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    Na cama larga, sem a maciez e o calor dos corpos de Claire e Nix ao meu lado, a ausência pesava mais do que o silêncio. O colchão parecia maior, o lençol mais frio. Estiquei o braço instintivamente, buscando o toque conhecido de uma delas, mas só encontrei o vazio. Do lado de fora, um grilo solitário entoava seu canto constante, como se tentasse me fazer companhia em minha vigília forçada. Sorri sem humor, até os insetos tinham mais sorte que eu naquela noite.

    Não percebi quando o cansaço me venceu. Apenas mergulhei na inconsciência, e a escuridão me envolveu como um manto.

    Então, ouvi meu nome.
     

    A voz era doce, envolvente, melodiosa, uma lembrança distante que voltou com força demais, junto com a voz, veio o perfume que ela usava e o cheiro inconfundível de seu cachimbo. Meu coração se apertou antes mesmo que eu pudesse compreender o que estava acontecendo. Eu sabia quem era.
     

    Selune.
     

    Meu amor perdido. Minha mulher arrancada de mim pelas garras do avatar do deus do Vazio. Ela, que desaparecera na névoa junto com o filho que eu nunca nem soube que estava em seu ventre.
     

    A dor veio como uma lâmina fria atravessando meu peito. Doía lembrar. Doía mais ainda saber que eu continuava vivendo enquanto ela estava presa em algum lugar onde nem mesmo o tempo ousava tocar.
     

    Senti o gosto salgado das lágrimas escorrendo pelo meu rosto. No sonho, era como se eu tivesse voltado ao dia em que a perdi, e mais uma vez eu estava impotente.
     

    A culpa me sufocava. Eu, que me orgulhava de proteger aqueles que amava, não consegui proteger Selune. Ela confiara em mim, e eu falhara.
     

    E o pior era saber que não podia ir atrás dela. A névoa era um abismo sem retorno, e eu não podia simplesmente desaparecer nela. Não agora. Não com Nix esperando filhos meus. Não com Claire, com Pandora, com todos que dependiam de mim. O dever me amarrava à terra firme, me amarrava àqueles que me eram caros. Selune precisava de mim, mas todos os outros também. Isso doía demais.
     

    A cena mudou.

    Subitamente, eu estava em meu casamento. O altar diante de mim, as flores, as fitas… mas as noivas, Nix e Claire, estavam mortas. Pálidas, imóveis, com os lábios arroxeados e as mãos frias entrelaçadas às minhas. Eu não tinha conseguido salvá-las também.
     

    O horror me paralisou. Gritei, tentei soltá-las, mas os dedos delas se apertaram nos meus com força cadavérica. Senti o frio de sua pele em minha mão. O cheiro de morte.
     

    — Não fique assim, Lior… A culpa não é sua — a voz de Selune soou próxima, suave, quebrando o pânico com ternura. — Você virá quando puder. Eu estou aqui, esperando. Eu e nosso filho.
     

    Eu queria responder, dizer que não podia, que o caminho era impossível, mas as palavras não saíam. A confiança na voz dela era como uma faca que cortava de ambos os lados. Eu mesmo não acreditava mais em mim, mas ela acreditava.
     

    — Você virá… — repetiu a voz.
     

    Acordei com um sobressalto. O suor frio colava o lençol ao meu corpo, e eu respirava com dificuldade, tentando me livrar do peso invisível que apertava meu peito. O quarto estava escuro, o ar denso.
     

    Passei a mão no rosto. A lembrança das duas, mortas no altar, ainda queimava por trás das pálpebras. Era um sonho, eu sabia. Mas parecia mais uma premonição.
     

    Levantei, trêmulo. A garganta seca pedia água, qualquer coisa que me tirasse daquele torpor. Caminhei até a escrivaninha, mas a jarra estava vazia. Suspirei e saí do quarto, os pés descalços fazendo pouco ruído no chão frio do corredor.
     

    A mansão dormia, envolta em silêncio. Apenas as lamparinas mágicas tremeluziam nas paredes.
     

    Quando passei diante do quarto de Pandora, a porta se abriu com um rangido suave.
     

    Ela estava ali. Vestida com um conjunto noturno translúcido, o tecido leve desenhando suas curvas de um jeito quase cruel. Seu olhar se cruzou com o meu, e por um instante não consegui mover um músculo.
     

    — Não achei que viria — disse ela, sorrindo de modo suave, mas com algo de ferido no olhar. — Pensei que viria mais cedo para que eu pudesse… agradecer por ter salvo minha vida. Não uma, mas várias vezes.
     

    — M-mas… — tentei dizer algo, qualquer coisa que fizesse sentido.
     

    Ela inclinou a cabeça, lendo minha hesitação como quem decifra um livro aberto.
     

    — Ah… — murmurou, envergonhada, desviando o olhar. — Você não veio por isso.
     

    — Eu estava só indo pegar água — respondi, erguendo a jarra vazia nas mãos. — Está vazia.
     

    Por um instante, a decepção nela foi tão nítida que pareceu preencher o corredor. Seus olhos brilharam, e uma lágrima solitária caiu antes que ela pudesse esconder o rosto.
     

    la encostou a porta, deixando apenas uma brecha. Sua voz veio abafada.
     

    — Me desculpe por ter sido tão tola. Elas têm sorte, Lior. Cuide delas, está bem?
     

    — Vou cuidar. — Minha voz saiu baixa, sincera.
     

    A porta se fechou com um clique suave, e o corredor mergulhou novamente no silêncio.
     

    Continuei andando, e mais à frente ouvi outra porta se fechando. Nix. Eu sabia. Ela devia ter ouvido tudo.
     

    Suspirei fundo e desci até a cozinha. Peguei uma nova jarra, bebi a água direto da boca do recipiente. O frio do líquido desceu pela garganta como uma lâmina, mas limpou um pouco da amargura que o sonho e aquele encontro deixaram.
     

    Na volta, ao passar novamente pela porta de Pandora, ouvi um som abafado de soluços.
     

    Parei. Por um momento, minha mão chegou a tocar a madeira, mas me contive. Aquilo só pioraria as coisas. Ela precisava de espaço, e eu também.
     

    Segui adiante, voltando para o quarto. A cama ainda estava fria. O grilo continuava lá fora, incansável.
     

    Deitei, o olhar fixo no teto, tentando juntar os pedaços daquela madrugada estranha. O sonho, a lembrança de Selune, o encontro com Pandora, o ciúme silencioso de Nix…
     

    O coração ainda batia acelerado, um ritmo irregular que não pertencia à calmaria da noite.
     

    — Amanhã eu tento entender — murmurei, virando o rosto no travesseiro.
     

    O sono veio devagar, pesado, arrastando-me de volta para o escuro. Desta vez, sem sonhos. Sem vozes. Apenas o vazio acolhedor da exaustão.
     

    E assim, entre a culpa e o cansaço, adormeci. Amanhã seria o dia do casamento.

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