natural. Era ali que as criaturas eram transportadas. O grande inseto infectado não era apenas uma arma; era o veículo de todo o enxame.
     

    Assim, compreendi enfim como moviam suas tropas pelas entranhas da terra.
     

    Antes de partirmos, reuni o grupo pela última vez à beira do lago.
     

    — Lá de cima, poderei enxergar mais longe — expliquei, apontando para as montanhas. — Precisamos saber quantos são e onde estão concentrados. Só assim poderemos pensar em uma ofensiva.
     

    — Você fala em ofensiva… — Cass ergueu a voz, cética. — Depois do que vimos ontem, ainda pensa em atacar?
     

    Encarei-a sem desviar.

    — Se não atacarmos, eles vão nos caçar até o fim. Precisamos inverter o jogo.
     

    Concentrei-me então na redoma que nos protegia. A runa de permanência que eu havia gravado absorvia o mana do ambiente, tornando-a mais robusta. Ampliei os sentidos e desmanchei as pilastras que sustentavam nossa ilha flutuante. Houve um leve tremor, e, com esforço da mente, fiz tudo deslizar acima da água. O suor brotou em minha testa.
     

    A paisagem logo mudou. O terreno antes plano tornou-se uma subida íngreme, pedregosa, tomada por raízes e vegetação cerrada. À medida que avançávamos, as árvores rareavam, cedendo espaço a arbustos retorcidos e capins endurecidos pelo frio. O ar cortava os pulmões a cada respiração.
     

    Apesar da fadiga, havia alívio em nos afastarmos do lago. O espelho d’água foi ficando para trás, pequeno, até se perder no vale. Com ele, a sensação sufocante de cerco também diminuía.
     

    Marreta, mesmo ferido, não perdeu o humor:

    — Pelo menos aqui não tem aquele cheiro de podridão.
    Alguns riram, cansados, mas riram.
     

    Horas depois, alcançamos altura suficiente para avistar o vale inteiro. As montanhas erguiam-se ainda mais imponentes adiante, picos nevados tocando o céu. A vulnerabilidade que nos esmagava antes deu lugar a uma esperança tímida.
     

    — Aqui é bom — Milena apontou para um platô protegido por rochas. — Dá para montar o acampamento com visão de todos os lados.
     

    — Concordo — disse Alissande. — E é defensável.
     

    Aceitei a sugestão e pousamos ali. Fixei novos ganchos telecinéticos, estabilizando a proteção. O grupo logo se ocupou: tendas erguidas, fogueiras discretas acesas, suprimentos redistribuídos. O vento castigava nossos rostos, mas era também um aliado: nenhum fungo sobreviveria naquele frio.
     

    Deixei-os trabalhar e subi mais alto, escalando um afloramento rochoso. Do cume, o mundo se abriu. O vale, o lago distante… e, mais adiante, manchas escuras que se moviam em padrões coordenados demais.
     

    O estômago revirou. Não eram bandos desordenados. Eles se organizavam, formando linhas. Um exército em gestação.
     

    Desci com o coração pesado. Todos me esperavam, olhos presos em mim.
     

    — E então? — Germano perguntou.
     

    Hesitei um instante, mas a verdade não podia ser escondida.

    — Eles estão se organizando. São muitos. Mais do que ontem. Mas agora sabemos onde estão.
     

    O silêncio foi sepulcral, como se a montanha tivesse engolido nossas vozes.
     

    — Isso significa que teremos que atacar primeiro — completei. — E, quando o fizermos, será do alto. Eles não esperam que sejamos nós a caçá-los.
     

    Um vento forte soprou, levantando as lonas das tendas, como se o próprio mundo nos lembrasse da fragilidade da decisão. Mas já não havia retorno. Havíamos subido. E dali em diante, só existia o caminho para frente.
     

    Naquela noite, com fogueiras baixas e corpos encolhidos contra o frio, Pandora se sentou ao meu lado. Ficou em silêncio por um tempo, olhando as estrelas que brilhavam intensas acima de nós, quase ao alcance das mãos.
     

    — Foi ousado — disse enfim, a voz baixa, quase levada pelo vento. — Mas talvez seja exatamente isso que precisamos.
     

    Assenti.

    — Não podemos mais só reagir. Está na hora de caçarmos.
     

    Ela virou o rosto. Nos olhos dela, iluminados pelo fogo, vi refletida a mesma determinação que tentava manter em mim. O caminho à frente seria mais sangrento. Mas, pelo menos um plano começava a se formar em minha mente.

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