Índice de Capítulo

    Havia uma tonelada de novos conhecimentos em minha cabeça. A empolgação me dominava, uma onda de energia que espantava qualquer vestígio de sono. Apesar do frio da madrugada, estava vestido apenas com a calça do meu pijama, o vento soprando contra minha pele. Mas o frio não me incomodava, minha atenção estava em outro lugar. Estava totalmente focado nas possibilidades que se abriam diante de mim.

    Comecei a circular minha mana, sentindo o fluxo vibrar através dos meus dois círculos completos. Em teoria, eu só poderia manipular runas simples, as estruturas básicas que formavam a base da magia. Runas compostas, complexas demais para o meu nível, ainda deveriam estar fora do meu alcance. Porém, o conhecimento que minha sombra havia despejado em mim desafiava essas regras. Ele me mostrou atalhos, possibilidades proibidas — opções que violavam o que era ensinado nas academias e pelas casas nobres.

    Fechei os olhos, concentrando-me na runa de fogo. Era uma runa que Selune havia me ensinado, uma das primeiras que eu dominara. Visualizei-a em minha mente, cada traço brilhando como brasas incandescentes. Coloquei mana na representação mental e, em um instante, uma chama surgiu acima da minha mão aberta, brilhante e quente. A sensação do fogo dançando sobre minha pele era familiar, mas, desta vez, havia algo diferente — uma conexão mais profunda, um controle mais sutil.

    Com um simples comando da minha vontade, brinquei com a chama, moldando-a. Aumentei sua intensidade, as chamas dançando e se contorcendo como serpentes de luz. Depois, diminuí-a até que fosse apenas uma brasa flutuante, quase extinta. Fiz a chama saltar de uma mão para a outra, como se estivesse viva, até que, num impulso, decidi testar outro novo conhecimento. Reescrevi mentalmente a runa de fogo, substituindo-a por uma de água. O processo era perigoso; mudar a essência de uma runa ativa era considerado impossível. Mas segui o que minha sombra me mostrara.

    A chama tremeluziu, hesitou por um segundo, e então transformou-se. Uma grande esfera de água tomou forma no ar, antes de cair pesadamente no chão, molhando tudo com o impacto.

    — Incrível — a voz aveludada de Selune cortou o silêncio da noite, fazendo-me virar na direção do som.

    Ela estava parada na sacada da residência, envolta por uma camisola fina e reveladora que ondulava suavemente ao vento. A luz da lua delineava seu corpo, destacando a pele escura e os cabelos prateados que caiam em ondas soltas. Seus olhos, enormes e brilhantes, estavam fixos em mim, uma expressão de incredulidade e admiração evidente em seu rosto.

    Quando a vi, algo despertou dentro de mim. Senti a parte da mana dela que era corrompida pelo miasma, uma vibração escura e familiar. Mas o que realmente me surpreendeu foi a onda de desejo que me invadiu, violenta e incontrolável. Não parecia um sentimento meu, era algo mais primal, mais profundo. Antes que pudesse me conter, já estava ao seu lado, os braços ao redor dela. Minha boca buscou a dela em um beijo feroz, minhas mãos deslizando em seu corpo até seus seios, apertando-os com uma urgência que beirava o desespero.

    — Calma, Lior — ela sussurrou contra meus lábios, a voz ofegante, mas firme. — Você vai me machucar assim.

    As palavras dela foram como um balde de água fria. O transe se quebrou, e a realidade voltou a bater. Soltei-a abruptamente, recuando, o peito arfando. O calor do desejo foi substituído por uma onda de vergonha que me queimava por dentro. Como eu tinha perdido o controle assim? O que estava acontecendo comigo?

    Selune me olhou, a expressão suavizando quando percebeu meu embaraço. Um sorriso compreensivo tocou seus lábios. — Pode me explicar o que você estava fazendo com aquela chama? — perguntou, mudando o assunto. A voz dela era calma, mas havia curiosidade genuína em seus olhos.

    Agradeci silenciosamente pela mudança de foco, tentando acalmar a respiração. Ainda sentia o eco do desejo ressoando em mim, mas o controle estava de volta, firme.

