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    O amanhecer trouxe consigo um frio cortante, prenúncio de que nos aguardava nas cordilheiras. A bruma se erguia preguiçosa sobre o lago, dissipando-se lentamente enquanto o sol pintava de ouro e laranja as encostas distantes. O acampamento ainda despertava, mas eu já estava de pé, revisando mentalmente cada detalhe do plano que tínhamos divisado.

    Na noite anterior, depois de discussões acaloradas, havíamos chegado a um consenso. Se esperássemos, seríamos caçados. Se avançássemos, talvez encontrássemos uma chance real de virar o jogo. Eu sabia que arriscar era perigoso, mas também que permanecer inerte seria pior. Eu, Germano, Gus e Milena, os magos, iríamos levar a guerra até eles.

    Atacaríamos de uma posição privilegiada, o céu.

    — Está pronto? — a voz de Germano me trouxe de volta ao presente. Ele ajeitava sua arma nas costas, os olhos atentos. A expressão carregava a mesma determinação que vi no combate da véspera, mas também um traço de ansiedade que ele não conseguiu disfarçar.
     

    — Mais do que nunca — respondi. — Hoje vamos testar se podemos fazer mais do que apenas resistir.
     

    Ao nosso redor, Milena ajustava as luvas de couro, concentrada nas runas que usaria. Gus, por sua vez, verificava em um grimório, uma última magia que tentaria usar.
     

    Reuni o grupo perto da fogueira apagada. O restante da companhia, Cass, Pandora, Alissande e os outros, ficaram para trás, encarregados de organizar os suprimentos e manter todos seguros. A eles, cabia a tarefa de manter a retaguarda. A nós, a responsabilidade de abrir caminho.
     

    — Vamos ser rápidos e precisos — falei, olhando cada um nos olhos. — O alvo é a planície além da face sul. Se atacarmos agora, antes que se espalhem, podemos cortar grande parte da força deles de uma vez.
     

    — E se eles tiverem reforços escondidos? — perguntou Milena.
     

    — Então vamos descobrir. Atacaremos forte, afim de desentocar eles — retruquei, firme. — Caso apareça inimigos voadores, eu e Germano cuidamos dos céus. Vocês dois despejam fogo e magia nas formações em terra. Quanto mais espalharmos o caos, melhor.
     

    Gus sorriu com um entusiasmo que quase me desconcertou.
     

    — Está na hora de devolver eles pros buracos de onde saíram…
     

    Milena não sorriu, mas o brilho em seus olhos bastava para mostrar que estava pronta.
     

    Respirei fundo, invoquei a mana em meu núcleo e, com um gesto, abri as mãos. Envolvi eles em minha telecinese e levitamos, levantando poeira e cinzas.

    Germano se ajeitou, procurando uma posição para seus disparos. Gus e Milena se posicionaram ao nosso lado, prontos para o transporte.
     

    — Segurem firme — avisei, estendendo os braços. Num único impulso, o chão ficou para trás, e nós quatro rasgamos o céu rumo ao sul.
     

    O vento frio golpeava nossos rostos enquanto cruzávamos o espaço aberto. De cima, a paisagem parecia outro mundo. O lago cintilava como uma lâmina partida, cercado por bosques escuros e o início das encostas íngremes. Mais além, a planície se estendia em tons de cinza e verde, marcada por manchas escuras que não demoraram a revelar sua verdadeira natureza.
     

    Hordas.

    Centenas de corpos se movendo como uma onda irregular, avançando e recuando em ciclos estranhos. À distância, pareciam insetos rastejando em sincronia. Mas bastou nos aproximarmos para que cada detalhe hediondo se tornasse visível: as carapaças cobertas de fungos, as bocas escorrendo fluidos, os olhos mortos fixos em direções aleatórias.
     

    — Estão todos ali… — Gus murmurou, a voz carregada de fúria.
     

    — E em grande número — completou Milena, apertando os dedos. — Mas juntos… são um alvo perfeito.
     

    — Atenção — alertei, puxando a respiração. — Criaturas aladas surgindo à esquerda!
     

    Algumas figuras deformadas despontaram do meio da multidão, batendo asas rasgadas que, de algum modo, ainda as sustentavam. Vieram em nossa direção num voo irregular, soltando guinchos ensurdecedores.
     

    — Comigo! — Germano disparou, já sacando a espingarda. A bala de luz deixou um rastro incandescente no céu antes de se cravar no peito da primeira aberração, que despencou em chamas. A segunda veio rápido, garras abertas, mas outro disparo preciso cortou-lhe a asa, arremessando-a contra as pedras abaixo.
     

