Capítulo 24: No flagra
Acordei no gramado, o frio da manhã penetrando minha pele. A noite anterior parecia um sonho confuso e intenso, mas a grama amassada e o cheiro de Selune ainda impregnado em mim confirmavam que fora muito real. Meus músculos estavam rígidos, o corpo cansado, e quando olhei ao redor, Selune não estava mais ali. Em algum momento, sem que eu notasse, ela havia retornado para seu quarto.
Antes que eu pudesse me levantar, ouvi passos leves se aproximando. Virei a cabeça e vi Nix caminhando em minha direção, ainda vestindo uma camisola fina. Meu coração deu um salto. O olhar dela era indecifrável, e a culpa me atingiu como um soco. As evidências do que tinha acontecido estavam por toda parte — o cheiro, as marcas na grama, a energia ainda pulsando no ar.
Nix parou diante de mim, os braços cruzados, o olhar fixo e penetrante. Ela farejou o ar, como só ela conseguia fazer, e franziu o nariz. — O cheiro dela está todo em você — disse, a voz baixa, quase rouca. — O cheiro de vocês dois está misturado na grama…
Ela fez uma pausa, os olhos dourados avaliando cada detalhe de mim. Não havia raiva visível, mas também não havia aquele brilho doce que costumava acompanhar seu sorriso. Era como se uma barreira tivesse sido erguida entre nós. — Vá tomar um banho… — ordenou, a voz firme, mas sem emoção aparente.
Engoli em seco, sem saber o que dizer. Seu rosto era uma máscara que eu não conseguia ler, e aquilo me deixava mais inquieto do que se ela tivesse gritado comigo. Levantei-me lentamente, sem ousar desobedecer. O peso do silêncio entre nós parecia maior do que qualquer confronto.
Depois do banho, procurei por Nix. Encontrei-a sentada sob a sombra de uma árvore, junto com Selune. As duas conversavam em voz baixa, tão baixinha que o vento levava as palavras embora antes que chegassem até mim. Nix enxugava os olhos, o que fez meu coração afundar no peito. A culpa me corroía por dentro, como um veneno.
Selune notou minha presença de relance, mas não disse nada. Nix, por sua vez, manteve o olhar fixo no chão, desenhando padrões invisíveis com os dedos na terra. Não havia espaço para mim naquela conversa. A sensação de ser um intruso, de ter quebrado algo que talvez não pudesse ser consertado, era sufocante.
Sem saber o que fazer, voltei para o meu quarto. O grimório em branco estava ali, sobre a mesa, esperando para ser preenchido. Peguei a pena e comecei a escrever, tentando afogar minha inquietação na tarefa. O conhecimento que havia adquirido ainda pulsava na minha mente, fresco e vibrante. Cada palavra que traçava no papel era uma tentativa de organizar o caos dentro de mim.
“Talvez Selune possa praticar com isso…” pensei, uma ideia surgindo no meio da confusão. Mas antes que pudesse sequer decidir, uma pergunta se instalou, amarga e inevitável: E Nix?
Lembrei-me da conversa que tive com Nix anteriormente, quando ela, com aquele tom casual e enigmático que só ela sabia usar, mencionou que Selune era minha “segunda esposa”. Decidi respeitar o espaço dela e deixá-la vir até mim em seu próprio tempo.
Voltei minha atenção ao grimório, afundando-me na tarefa de registrar o novo conhecimento que parecia estar transbordando da minha mente. As horas se desmancharam em minutos, e eu só percebi o quanto estava absorto quando ouvi a porta do quarto se abrir. Jorjen entrou, seguido de perto por Marcus, seu capanga de rosto marcado por cicatrizes profundas. Ambos tinham expressões sombrias e corpos tensos, como se algo invisível os pressionasse.
Jorjen fez uma breve reverência antes de falar. — Jovem mestre, todos os participantes já chegaram. Os últimos chegaram hoje pela manhã. Outra coisa, o pedido que me fez anteriormente, está caminhando bem. Só preciso conversar com ela para saber detalhes de seu passado, acredito que tudo correrá bem.
— Ela está lá fora, conversando com Selune. — Respondi.
Percebi, no entanto, que eles não estavam bem, que sua voz estava vacilante, instável. Olhei para ele mais atentamente. Gotículas de suor escorriam por sua testa, e suas mãos tremiam. Marcus, ao lado, parecia ainda pior — o rosto pálido, o corpo balançando como se mal pudesse se manter em pé. Um frio percorreu minha espinha.
