Capítulo 247: Coletando informações
A travessia de volta foi mais pesada do que eu esperava. A névoa parecia ter percebido que eu estava sozinho. Quase pude jurar que ouvia uma voz indistinta me chamando. Talvez fosse apenas minha mente insistindo em me lembrar da minha dívida com Selune, mas aquilo fez meu coração perder uma batida.
Quando finalmente emergi na ilha central de Thallanor, a umidade da madrugada grudou na minha pele, me fazendo arrepiar.
A cidade estava diferente. Não apenas silenciosa, estava tensa, carregando um silêncio estranho, opressivo.
Guardas nos telhados e nas torres mais altas. Patrulhas duplas nas pontes. O Império parecia respirar mais rápido, como um animal acuado procurando onde atacar primeiro.
Toquei meu rosto e usei uma magia de disfarce. Era mais que uma ilusão, podia sentir o estalo dos ossos se rearranjando sob a pele. Nas lembranças de Mahteal, nunca parecia tão incômodo.
Eu não podia ir para a casa dos Umbrani. Muito menos para a minha própria mansão. Juliani certamente tinha olhos atentos em tudo que me cercava. Precisava de informação. Precisava de um abrigo fora do radar.
E só havia um lugar assim.
Rosa.
Juliani sabia da minha ligação com a arena clandestina. Eles tinham me ajudado na batalha. Ela era minha sócia em vários negócios. Eu tinha certeza de que a arena já havia sido vasculhada, mas Rosa era prevenida. Não se deixaria capturar tão facilmente.
Lembrei-me de uma taverna que ela citara certa vez. “Bico de Corvo.” Iria tentar a sorte.
Caminhar pelas vielas que levavam até lá me trouxe uma sensação desagradável de déjà vu. Era como na primeira vez que fomos ao Matadouro: cheiro de ferro, suor e apostas desesperadas.
A taverna ocupava um prédio lateral de três andares, a luz interna piscando num amarelado doentio. Percebi a ausência de movimento. Bom sinal, ou péssimo.
Empurrei a porta. Dois brutamontes ergueram as armas instintivamente.
— Relaxem — ouvi a voz carregada de deboche. — Ele não veio arrancar a minha cabeça. Ainda.
Rosa surgiu da penumbra, sentada sobre uma mesa, pernas cruzadas, vestida com um casaco de couro que brilhava sob a luz fraca. O sorriso dela era venenoso por hábito, não por intenção.
Ela inclinou a cabeça, me avaliando dos pés à cabeça.
— O herói do povo voltou ao submundo. Deve ser sério.
Ela riu nervosa.
— Você acha que está disfarçado, mas as suas roupas ostentam o brasão da casa Aníbal. E essa espada aí, presente de Tiberius, qualquer guarda reconhece. Você teve é sorte de chegar aqui inteiro.
Fiquei sem graça. Na pressa, nem me dei conta. Toquei meu rosto, desfazendo o disfarce.
— Rosa — falei, seco.
— Nem um elogio? Nem um “saudades”? — Ela piscou. — E olha que eu até me arrumei.
— Não tenho tempo para jogos.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Nem eu. Ele mandou os cães direto pra arena. Queria nos pegar. Engraçado… poucos dias atrás nos dava medalhas por defender a cidade.
— Ele prendeu algum dos seus?
— Não. A arena estava fechada.
Suspirei aliviado, ela estalou o pescoço.
— Muito bem. O que posso fazer?
— Informações — respondi, cruzando os braços. — Do tipo que só você consegue.
Ela abriu um sorriso preguiçoso.
— Informações custam caro.
— Rosa…
— Tá, tá. — Ela suspirou teatralmente. — “Não é hora pra brincadeiras.” Você sempre diz isso quando o mundo está prestes a explodir.
Com um gesto, dispensou os dois capangas. A sala ficou só nossa. Ela serviu-se de um copo de líquido escuro antes de continuar.
— Então? O que precisa?
— Tudo sobre Juliani. O julgamento. O Palácio. Movimentação de tropas. Nomes dos presos.
O brilho irônico dela sumiu.
— Ah. Então é isso. — Rosa pousou o copo. — A cidade inteira está falando. Juliani reforçou o setor interno, principalmente o pátio central. A casa Vulkaris assumiu a guarda — Tiberius parece confortável no papel de cão de ataque.
Meu maxilar travou.
— Continue.
— Os julgamentos serão públicos. Um espetáculo. Dois dias a partir de hoje. Ele quer mostrar que quem desafia o Imperador… queima.
Meu sangue gelou.
— E Lenora?
Ela mediu minha expressão antes de responder.
— Na masmorra inferior. A mais profunda. Pandora também. Os Anciãos separados, para evitar resistência. — Rosa apertou os lábios. — Ouvi dizer que Juliani ordenou duas camadas de runas de selamento. As mesmas usadas em criminosos arcanos.
A sala pareceu encolher.
— Você está pensando em invadir aquele lugar, não é? — ela perguntou, semicerrando os olhos.
— Não tenho escolha.
— Não é o tipo de coisa que se faz sozinho.
— Na ilha dos Argos foi assim. Se estivesse sozinho, não teria exposto os outros a todo aquele risco.
O humor dela morreu.
— Lá você teve sorte. Aqui? Aqui é a toca do dragão.