    — Eu… estava testando algo novo — respondi, ainda sentindo a adrenalina pulsar. — E o que você está fazendo aqui?

    Selune inclinou a cabeça, o olhar afiado como sempre. — Senti uma mudança na mana aqui fora. Vim verificar o que estava acontecendo. — Ela sorriu, mas havia uma sombra de seriedade em seus olhos. — Nunca imaginei que veria algo impossível acontecer. Depois que a mana se solidifica em um elemento, não tem como ser alterada. Você deveria ter extinguido a chama antes de criar a água.

    — Crie uma chama — pedi a ela, sentindo a necessidade de compartilhar o que havia descoberto. — A mais simples possível.

    Ela estendeu a mão, e uma pequena chama brotou entre seus dedos, oscilando suavemente. Sua expressão era curiosa, mas cautelosa. Eu me concentrei, focando na essência daquela chama. Visualizei a runa de fogo que ela havia invocado, sentindo as linhas de mana pulsando dentro dela. Com cuidado, envolvi a chama dela com minha própria mana, sentindo a resistência sutil antes de quebrá-la. Em um instante, a chama se transformou em uma pequena esfera de água, que escorreu entre seus dedos.

    Os olhos de Selune se arregalaram. — É impossível! Você manipulou a minha magia… e não foi só um dissipar. Você alterou a substância dela. — Ela respirou fundo, tentando processar o que havia acabado de ver. — Por favor, me explique o que você fez.

    Antes que eu pudesse responder, ela ergueu a mão, me interrompendo. — Espere aqui. — Sem mais explicações, ela correu para dentro da residência. Poucos minutos depois, voltou com um grimório em branco, uma caneta e um tinteiro nas mãos. Seus olhos brilhavam de entusiasmo.

    — É um grimório novo. Eu ia te dar de presente depois do baile… — Ela sorriu de lado. — Mas podemos começar a preenchê-lo agora. Vai, me explica certinho o que você fez.

    Selune sentou-se ao meu lado no gramado, abrindo o grimório com cuidado reverente. A lua iluminava as páginas em branco, que pareciam clamar por conhecimento. Eu respirei fundo, organizando meus pensamentos.

    — Sempre tratamos as runas mágicas como instruções — comecei desenhando uma runa de fogo na primeira página. — Elas são como comandos para manifestar efeitos no mundo físico. Mas… e se não for assim? E se as runas forem apenas um alfabeto para escrever a realidade, como se fossem palavras?

    Ela me observava atentamente, os olhos fixos nos movimentos da minha mão. — Um alfabeto? Como assim?

    — Olha — tracei a letra “A” no papel. — Isso é um “A”. Mas com pequenos ajustes… — Transformei o “A” em um “O”, apenas modificando as linhas. — …ele pode virar um “O”. É a mesma coisa com as runas. Elas não são fixas. São símbolos que podemos manipular, transformar.

    Selune franziu o cenho, intrigada. — Sempre aprendemos que as runas são imutáveis. Ar, terra, fogo, água e vazio. — Ela desenhou as runas elementares ao lado das minhas. — Cada uma é diferente. Como você as transformou?

    — Porque não são imutáveis — respondi, sentindo a excitação crescer em mim. — Nosso processo de visualização é o problema. Nós sempre pensamos que precisamos visualizar a runa perfeita antes de infundir mana. Mas isso é errado. — Fiz uma pausa, tentando encontrar as palavras certas. — Não devemos visualizar a runa e depois infundir mana. Devemos usar a mana para “pintar” a imagem mental, moldando-a em tempo real. Enquanto controlamos o pincel, controlamos a runa. Entende a diferença?

    Ela mordeu o lábio, pensativa. — Honestamente… não sei. Se não tivesse visto com meus próprios olhos, não acreditaria. Isso vai contra tudo que aprendi.

    — E tem mais — continuei, a voz carregada de entusiasmo. — Desse jeito, podemos controlar outros aspectos da runa. Ela não fica mais engessada. É fluida, mutável. Com treino suficiente, podemos até interferir na magia de outras pessoas. Basta visualizar a essência da runa que elas estão projetando.