    Eu me concentrei e disparei um relâmpago que atingiu as outras criaturas. Todas despencaram sem salvação.
     

    — Céu limpo — anunciei. — Hora de começar.
     

    Com um sinal, Milena ergueu os braços, e sua mana vibrou. Raios de energia azulada despencaram sobre a planície, explodindo entre os inimigos em ondas de gelo que os prendiam no lugar. Ao mesmo tempo Gus recitou algumas palavras e desenhou uma runa inesperada.

    — inteligente… — murmurei. Era uma conjuração de óleo.

    Em várias partes do exército inimigo o liquido inflamável se espalhou. Com uma bola de fogo, ele explodiu algumas das criaturas e incendiou o óleo.
     

    Gritos animalescos ecoaram. As criaturas tentaram se reorganizar, mas novas rajadas caíram sobre elas. Germano mantinha o céu seguro, interceptando qualquer um que ousasse alçar voo. Cada disparo dele encontrava seu alvo.
     

    Eu me juntei a Gus e Milena, fazendo chover uma tempestade de fogo abaixo.

    — Mais um! — Gus gritou, lançando outra bola de fogo.

    A explosão iluminou a planície como um sol temporário, espalhando fragmentos em chamas.
     

    Milena seguiu com uma conjuração mais ousada. Do círculo mágico à sua frente, uma serpente de energia se lançou, deslizando entre as fileiras de inimigos antes de detonar em uma onda de choque. Terra e carne podre se ergueram no ar, caindo em pedaços incinerados.
     

    — Estão em pânico! — Germano observou, disparando mais uma vez.
     

    — Então vamos aumentar a pressão — respondi, mergulhando em direção ao chão. Senti a mana rugir em meu corpo, e canalizei toda a energia em um único ataque. Uma esfera incandescente formou-se entre minhas mãos antes de despencar como um meteoro sobre a multidão. O impacto reverberou, espalhando uma cratera em meio ao caos.
     

    Quando voltei a ganhar altura, o cenário abaixo era apocalíptico. O fogo consumia fileiras inteiras, o gelo prendia outras, e a fumaça escura cobria parte da planície. Ainda resistiam alguns grupos, mas cada tentativa de contra-ataque era sufocada antes de começar. Era até injusto. Sorri.
     

    As criaturas aladas se multiplicaram, surgindo de pontos mais distantes. Mas Germano já as caçava com precisão implacável. Eu o acompanhava, interceptando as que escapavam. Entre nós dois, nenhuma conseguia se aproximar do grupo.
     

    A batalha durou longos minutos que pareceram horas. Explosões, gritos, o cheiro acre de carne queimada e fungo em combustão. Aos poucos, porém, o som dos inimigos diminuiu. O terreno ficou coberto de corpos carbonizados ou congelados. O que restava deles recuava em debandada, fugindo para as ravinas mais distantes.
     

    Por fim, pairamos sobre um campo devastado. O silêncio que se seguiu era ensurdecedor.
     

    — Eles estão batendo em retirada… — Milena disse, quase sem acreditar.
     

    — Conseguimos… — Gus soltou uma gargalhada cansada. — Conseguimos mesmo!

    Fiz um gesto para que guardassem as últimas forças.

    — Chega por hoje. Vamos voltar.
     

    O retorno ao acampamento foi diferente. Nossos corpos reclamavam do esforço, mas os corações estavam leves. Pela primeira vez desde que tudo começou, carregávamos algo além de feridas e perdas. Carregávamos vitória.
     

    Quando pousamos, Cass foi a primeira a correr até nós.
     

    — Vocês estão vivos! — exclamou, alívio estampado no rosto. — E… o que aconteceu lá fora?
     

    Cansado, Gus se largou no chão, ainda sorrindo.
     

    — O que aconteceu? Nós limpamos aquela maldita planície.
     

    Pandora se aproximou, séria, mas os olhos denunciavam surpresa. — Quantos?
     

    — Oitenta por cento, talvez mais — respondi. — Até os alados caíram. Eles não estavam preparados para um ataque desse tipo.
     

    Houve um murmúrio entre os que aguardavam. Pela primeira vez, vi esperança estampada nos rostos cansados.
     

    Alissande quebrou o silêncio. — Então não somos apenas presas.
     

    — Não — confirmei. — Hoje mostramos que também sabemos caçar.
     

    E, por um instante raro, todos sorriram. O medo ainda estava lá, mas misturado com algo novo. A sensação de que, talvez, não estivéssemos apenas resistindo. Talvez, finalmente, estivéssemos começando a vencer.
     

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