— Não estou pedindo permissão.
Rosa me encarou longamente, como se pudesse enxergar além da minha pele.
— Você tem uma chance enorme de morrer.
— Talvez. — Dei um passo à frente. — Mas antes disso, vou tirá-las de lá.
Ela soltou um riso baixo e amargo.
— Sempre esse olhar… de quem acha que pode desafiar o destino só pela força da vontade.
— E o que venho fazendo desde que me conheço por gente? O destino tentou me parar várias vezes — sorri de canto. — E aqui estou.
Rosa respirou fundo, abriu uma gaveta e retirou um mapa. Estendeu-o sobre a mesa.
— As passagens subterrâneas ainda existem. Abandonadas, mas existem. Se entrar por aqui… — ela apontou um ponto no canto inferior. — Canal de drenagem dos jardins reais. Dá acesso à fundação antiga e às masmorras. Se não desabar na sua cabeça.
— Risco de colapso?
Ela sorriu de lado.
— Enorme. Perfeito pra você.
Dobrei o mapa com cuidado.
— Obrigado, Rosa.
— Ainda não me agradeça. — A voz dela ficou mais baixa. — Se conseguir salvar Pandora e Lenora… o Império nunca mais será o mesmo. E Juliani…
— Juliani e quem o apoiar vai entender o que é medo.
Ela se inclinou, séria como nunca.
— Cuidado, Lior. Homens como ele ficam mais perigosos quando sentem medo.
Assenti, sabendo que Annabela era quem eu devia temer, mas me mantive em silêncio.
Saí da taverna apenas o suficiente para sentir o ar frio da madrugada bater no rosto, e então parei. O mapa pesava sob o casaco, mas o peso real vinha do que eu precisava fazer. Eu não poderia simplesmente vagar pela cidade até encontrar um abrigo. Precisava de um ponto seguro. Um lugar onde pudesse operar sem ser visto, sem ser rastreado. Onde pudesse fazer meus planos.
Voltei a empurrar a porta antes que ela fechasse por completo.
Rosa ergueu uma sobrancelha.
— Esqueceu alguma coisa… ou mudou de ideia e veio mesmo tentar me matar? — provocou.
— Preciso de um lugar para trabalhar — falei sem rodeios. — Um ponto fixo. Seguro. Fora do alcance dos olhos de Juliani.
Ela me observou por alguns segundos, o suficiente para medir o pedido. Depois soltou um suspiro resignado.
— Claro que precisa. — Ela balançou a cabeça. — Venha, já estou lascada mesmo.
Ela desceu a escada lateral da taverna, e eu a segui. O piso antigo rangia sob nossos passos. Passamos por um depósito de barris, um corredor estreito e uma porta de metal com runas apagadas.
Rosa girou a chave e empurrou.
— Aqui. — Acendeu uma lamparina. — Não é o espaço mais glamuroso do mundo, mas ninguém vai te procurar neste buraco.
O quarto era simples: cama estreita, mesa pequena, algumas prateleiras vazias. Limpo, mas austero. Era o suficiente.
Mas Rosa ainda não tinha terminado.
Ela atravessou o cômodo, parou diante de uma estante presa à parede e puxou um dos livros tortos. A madeira rangeu e a estrutura inteira deslizou para o lado, revelando uma abertura escura atrás dela.
— Isto — disse ela — é o que realmente importa.
A lamparina iluminou o contorno de uma escada de pedra descendo para baixo da taverna. O ar ali era mais frio, carregado do cheiro de terra antiga.
— Túneis? — perguntei.
— Túneis — ela confirmou, com um sorriso de canto. — Velhos, muito anteriores à arena. Conectam este prédio a pelo menos outros quatro que eu sei. Talvez mais, se você tiver coragem de explorar o que está desmoronando.
Descemos juntos alguns degraus. O som de nossas respirações reverberava contra as paredes estreitas.
— Por aqui você pode sair em um armazém abandonado na Rua do Sal, uma antiga ferraria dois quarteirões acima, um estábulo desativado e um poço seco perto do canal velho. — Ela passou a mão na parede. — E se continuar por este lado… bom, há um trecho que leva direto para a fundação de um prédio imperial. Não sei qual, nunca fui até o fim. Mas existe.
Eu me vi respirando mais fundo, a adrenalina se ajustando como se meu corpo reconhecesse o que aquilo significava.
Liberdade de movimento. Rotas ocultas. Mobilidade.
Um começo.
— Perfeito — falei.
Rosa arqueou a sobrancelha, satisfeita.
— Achei que fosse gostar.
Subimos de volta. Ela fechou a estante secreta com um empurrão e trancou a porta do quarto.
— Fique o tempo que precisar — disse ela, agora sem pose, sem ironia. — Mas não morra aqui. Seria péssimo para os negócios.
— Vou tentar não arruinar seus negócios — respondi.
Ela bufou, quase rindo.
— Você arruína tudo onde encosta, Lior. Mas, estranhamente, sempre coloca algo melhor no lugar depois.
Fiquei em silêncio por um instante.
Ela virou de costas e caminhou até a escada, parando antes do primeiro degrau.
— Se você realmente for atrás delas… — sua voz ficou baixa — não falhe.
Assenti.
— Não vou.

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