    Selune arregalou os olhos. — Eu vi o que você fez com a minha chama… Isso é incrível. Até agora, só podíamos dissipar a magia de outra pessoa, nunca a alterar.

    — Existem muitas outras aplicações — murmurei, a mente fervilhando com possibilidades. — Mas preciso organizar tudo. Esse conhecimento… parece tão natural agora. Preciso colocá-lo em ordem antes de explicar mais.

    Ela assentiu, fechando o grimório com um suspiro. — Sim, faça isso. Estou ansiosa para aprender mais. — Seus olhos encontraram os meus, a seriedade substituindo a curiosidade. — Mas… de onde veio esse conhecimento?

    O silêncio se estendeu entre nós. Finalmente, respondi, a voz mais baixa. — Você conheceu ele. Minha parte sombria. Foi ele quem te devolveu o acesso à mana.

    Selune franziu a sobrancelha, a expressão cautelosa. — Conte-me tudo.

    Respirei fundo e comecei a falar. Contei sobre o tempo que passei preso, sob o domínio de Drael. Sobre as experiências e cirurgias. Sobre como a consciência de Mahteal se alojava no meu oceano de mana. Enquanto as palavras saíam, o peso que eu sentia parecia mais leve. E Selune, com o olhar firme e atento, escutava cada palavra, como se estivesse absorvendo não apenas o que eu dizia, mas tudo o que isso significava.

    Selune me olhou, seus olhos prateados brilhando à luz da lua. Havia uma intensidade ali que fez meu coração acelerar. — Certo… entendo que você passou por algo incrível e misterioso, provavelmente muito perigoso, e ainda é — sua voz era baixa, quase um sussurro, mas carregada de emoção. — E que ainda está longe de acabar. Você me puxou para esse mundo sombrio junto com você, Lior.

    Ela fez uma pausa, seus olhos analisando os meus, como se procurasse algo escondido. — Mas me diga uma coisa… — Sua voz tremeu levemente. — Quem me atacou… e me beijou agora há pouco… foi você, ou foi ele?

    O silêncio se instalou entre nós. Eu desviei o olhar, tentando encontrar as palavras certas, mas principalmente, tentando entender o que havia acontecido comigo. As sensações ainda estavam vivas em mim: o desejo, a intensidade, o impulso quase incontrolável. Fechei os olhos, buscando no fundo da minha memória, e então, respondi.

    — Fui eu. — Minha voz soou mais firme do que eu esperava. — Talvez algum instinto dele tenha me influenciado… mas fui eu. O que aconteceu… o que eu sinto por você… foi amplificado de alguma forma. Como se tudo tivesse ficado mais… intenso.

    Selune inclinou a cabeça, avaliando minhas palavras. Seus olhos não tinham mais a incredulidade de antes, apenas uma compreensão profunda e um brilho desafiador. — Então foi você… — sussurrou.

    Antes que eu pudesse responder, ela deu um passo à frente. O mundo pareceu desacelerar enquanto a distância entre nós diminuía. Ela colocou a mão no meu rosto, os dedos frios, mas o toque, quente. Então, sem mais uma palavra, seus lábios encontraram os meus.

    O choque do contato foi como uma onda de energia atravessando meu corpo. Cada nervo parecia em chamas, mas não era a mesma intensidade cega de antes. Havia algo mais profundo agora, algo que ia além do desejo físico. Selune se afastou por um instante, seus olhos me examinando, e então me puxou, fazendo-me perder o equilíbrio. Caímos juntos no gramado, as estrelas como únicas testemunhas.

    — Lior… — sussurrou, a voz suave como uma carícia. — Há tantas coisas que ainda não entendo. Mas uma coisa eu sei: você não está sozinho nessa. Seja qual for a escuridão que você carrega… não precisa enfrentá-la sozinho.

    Eu engoli em seco, as palavras presas na garganta. Não havia nada que eu pudesse dizer que pudesse expressar o que sentia naquele momento. Em vez disso, minha mão encontrou a dela, nossos dedos se entrelaçando. — Obrigado, Selune. — Minha voz era rouca, quase inaudível.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (5 votos)

    Nota