— O que está acontecendo com vocês? — perguntei, levantando-me de um salto, preocupado.
Jorjen passou a mão pela testa, a respiração pesada. — Não sabemos… Desde ontem, sinto uma dor de cabeça insuportável. Marcus também…
Um lampejo de alerta acendeu em minha mente. Imediatamente, lembrei do que Mahteal tinha feito com eles. Concentrei-me, tentando sentir a energia deles. Lá estava — um pequeno ponto de miasma, sutil, mas inegável, corroendo-os lentamente. A mesma sombra que eu havia detectado neles antes, mas que agora parecia desperta, faminta.
Uma voz conhecida sussurrou em minha mente, baixa e sedutora: “Alimente-os com miasma, vai colocá-los para dormir novamente”.
— Alimentar o quê? — murmurei, mais para mim do que para eles. Mas o instinto, ou talvez o conhecimento recém-adquirido, me guiou. Obedeci sem questionar.
Fechei os olhos e me concentrei no miasma que corroía meu próprio coração de mana. Com um esforço de vontade, guiei-o através dos meus canais de energia, sentindo a sombra fria se mover até minha mão. Toquei a testa de Jorjen primeiro, depois a de Marcus. O miasma fluiu de mim para eles, infiltrando-se em suas mentes.
Por um momento, o silêncio se estendeu, denso e carregado. Então, senti os pequenos pontos negros em seus corpos reagirem, absorvendo o miasma que eu havia canalizado. Como predadores saciados, as sombras entraram novamente em um estado de hibernação. A sensação de fome desapareceu, substituída por uma calma estranha.
Jorjen respirou fundo, visivelmente aliviado. — A dor… diminuiu… — sussurrou, olhando para mim com olhos confusos, mas agradecidos.
Marcus assentiu, o tremor em seu corpo diminuindo. — O que… o que foi isso, jovem mestre?
— Eu não sabia responder às suas perguntas. Então, simplesmente silenciei, desviando o olhar. A tensão no ar era quase palpável. Jorjen e Marcus me observavam, esperando respostas que eu não tinha. Suas expressões confusas e exaustas refletiam a sombra de algo muito maior, algo que nem eu compreendia totalmente.
— Jorjen… Marcus… — comecei escolhendo as palavras com cuidado. — O que vocês sentiram antes de começarem a passar mal? Alguma coisa… diferente?
Jorjen e Marcus trocaram um olhar inquieto antes de responder.
— Bem, eu tive pesadelos — murmurou Marcus, com a voz rouca. — Sonhei que uma coisa com dentes afiados me devorava… devagar, como se estivesse saboreando cada pedaço.
Jorjen assentiu, o rosto pálido. — Eu tive o mesmo pesadelo. Havia uma criatura dentro de mim, algo sombrio que acordava e começava a me consumir. E… ela falava comigo. Dizia que eu só sobreviveria se obedecesse ao mestre…
Engoli em seco, sentindo um calafrio percorrer minha espinha.
— Continuem observando os participantes — falei, minha voz firme, tentando esconder o nervosismo que tomava conta de mim. — Se algo estranho acontecer de novo, venham até mim. Imediatamente.
— E, Jorjen, preciso de um relatório com as informações dos outros participantes — acrescentei, tentando manter a voz firme. — Preciso me preparar para o baile. Agora que a questão de Nix não me preocupa mais, devo ser mais ativo. Preciso estar à frente de meus adversários.
Jorjen assentiu, ainda um pouco pálido. — Sim, jovem mestre. Prepararei tudo o mais rápido possível.
— Certifique-se de que não falte nenhum detalhe. Quero saber sobre alianças, rivalidades… qualquer informação que possa me dar vantagem. Não se esqueça de falar com Nix lá fora, tenho pressa nesse assunto.
— Entendido — ele respondeu, lançando um olhar rápido para Marcus antes de sair.
Enquanto a porta se fechava, respirei fundo. O baile seria um campo de batalha social, e qualquer fraqueza poderia ser explorada. Eu precisava estar pronto — tanto para os jogos políticos quanto para as sombras que, agora, pareciam se esconder nos pesadelos daqueles ao meu redor.
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