Capítulo 235: Casa?
A manhã seguinte chegou com um silêncio estranho. O tipo de silêncio que não parecia paz, mas exaustão. As árvores ao redor do acampamento estavam imóveis. O mundo inteiro parecia ter parado.
Havíamos sobrevivido. Relembrando os acontecimentos da véspera me parecia impossível. Lágrimas vieram aos meus olhos.
Levantei-me antes de todos. O corpo doía como se tivesse sido moído por dentro, e a ferida na barriga latejava cada vez que respirava fundo. Pandora notou que eu me afastava, mas não disse nada, apenas se ergueu, ajeitou a espada na cintura e me seguiu. Pouco depois, Gus, Milena e alguns dos trabalhadores de Calmon também se juntaram a nós. Eles entendiam. Precisávamos ter certeza.
As cavernas nos receberam de volta com o mesmo cheiro azedo de fungo. Só que agora estava morto. As raízes ressecadas estalavam ao toque, quebradiças como cinzas frias. Mesmo assim, percorremos cada galeria. A ponta da minha percepção vasculhava, procurando sinais de algum crescimento anômalo, batimentos estranhos, qualquer pulsar que denunciasse vida.
— Está realmente morto? — Gus perguntou, a voz ainda arrastada.
— Não confio em mortos que não enterramos — respondi, passando a mão pela parede onde antes pulsava energia. Agora era apenas pedra fria.
Milena conjurou uma centelha de fogo e lançou contra um amontoado de raízes secas. As chamas se espalharam rápido, consumindo o que restava. O estalo ecoou pelo túnel como ossos quebrando.
— Se sobrou algum esporo, não vai durar — ela disse, a voz fraca mas firme.
— os esporos sempre foram inertes — falei. — Era a vontade da coisa que os impelia.
Seguimos em silêncio por mais um tempo. Pandora caminhava ao meu lado, sempre alerta, como se o inimigo pudesse saltar de qualquer sombra. A espada dela parecia pesada demais até para uma guerreira como ela, mas ela não reclamava.
Revistamos três galerias principais, depois a câmara onde o coração colossal do fungo havia se erguido. O chão ainda estava coberto de cristais de gelo que se desfaziam lentamente, soltando fumaça branca. Eu me ajoelhei, encostando a mão sobre eles.
Nada. Nenhum resquício. Apenas frio e o resto das criaturas dominadas, esmagadas pelas rochas que caíram.
Suspirei fundo, sentindo um peso sair dos ombros. Um alívio verdadeiro.
— Acabou — murmurei.
Pandora colocou a mão no meu ombro, apertando com força. Um gesto simples, mas que dizia mais do que qualquer palavra.
Voltamos ao acampamento pouco antes do meio-dia. O cenário ali era outro. Cordas eram enroladas, mochilas amarradas, feridos ajudados a se erguer. O clima não era de festa, mas de alívio. A sensação de que tinha acabado. O ar carregava aquele cheiro doce-amargo de missão cumprida, com um fundo de luto silencioso pelos que tinham se perdido.
Eu não queria admitir, nem faria isso para ninguém. Mas estivemos muito próximos de um fracasso total. Ainda me faltava poder.
Uma reunião improvisada se formou. Sentamos em círculo, todos que podiam ficar de pé reunidos. Vi rostos marcados pela dor e pelo esforço. Vi olhos que ainda não acreditavam estarmos vivos.
Calmon pigarreou, mas sua voz falhou antes de falar. Gus, ao lado dele, parecia perdido em pensamentos, as mãos tremendo levemente. Cassiopeia mantinha o olhar baixo, como se ainda carregasse a culpa de tudo o que acontecera.
— Então… — Germano começou, a voz carregada de incredulidade — …foi isso? Acabou mesmo?
