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    O baile seria essa noite. Eu havia passado os últimos dias estudando os relatórios de Jorjen, absorvendo cada detalhe sobre os outros participantes. O ambiente na propriedade estava agitado, com servos correndo de um lado para o outro, ajustando os últimos detalhes para o evento. Gérard e sua mãe se preparavam na residência vizinha, e logo todos nós iríamos juntos na mesma carruagem. O peso das expectativas pairava no ar, misturado à tensão que crescia entre nós.

    Desde aquela noite com Selune, Nix tinha se mantido distante. O silêncio dela era mais doloroso do que qualquer discussão. Ela havia se mudado provisoriamente para o quarto de Selune, embora suas roupas ainda estivessem no nosso. Cada encontro era um lembrete de algo não resolvido, uma ferida que doía.

    Bati na porta do quarto de Selune, o coração pesado.

    — Nix, meu amor, precisamos provar nossas roupas agora… — chamei, tentando manter a voz firme, mas suave.

    A porta se abriu após alguns segundos que pareceram eternos. Nix saiu sem dizer uma palavra, sem me olhar nos olhos, e caminhou até o nosso quarto, onde faríamos a prova das roupas para o baile. Sua expressão estava fechada, mas seus olhos dourados escondiam algo que eu não conseguia decifrar — raiva, tristeza, ou talvez algo mais profundo, algo que ela não queria revelar.

    Antes que a porta se fechasse completamente, Selune me lançou um olhar profundo pelo vão da porta e tocou meu rosto com uma delicadeza surpreendente, um sorriso suave emoldurando seus lábios.

    — Tenha paciência com ela, Lior — murmurou. — Entender algo não é o mesmo que aceitar. Nix já nos perdoou em seu coração, mas ainda está lutando com isso. Ela te ama, nos ama…, mas não sabe o que fazer com a raiva que sente e isso a assusta mais do que qualquer outra coisa.

    Selune riu baixinho, o som leve, mas carregado de significado.

    — Acredite ou não, ela é mais fácil de amar alguém que você. — Seus olhos brilharam com uma ternura inesperada. — Ela até me pediu para me mudar para o quarto de vocês.

    — Ela pediu isso? — perguntei, surpreso.

    Selune assentiu, a expressão suavizando.

    — E você vai mesmo levá-la ao baile? — perguntou, franzindo as sobrancelhas. — Sabe o risco que corre.

    — Tenho um plano para isso — respondi, tentando parecer confiante. — Mas, sinceramente, espero que não precise chegar a esse ponto.

    Selune me lançou um olhar avaliador, o rosto sério por um instante.

    — Espero que esteja certo. Agora vá. Quando ela terminar de se trocar, peça que venha até aqui. Vou cuidar do cabelo e da maquiagem dela.

    Assenti, sentindo o peso das palavras dela. Cada passo para o nosso quarto parecia mais longo, carregado de uma tensão invisível. Quando entrei, encontrei Nix parada diante do espelho. Uma senhora ajustava o vestido em seu corpo. Seu olhar encontrou o meu através do reflexo, e por um momento, o silêncio foi tudo o que existiu entre nós. Um silêncio cheio de palavras não ditas, de sentimentos sufocados.

    — Você está linda! — exclamei, com sinceridade, tentando quebrar o silêncio entre nós. Ela corou levemente, mas manteve a expressão séria.

    — Selune vai te ajudar com o cabelo e a maquiagem — continuei buscando uma forma de alcançar o coração dela.

    Nix não respondeu de imediato. Terminou de ajustar o vestido e virou-se lentamente, o olhar dourado fixo em mim.

    — Você acha que pode simplesmente consertar tudo com palavras bonitas? — A voz dela era suave, mas firme, cada palavra carregada de uma emoção que parecia prestes a transbordar.

    Antes que eu pudesse responder, bateram à porta. Marcus entrou, trazendo uma caixa. Dentro, estavam nossas máscaras para o baile. A atmosfera no quarto mudou; uma nova tensão pairava enquanto eu abria a caixa.

    — Perfeitas… — murmurei, retirando a minha. Era uma máscara de raposa, elaborada e detalhada, com tons que combinavam perfeitamente com os traços de Nix.

    Eu havia escolhido essa máscara com um propósito claro. Mais do que um gesto simbólico para prestigiar minha pequena raposinha, era uma forma de proteger sua identidade de therian e seu status de escrava. A nobreza era conhecida por seu desprezo por outras raças, tratados apenas como escravos ou seres inferiores. Levar Nix ao baile era uma afronta dupla — arriscava a segurança dela e a minha posição. Levá-la ao baile poderia ser considerado um desrespeito e poderia ser visto como um insulto direto ao imperador, anfitrião da noite.

    Ao ver a máscara, os olhos de Nix se encheram d’água. O gelo em seu olhar se desfez, dando lugar a uma expressão que eu não via há dias. Ela se aproximou rapidamente, jogando-se em meus braços, para o horror da senhora que ajustava seu vestido.

    — Menina… vai amassar todo o seu vestido! — protestou a senhora, a voz alarmada.

    Mas Nix ignorou o aviso, apertando-se contra mim. Por um momento, o tempo pareceu parar. A dor e a distância dos últimos dias se dissolveram naquele abraço, e tudo o que restava era a conexão que nos unia, mais forte do que qualquer obstáculo.

    — Obrigada e me desculpe — sussurrou Nix, a voz embargada.

