Capítulo 233: Ferido
Uma dor aguda me trouxe de volta. Um peso esmagador no abdômen, algo quente escorrendo pelas minhas costas, ensopando minhas roupas. Respirei fundo e o mundo me atingiu de uma vez só: o fedor de esporos queimados, o grito distante de Pandora, o choque metálico de lâminas.
Abaixei os olhos. A lâmina da minha irmã atravessava minha barriga. O cabo ainda em sua mão trêmula. Eu havia vencido no oceano de mana, libertado sua essência, mas no mundo real o corpo dela ainda obedecera ao fungo até o último instante. Escapara por um fio.
— Lior! — A voz veio rouca, quase um rosnado. Niana estava à minha frente, a raposa estava ensanguentada, o braço esquerdo marcado por cortes profundos. Tinha lutado com minha irmã, tinha me protegido, o corpo arqueado, a cauda eriçada de fúria. — Fica comigo, droga!
Cassiopeia recuou, atordoada, como se acordasse de um pesadelo. Seus olhos perderam o brilho mortiço do domínio e se encheram de confusão. Largou o punho da espada e cambaleou para trás.
— Eu… o que eu fiz? — murmurou.
Não consegui responder. Pressionei a ferida com a mão e cerrei os dentes. Senti os efeitos de uma magia de cura me acudir, provavelmente Milena, mas fraca, insuficiente. Eu estava drenado e ferido demais.
O chão tremeu sob nós. O fungo não aceitara a derrota. Dezenas de raízes se romperam das paredes, liberando criaturas deformadas, um enxame de corpos que mal lembravam o que um dia haviam sido. O rugido coletivo ecoou pela câmara, e eu soube: estávamos prestes a ser engolidos.
— Milena! — Pandora gritou, já avançando para interceptar Calmon, já livre do domínio, que se debatia, tentando compreender o que acontecia.
— Já vi! — a maga respondeu, erguendo uma barreira em torno dos companheiros inconscientes. Sua respiração era pesada, e gotas de suor escorriam por sua têmpora.
Gus tropeçou, os olhos ainda turvos, recuperava aos poucos a consciência. — Eu… não… — balbuciava, mas instintivamente lançou um raio de mana que partiu uma das bestas em dois. O gesto o assustou, como se não fosse dele mesmo.
Cass caiu de joelhos diante de mim. — Eu te feri… não pode ser…
Apoiei a mão em seu ombro. — Não é culpa sua. Lute comigo, Cass. Precisamos de você agora.
Ela hesitou, mas quando uma criatura se lançou contra nós, seu braço se moveu sozinho, retirando a espada da minha barriga e cortando o inimigo em duas metades. Seus olhos ganharam firmeza.
— Certo. — Ela se ergueu. — Vamos acabar com isso.
Niana arfava ao meu lado, segurando três bestas de uma vez, suas garras descrevendo longos arcos. Sangue escorria de seus ferimentos, mas ela não recuava. — Lior, eu não aguento isso sozinha!
— Eu sei. — Forcei-me a continuar de pé. A ferida incomodava, cada movimento parecia rasgar mais meu corpo, mas eu não podia cair no chão.
Pandora protegia Calmon, ele estava no meio das criaturas que não paravam de surgir. — Ele não entende! — gritou, desviando por um triz de um ataque selvagem.
— Calmon! — rugi. — Sou eu! Acorda!
Por um instante, ele vacilou. Pandora aproveitou a brecha para golpeá-lo com o punho, não para ferir, mas para atordoar. Gus interveio, lançando uma rajada de vento que afastou três criaturas que se aproximavam.
A caverna inteira virou caos. Milena gritava encantamentos atrás de nós, conjurando esferas flamejantes que explodiam no enxame. Cass lutava com a precisão de sempre, mas ainda estava abalada. Não podia deixar a pressão dos inimigos desequilibra-la.
