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    A cidade de Thallanor parecia sufocar sob o próprio medo. Ruas vazias, janelas fechadas às pressas, portas trancadas com tábuas, soldados imperiais ocupando esquinas como sombras de ferro. Em alguns pontos, o brilho das armaduras Manaclaste refletia a luz dos postes, criando a impressão de vultos espectrais observando tudo.

    O decreto de Juliani já se espalhava como uma febre, repetido em sussurros, em cartazes pregados às pressas, na vibração tensa no ar:

    “Traidores do Império serão julgados em praça pública.”
     

    Lenora. Pandora.

    E todos aqueles que ousaram fazer o mínimo: apoiar o lado certo. Desmascarar Juliani e Annabela.
     

    Eu sabia que o tempo havia acabado.
     

    Voltamos à minha mansão com certa pressa. A cada minuto que passava, eu sentia as bordas do Império se curvando sob a paranoia de Juliani. Se ficasse ali seria perigoso demais.
     

    Tinha que planejar rápido. Agir mais rápido ainda. Antes que viessem atrás de mim…
     

    Estava no salão principal quando ouvi passos leves se aproximando.
     

    Claire e Nix. Nervosas, preocupadas, tentando esconder o quão abaladas estavam.
     

    Claire mantinha a postura impecável, mas seus dedos tremiam. Nix mordia o lábio, inquieta, como se qualquer barulho pudesse ser o começo da invasão.
     

    — Está tudo pronto? — perguntei. Havia ordenado que todos, inclusive os serviçais, fizessem as malas.
     

    Claire apenas assentiu. Nesses momentos, sua eficiência brilhava. Aproximei-me e lhe dei um beijo na testa.
     

    Olhei para as duas sob a luz da lua que entrava pelas janelas.

    E tive a sensação terrível, visceral, de que estava prestes a perder tudo aquilo se permanecêssemos ali por mais um minuto.
     

    Eu não permitiria.
     

    — Precisamos ir — falei, firme. — Agora.
     

    Nix arregalou os olhos.
     

    — Agora?
     

    — A cidade não é segura. Juliani vai começar uma caçada. E não vai poupar ninguém que ele considere um obstáculo.
     

    Elas trocaram um olhar breve, e assentiram.

    Entreguei a ambas o saco com as pedras de ancoragem da ilha dos Argos. Elas distribuiriam para os serviçais, a única forma de garantir que todos poderiam atravessar comigo.
     

    Quando saímos, a carroça já estava cheia. Anne estava à frente, orientando os demais funcionários, as mãos firmes apesar do medo evidente em seus olhos. Um dos jovens segurava as rédeas com os dedos trêmulos. Claire e Nix subiram em silêncio, contendo a ansiedade apenas pela confiança em mim.
     

    Subi por último e dei a ordem de partir.
     

    Iríamos para a borda da ilha. Direto para a névoa.
     

    A lua alta parecia nos observar enquanto fugíamos. E, ao olhar para trás, para o contorno distante de Thallanor, vi manchas laranjas surgindo, focos de fogo e colunas de fumaça branca subindo grossas.
     

    “Eles já estão indo atrás dos opositores”

    Saímos no último instante.
     

    O coche diminuiu.
     

    — Senhor — o cocheiro engoliu seco — há soldados bloqueando a estrada…
     

    Mesmo se rompêssemos o bloqueio, nossa velocidade seria menor que a de um cavalo solitário. E os Manaclaste… bem, esses não se cansavam.
     

    Pedi que parasse.
     

    Os murmúrios começaram antes mesmo de eu descer.
     

    — Estamos perdidos…

    — Vamos ser presos…
     

    — Confiem no senhor de vocês — ralhou Anne, mais rápido até que Claire ou Nix. — Ele nunca nos deixou na mão.
     

    Ela acreditava tanto em mim que cheguei a temer decepcioná-la.
     

    Inspirei fundo.

    Senti a mana ao meu redor vibrar, como se o próprio ar estivesse aguardando minhas ordens. Os pelos dos meus braços se eriçaram.
     

    Ergui uma barreira ao nosso redor, nos envolvendo completamente.
     

    Depois do que eu tinha feito contra os fungos na ilha anterior, aquilo parecia trivial, brutalmente simples.
     

    Os soldados começaram a correr em nossa direção, gritando ordens. Duas esferas de fogo foram arremessadas pela linha de frente.
     

    — Mandou magos — murmurei, sentindo um sorriso involuntário se abrir. “Ele me teme”.
     

    Com duas conjurações simultâneas, tornei a carroça inteira invisível, e nos alcei aos céus. Não era bonito, nem muito suave.
     

    Os cavalos relincharam, apavorados, mostrando o branco dos olhos. Apenas ficaram parados porque estavam envolvidos pela minha magia. Meus serviçais empalideceram como se fossem desmaiar.

    — Respirem — pedi, ainda concentrado. — Vai passar.
     

    Conduzi a estrutura flutuante até a borda da ilha em alta velocidade. O vento castigava nosso rosto, carregando as últimas notas de fumaça vindo da cidade.
     

    Logo vi a névoa, nossa passagem para o novo lar.
     

    “Preciso pensar em um nome para ela”, pensei, uma ilha só minha, apenas alcançável por minhas âncoras.
     

    Quando pousamos, verifiquei se cada um deles carregava as pedras de ancoragem. Eles hesitavam diante da névoa espessa,  supersticiosos, temerosos, crentes nas histórias assustadoras que eram espalhadas desde a descoberta dos caminhos ocultos.
     

