Índice de Capítulo

    A mão de Nix estava firme na minha, e a de Claire repousava no meu braço esquerdo. As duas caminhavam em silêncio, vestes ainda reluzindo sob a luz morna das tochas. Era impossível não reparar como ambas irradiavam uma espécie de paz, ainda que, em mim, o coração batesse pesado, como se o peso de tudo que tinha acontecido e que ainda iria acontecer, estivesse sobre meus ombros.
     

    Ao chegarmos na recepção, fomos recebidos com aplausos e saudações. Bandejas de taças circulavam entre os convidados, vinhos e licores servidos com destreza por criados que se moviam de maneira bem ensaiada. As mesas estavam adornadas com frutas, pequenos bolos, carnes finas e queijos raros trazidos de ilhas distantes. O cheiro era intenso, inebriante, mas o que mais me atingia era o contraste entre o calor da festa e o frio discreto que parecia se enroscar em mim desde o sonho da madrugada anterior.
     

    Os primeiros a se aproximarem para nos cumprimentar foram Lady Isolde e Lorde Tiberius Vulkaris. Minha mãe trazia um olhar que tentava disfarçar o seu orgulho, mas eu conseguia perceber. Tiberius, por outro lado, vinha com o porte firme e a expressão fechada. Talvez receoso das mudanças que a ascensão política de “Lior Aníbal” podia causar na nobreza imperial.
     

    — Lior Aníbal — ele disse, com um aperto de mão firme — Você nos honra com o convite. A Casa Vulkaris há muito não via uma união tão sólida. Um jovem talentoso e a herança dos Umbrani.
     

    — Parabéns — completou Isolde, com um leve sorriso. — Nix, Claire… vocês estão deslumbrantes.
     

    Dava para ver que sua alegria era genuína. Talvez meu pai se perguntasse porque Isolde se dava ao trabalho de ser tão gentil, mas a expressão de minha mãe não traía nosso segredo, que a cada pessoa que o conhecia, se tornava mais tênue. Olhei de relance para Calmon, para André e Alissande, pessoas que também conheciam o segredo da minha identidade. Será que eu tinha confiado nas pessoas erradas?
     

    — Obrigada, Lady Vulkaris — respondeu Nix, com uma reverência respeitosa. — Estamos honrados de ter vocês aqui conosco.
     

    Tiberius riu, satisfeito com o elogio. Isolde, porém, manteve o olhar fixo em mim por um segundo a mais do que o necessário. Não precisou dizer nada. Naquele breve instante, sua expressão dizia o que as palavras jamais poderiam: “tenho orgulho de você, meu filho.”
     

    Eles se afastaram pouco depois, sendo engolidos pela multidão, e logo surgiram outros rostos. Lenora, a bisavó de Claire, avançou com passos lentos, apoiada em uma bengala de prata. O véu delicado que cobria sua cabeça tremia com a brisa leve, e os olhos perceptivos, pálidos pelo tempo, esboçavam um leve sorriso.
     

    — Minha querida — disse ela, tocando o rosto de Claire. — Tua mãe teria se orgulhado de te ver. Você uniu nossa linhagem a um nome de valor.
     

    Claire sorriu, tímida, mas havia emoção real ali. Ela olhou para mim, e seu sorriso cresceu, aquele sorriso que um dia eu vi pela primeira vez quando ela ainda duvidava de si mesma, perdida entre intrigas familiares e a sombra de Zia. Era esse sorriso que eu queria proteger, acima de tudo.
     

    — E você, jovem Lior — disse Lenora, voltando-se para mim —, mantenha seu coração firme. Nem sempre o amor é uma bênção, mas é sempre uma escolha. Lembre-se que agora, é um Umbrani, como nós.
     

    Assenti, respeitoso. Eu me lembrava que um dos objetivos do casamento era me manter longe de intrigas. Ninguém viria me assediar com os Umbrani nas minhas costas. Mas minha união com Claire era mais que conveniência. 
     

    Os nobres começaram então a se aproximar em sequência. Havia cumprimentos, brindes, e sorrisos ensaiados. Entre eles, Okron, que havia me salvado em Brumora, com sua pele negra reluzente e barba cerrada, me deu um aperto de mão firme e um sorriso sincero. Me puxando de canto cochichou, brincando.
     
    — Pena que não fiz você conhecer minha neta primeiro. Quem diria onde chegaria, hein?

    Um tanto quanto envergonhado, devolvi uma risada.
     

    — Lior, meu amigo — disse ele, com a voz grave. — Que suas vitórias sejam tão numerosas quanto suas esposas.
     

    Ri, sem graça. Era o tipo de piada que só alguém como Okron podia fazer sem ofender.
     