Eu mancava, apoiando-me em Niana. Minhas mãos tremiam, meu sol de mana oscilva como uma chama prestes a apagar. Tudo em mim pedia descanso, mas não havia descanso possível.
— Niana! — alertei, desviando de uma lança de osso que foi disparada em minha direção. — Segure a linha à esquerda. Não deixe que cercam Milena.
— Já estou sobrecarregada! — ela rosnou, abrindo um rasgo no peito de uma criatura com as garras. O sangue negro respingou em seu rosto, mas ela sequer piscou.
Cass se aproximou de mim, bloqueando um ataque que teria me derrubado.
— Lior, o que você fez comigo lá dentro… eu senti. O fungo ainda está me corroendo. Não posso…
— Pode sim. — Agarrei sua mão firme. — Você é Cassiopeia. Você sempre pôde.
Gus estava de costas para nós, disparando feixes de mana bruta. Cada impacto derrubava três, quatro criaturas de uma vez. Não era criativo, nunca fora, mas seu poder bruto, principalmente depois do controle inimigo, era impressionante. — Segurem firme! — gritou, e uma onda de choque afastou o enxame por alguns segundos.
Esses segundos foram tudo o que precisei. Respirei fundo, e puxei o pouco de mana que ainda tinha. Estabilizei a ferida com magia de cura, estancando parte do sangramento. A dor era lancinante, mas agora eu podia me mover sem desmaiar.
O fungo rugiu outra vez, liberando mais e mais servos. Era uma maré sem fim. Pandora, Niana, Milena, Cass e Gus estavam exaustos, sangrando, e ainda assim resistiam.
Eu não podia deixá-los morrer aqui.
— Aproximem-se! — berrei, erguendo os braços. Pandora foi a primeira a obedecer, arrastando Calmon consigo. Niana veio mancando, Milena cambaleou até nós, Cass e Gus seguravam as pontas enquanto recuavam.
Concentrei. A sensação foi como rasgar meu próprio peito por dentro, mas ergui um campo de força ao redor de todos. A cúpula de energia brilhou em dourado, pulsando como um coração. As criaturas colidiram contra ela, urrando, arranhando, cuspindo esporos, mas não conseguiam penetrar.
Aproximei minha mente do centro da câmara, onde o fungo se erguia, imenso, raízes espalhadas pelas paredes. Lembrei do oceano de Cass, lembrei da luz que o consumiu. Precisava repetir aqui.
Fechei os olhos. O sol dentro de mim vacilava, pequeno, mas ainda vivo. Empurrei-o para fora, expandindo através do campo. A raiva me dava energia para produzir mais e mais mana.
O dourado virou branco. As raízes se contorceram, a massa central do fungo começou a queimar como papel encharcado. As criaturas gritaram em uníssono, um som apavorante, antes de se desfazerem em cinzas. O calor nos envolveu, mas não nos feriu.
Quando abri os olhos, tudo ao redor estava em chamas douradas, depois em silêncio. O fungo se contraiu uma última vez, antes de colapsar sobre si mesmo.
Soltei o feitiço e caí de joelhos. O campo de força se dissipou.
Silêncio. Apenas nossa respiração ofegante.
Niana caiu sentada ao meu lado, rindo sem humor. — Você… você sempre exagera, Lior.
Milena limpava o suor do rosto, pálida. — Se não tivesse exagerado, estaríamos mortos.
Cassiopeia se ajoelhou diante de mim, tocando meu ombro. — Eu… não sei o que dizer.
— Diga depois. — Apontei para o túnel adiante, onde a escuridão ainda se erguia como uma promessa maldita. — Ainda não acabou. Há outros. Eles precisam de nós.
Meus amigos me olharam. Estávamos todos feridos, exaustos, em frangalhos. Mas nenhum recuou.
Eu respirei fundo, sentindo a dor em cada músculo, e me ergui outra vez.
— Vamos.
E seguimos.
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