— Acabou — confirmei, olhando um por um. — O último fungo foi destruído. Eu… precisei me entregar a ele, mas consegui enganar ele. Transformei minha mana em gelo, o mais frio que pude conceber. Em sua ânsia, o fungo engoliu tudo. E, no processo, acabou por se condenar. Congelado, como os fungos que nos invadiram no começo de tudo.
Um silêncio pesado se espalhou. Vi expressões de choque, de admiração e até de reprovação.
— Você podia ter morrido! — Pandora falou, como se ainda precisasse descarregar a raiva contida. — Foi imprudente, Lior.
— Foi necessário — respondi, encarando-a. — Se eu tivesse explicado, não teria tempo.
Niana, com a cauda enfaixada e ainda tremendo, ergueu a voz suave:
— Nós interessa — falou. — Deu certo no final, se não fosse sua ideia, teríamos morrido. Era impossível derrotar todo o exército do inimigo.
As palavras dela acalmaram a chama que ardia em Pandora. Ela bufou, virou o rosto, mas não insistiu.
Ficamos um tempo apenas lembrando. Cada luta, cada queda, cada prisioneiro resgatado. Cris fez uma piada sem graça sobre quase ter perdido a perna, e todos riram, mesmo que a gargalhada soasse mais como soluço. Era a maneira que tínhamos de purgar o peso.
Quando o sol começou a cair, todos já estavam prontos. Arrumamos nossas coisas, ajustamos as pedras de âncoragem. Eu segurei a minha, sentindo a energia vibrar. Aquele pequeno artefato seria nossa ponte de volta à realidade.
— Vamos pra casa — disse, e vi os olhos de muitos se iluminarem com essa simples promessa.
A transição foi rápida. O medo da névoa era pouco perto do que tínhamos passado, e o ar rarefeito da montanha deu lugar à velha Thallanor. As ruas conhecidas, as torres altas, a vida comum correndo como se nada tivesse acontecido enquanto nós éramos transformados na outra ilha.
A sensação foi estranha. Como acordar de um pesadelo e perceber que o mundo continuava igual.
No local onde surgimos, as despedidas começaram. Um a um, nossos companheiros se afastavam. Os homens de Calmon todos iriam de volta para a mansão da Casa Argos.
Germano, Cris, Marreta e Karel partiram, dizendo que esperavam pelo pagamento no Matadouro, com Rosa. Encontraria com eles outro dia.
Cassiopeia se aproximou de mim. O olhar dela estava firme, ainda que o rosto revelasse cansaço profundo.
— Obrigada por não ter desistido de mim — ela disse.
— Nunca desistiria — respondi, e era verdade.
Calmon veio em seguida. Estendeu a mão, sério, mas sem dureza. Eu a apertei com força.
— A parte do meu acordo será paga — ele disse. — Amanhã vou preparar a transferência da ilha. Será sua, como prometido. — Não tenho reclamações do resultado pelo contrário, estaríamos todos mortos se não fosse por você, Lior.
Assenti, sem conseguir esconder um leve sorriso. Aquela era mais que uma recompensa. Era o começo dos meus planos de estabelecer uma torre mágica. E terras para o povo de Lock.
Quando todos começaram a se dispersar, restamos eu, Pandora, Alissande, ainda frágil, mas desperta, André e Cass. Nossa pequena comitiva que iria de volta à mansão.
Enquanto caminhávamos, o coração acelerava de uma forma diferente da batalha. Uma ansiedade quase infantil. Eu só conseguia pensar em Claire e Nix. Minhas noivas. Meu refúgio. Minhas âncoras.
Senti a mão de Pandora apertar a minha de leve, um gesto de companheirismo, não de romance. Alissande sorriu cansada, e André já falava sobre vinho, como se nada tivesse acontecido. Pensei em mandar um mensageiro para minha Mãe, para a família de André e para Lenora. A noite pedia comemoração.
Eu respirei fundo, deixando o peso se dissolver por um instante.
O episódio dos fungos estava encerrado.
E agora… eu só queria voltar para casa.
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