    Mas o medo de ficarem era maior.
     

    — Senhor, tenho família na cidade… — murmurou um deles.
     

    Outros começaram a falar também. Tive que pedir para ficarem quietos.
     

    — volto para pegar todos — afirmei. — Anne, quero que anote os nomes e o endereço.

    Ela assentiu, e então, um a um, entraram na névoa.
     

    Claire foi primeiro.

    — Vou para recepcionar eles do outro lado.

    Então o primeiro de meus serviçais entrou na névoa, a pedra brilhando levemente em sua mão. Vi todos entrar, então Nix seguiu, virando-se por um instante para me lançar um olhar cheio de expectativa.
     

    Apertei a pedra entre os dedos.
     

    E os segui.
     

    Para onde íamos, Juliani não poderia nos alcançar.
     

    E, naquela ilha recém-adquirida, eu construiria algo que o Imperador não teria acesso:
     

    Uma base de resistência. Um ponto de retorno.
     

    A névoa me cuspiu para fora como um pulmão exausto, e, de repente, meus pés afundaram na areia fria.
     

    A luz da lua refletia no mar calmo, criando um rastro prateado que levava até nós. A areia era branca, tão branca que parecia iluminar por conta própria. A água bateu nos meus tornozelos, morna, abafada, como se até o mar carregasse a tensão daquela noite.
     

    Atrás de mim, a névoa permanecia. Densa. Intransponível. Um muro sombrio separando o velho mundo do que, a partir daquele momento, seria o nosso.
     

    Os primeiros a atravessar estavam ali, alguns ajoelhados, outros apenas olhando ao redor, tentando acreditar que tinham realmente escapado. Claire estava um pouco mais à frente, a saia presa na mão para não molhar mais que o necessário, e Nix a acompanhava, o cabelo desgrenhado pela travessia.
     

    — Conseguimos — Claire murmurou quando me aproximei. Sua voz era baixa, quase um suspiro.
     

    Eu queria acreditar com a mesma facilidade. Mas meu peito parecia apertado demais para qualquer alívio.
     

    Ergui o olhar para cima da colina. A antiga mansão Argos se recortava contra o céu, uma silhueta escura de pedra, sólida, imponente. Era uma construção que tinja sido abandonada pelo interior da ilha, onde exerciam as atividades de mineração.
     

    Agora, porém, era nossa.
     

    Caminhamos pela areia até o início da trilha. A mansão se aproximava conforme subíamos, revelando janelas altas, grades enferrujadas e uma porta dupla pesadíssima, decorada com motivos marítimos, serpentes, conchas, correntes.
     

    Quando empurrei as portas, a poeira ergueu-se numa nuvem grossa, quase sólida.
     

    Poeira… e silêncio.
     

    O salão principal estava intacto, exceto pela camada espessa cobrindo cada superfície. Móveis robustos, tapetes enrolados, lustres que antes deveriam brilhar como estrelas, tudo esquecido no tempo.
     

    — Não parece que alguém entrou aqui nos últimos dez anos — Nix comentou, franzindo o nariz.
     

    Anne passou por nós como um furacão. Bastou um único olhar para ela começar a distribuir ordens aos serviçais, apontando, dividindo, organizando.
     

    — Poeira não mata ninguém — ela disse, erguendo a barra da saia. — Vamos deixar isso brilhando antes do amanhecer.
     

    Eu sabia que, se alguém conseguiria, seria ela.
     

    Deixei que o som das vassouras e panos enchendo o espaço tomasse o lugar do silêncio sufocante enquanto levava Claire e Nix para o andar superior. Subimos por uma escada de mármore manchado, passando por quadros tortos e nichos vazios.
     

    O quarto que seria nosso ficava na ala leste. Uma cama enorme, quatro colunas, cortinas rasgadas. Um armário de madeira escurecida. Varanda voltada para o mar.
     

    Nada que não pudesse ser transformado.
     

    Fechei a porta atrás de nós. Claire me observava com preocupação controlada. Nix, com inquietação mal disfarçada.

    Eu respirei fundo.
     

    — Eu preciso voltar — disse, antes que elas perguntassem. — Preciso de informações. Preciso saber quem Juliani prendeu, quem escapou, e o que ele planeja nos próximos dias.
     

    Nix cruzou os braços.
     

    — Você acabou de tirar todos nós de lá. Se voltar agora…
     

    — Se não voltar, Lenora morre. Pandora, também. E os anciãos restantes. — Passei a mão nos cabelos, tentando acalmar o pulso acelerado. — Juliani não vai esperar. E eu não posso salvar ninguém sem saber onde estou pisando.
     

    Claire deu um passo à frente. Sua mão tocou meu peito, firme.
     

    — Prometa que vai voltar.
     

    Eu a encarei, e, por um instante, desejei ser apenas um homem comum, com problemas comuns, em uma casa comum.
     

    Mas eu era quem eu era.
     

    — Eu prometo — respondi.
     

    Lhe dei um longo beijo, e quando nos separamos, cheguei em Nix.
     

    — Quero ir com você, sei me defender.

    Coloquei minha mão em seu ventre.

    — Eu sei que sabe, mas agora não posso deixar.

    Beijei sua boca, guardando seu gosto. Me abaixei, beijei sua barriga e depois sai antes de perder o impulso.

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