    — Não há nada a desculpar…

    Mais tarde, prontos, balançávamos na carruagem em direção ao Palácio Imperial. A tensão era palpável, silenciosa. Gérard me observava de canto de olho, o olhar avaliando não apenas a mim, mas principalmente a Nix. Ele sabia bem o que ela era — uma vulpina. Eu contava com o silêncio dele, confiando que revelar a verdade traria mais desonra à Casa Aníbal do que qualquer benefício. Afinal, agora eu era Lior Aníbal, e qualquer escândalo atingiria diretamente nosso nome.

    A carruagem avançava lentamente pela longa fila de veículos luxuosos, cada um mais ornamentado que o outro. Cada metro que percorríamos, a entrada do Palácio Imperial se aproximava, e meu coração batia mais forte. Minhas pernas balançavam nervosamente, incapazes de ficar imóveis. Nix percebeu e apertou minha mão, seus dedos finos e firmes trazendo um momento de calma ao meu turbilhão interno. Olhei para ela e vi a determinação em seus olhos dourados. Um gesto simples, mas que me ancorou.

    Ao chegarmos à entrada, pajens uniformizados, escravos, percebi com um olhar mais atento, recebiam os convidados. Eles nos conduziam por um longo tapete vermelho que se estendia desde o belíssimo jardim de entrada até as imensas portas do Palácio. O cheiro das flores era forte, quase opressivo, uma mistura de perfumes raros. Lâmpadas mágicas iluminavam o caminho com uma luz etérea quase irreal.

    Entre as sombras das colunas de mármore, percebi o brilho das armaduras Manaclastes, sentinelas imóveis, mas atentos. Sabia que meu pai devia tê-las cedido ao imperador para a segurança da noite. Eram uma tecnologia exclusiva dos Vulkaris, um símbolo de poder e controle.

    Na entrada principal, nossos convites foram cuidadosamente inspecionados. Seguimos, levados por um escravo, até um salão monumental. O luxo era sufocante. Lustres de cristal pendiam do teto altíssimo, e as paredes eram cobertas de tapeçarias que contavam histórias antigas do Império. O chão de mármore refletia o brilho das luzes, e uma orquestra tocava suavemente ao fundo.

    Várias mesas estavam dispostas ao redor de uma imponente mesa central, elevada em uma plataforma. Era ali que as figuras mais importantes do Império se encontravam. Reconheci imediatamente meu pai, Tiberius Vulkaris, o patriarca da Casa Vulkaris, sentado com a postura rígida e o olhar severo, como sempre. Ao seu lado, minha bisavó materna, Amara Nymeris, observava tudo com uma expressão de calma impenetrável. Matriarca da poderosa Casa Nymeris, a quem os Aníbal serviam, sua simples presença parecia carregar o peso de séculos de tradição.

    Uma figura inesperada chamou minha atenção: Okron. O que ele estava fazendo na mesa central? Não fazia ideia. A simples presença dele ali parecia deslocada, como uma peça fora do lugar em um jogo mortal de poder e intrigas. Algo estava acontecendo, e eu não sabia o quê.

    Nix apertou minha mão novamente, desta vez com mais força. O nervosismo dela se tornava palpável, mas não tive tempo de perguntar nada. Fomos conduzidos até nossa mesa, situada em uma modesta localização no salão. Era o lugar destinado aos representantes de casas menores ou vassalas — uma lembrança silenciosa de nosso lugar naquela hierarquia brutal.

    Quando estávamos prestes a nos sentar, percebi que Nix havia estacado. Seu corpo estava rígido, como se o tempo tivesse congelado ao redor dela. Segui seu olhar e vi um homem em uma das mesas próximas, a uns cinco metros de distância. O rosto austero, o porte imponente, a cauda… Era um therian, mas lupino. Sua postura era desafiadora, a cauda exibida com orgulho, como um sinal de superioridade. Ele estava sentado com outros de raças diversas, talvez diplomatas ou emissários que mantinham contato com o Imperador.

    Por um instante, senti um alívio: a presença de outros therianos ali significava que Nix não seria tão malvista quanto eu temia. Talvez a situação não fosse tão delicada quanto parecia. Era perfeito… ou assim pensei, até ouvir a voz trêmula dela.

    — Foi ele… — murmurou Nix, a voz quase inaudível, mas carregada de uma emoção crua, como uma ferida aberta. — Foi ele quem invadiu nossa terra… fez a mim, minha irmã e meus pais escravos… foi ele…

    Sua garganta começou a produzir um rosnado baixo, gutural, como se a raiva estivesse prestes a transbordar. Seus olhos dourados, geralmente doces e vibrantes, estavam agora sombrios, fixos na figura do lupino como uma presa à espera do momento certo para o ataque.

    Senti um frio na espinha. Coloquei uma mão firme sobre o ombro dela, tentando ancorá-la no presente, afastá-la do turbilhão que, claramente, a puxava para o passado.

    — Nix… — murmurei, a voz baixa, mas firme. — Respire. Não aqui… não agora.

    Ela me olhou, os olhos brilhando com lágrimas não derramadas, misturando dor e raiva. Sua mão tremia ao segurar a barra do vestido, os dedos crispados, como garras prestes a atacar.

    — Eu devia… — começou, mas sua voz se perdeu, engolida pela mágoa.

    — Você é mais forte do que ele — sussurrei. — E vamos resolver isso juntos… Mas não aqui.

    Seus olhos encontraram os meus, e por um momento, o tempo pareceu parar. O rosnado diminuiu, mas a tensão permanecia, vibrando entre nós como uma corda esticada ao limite.

    O baile apenas começara, e a noite já prometia ser muito mais perigosa do que eu previra.

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