    Logo em seguida veio o ancião da Casa Aníbal. Ele se aproximou com passos curtos, olhar desconfiado.
     

    — Lorde Lior — cumprimentou ele. — É uma honra ter alguém de nossa casa unindo-se à linhagem dos Umbrani. Foi uma jogada majestosa.
     

    — A honra é minha, venerável — respondi, com a reverência adequada. — Que nossa casa prospere.
     

    Ele assentiu, satisfeito, e se retirou. Eu deixei que ele se fosse com a falsa impressão de que eu estava fazendo aquilo por ser um jogador.
     

    Quando achei que o fluxo de cumprimentos tinha se estabilizado, uma figura familiar se destacou no salão: Pandora.
     

    Vestia um traje de seda azul-escuro, simples, mas impecável. O sorriso dela era luminoso, tão convincente que teria enganado qualquer um. Mas não a mim. E, ao que percebi pelo jeito como Nix apertou minha mão, não a ela também.
     

    — Pandora — disse Nix, abrindo um sorriso gentil. — Que bom te ver aqui.
     

    — E eu a vocês — respondeu ela, inclinando-se levemente. — O destino foi generoso em uni-los.
     

    Havia algo triste nos olhos dela. Por trás da fachada de alegria, havia o mesmo vazio que vi quando nos despedimos naquela madrugada, a certeza de alguém que havia sido esquecido pela própria sorte.
     

    — Você parece feliz — falei, tentando manter o tom leve.
     

    — E estou — respondeu, mas sua voz quebrou no final. — Por vocês.
     

    Nix percebeu, e seu olhar suavizou. Ela estendeu a mão, tocando brevemente o braço de Pandora.
     

    — Espero que um dia você também encontre paz — disse.
     

    Pandora sorriu. Mas havia lágrimas presas nas bordas dos olhos quando ela se virou e se afastou.
     

    A música mudou para algo mais vivo. O som de risadas, copos se chocando, o brilho das tochas refletindo no vinho. E então, o salão pareceu se abrir diante de mim, para dar passagem à figura que todos aguardavam: o Imperador Juliani.
     

    Ele veio acompanhado de Annabela, sua concubina oficial, e também,  Naksa e Esther. Sua presença impunha silêncio, e por um instante, até o ar pareceu hesitar em se mover. Por um instante achei que ela fosse saltar sobre mim.
     

    — Lior Aníbal — disse ele, com um sorriso que não chegava aos olhos. — Um homem que muitos observam com admiração. E alguns, com temor.
     

    A cada palavra, o peso político aumentava.
     

    — Majestade — respondi, inclinando-me levemente. — É uma honra.
     

    — A honra — replicou ele, olhando ao redor, como se falasse também ao público — é ver o Império crescendo em vigor. Jovens líderes, novas casas, novas alianças… e, claro, novas ambições.
     

    Annabela sorriu, sutil, segurando o braço dele. Sentia seu olhar me analisando.
     

    — Ouvi dizer — continuou o Imperador — que o povo tem falado muito sobre você. Dizem que é um homem que inspira. Que não teme o impossível. Isso é perigoso, Lior. Homens inspiradores tendem a queimar rápido.
     

    — O fogo purifica — respondi, sem pensar.
     

    Ele arqueou uma sobrancelha.
     

    — Sim. Mas também destrói tudo que toca. Os novos conhecimentos que traz, podem ser perigosos.
     

    O silêncio se estendeu por um instante. Nix e Claire ao meu lado permaneceram serenas, embora eu sentisse a tensão percorrer o ar.
     

    Juliani se aproximou um passo. Seu perfume era forte, mas o olhar, mais forte ainda.
     

    — O Império está prestes a mudar — disse ele, baixo o bastante para que apenas eu ouvisse. — Há forças que não podem mais ser contidas. Chamas se acendendo nos quatro cantos. Se não forem controladas, teremos um incêndio, e, não queremos isso, não é?
     

    Ele sorriu, sua expressão traindo a expectativa dos dias que viriam à frente.
     

    — de que lado você vai ficar, Lior, quando o incêndio começar?
     

    Ele disse que não queria incêndio, algum, e depois, que ele começaria. Não respondi. Não havia resposta segura.
     

    Ele se afastou, voltando ao centro do salão, deixando para trás o eco da pergunta. A minha resposta era óbvia. Eu nunca poderia perdoar tanta morte por motivos tão egoístas. Annabela tinha condenado muitos, só para manter ela e Juliani, na cabeça do Império por muitas gerações ainda.
     

    As taças voltaram a se erguer, as risadas recomeçaram, e o mundo fingiu normalidade. Mas dentro de mim, algo já ardia.

    A chama que o Imperador mencionou… talvez já estivesse acesa há muito tempo.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota