Índice de Capítulo

    Eu estava sentado à mesa, alheio ao burburinho ao meu redor, a mente ainda imersa na conversa com minha mãe. Tudo havia corrido perfeitamente até então, mas a tensão persistia. Foi Nix quem me arrancou da apatia, tocando meu braço levemente.

    — Olhe, Lior. As portas para o jardim foram abertas…

    Segui seu olhar e vi os jovens começarem a se dirigir para fora. O verdadeiro baile estava apenas começando.

    Os jardins eram vastos, iluminados próximos ao salão. Em uma área com calçamento, uma grande fonte reluzia sob a luz das lanternas. Mais ao fundo, o jardim se fundia em um bosque, onde a iluminação era mais sutil. Caminhos sinuosos se espalhavam entre árvores, e pavões passeavam displicentemente pelo gramado.

    Os líderes das equipes logo se viram cercados por grupos de jovens. Outros se reuniam conforme os laços de sangue: irmãos, primos, formando pequenos círculos. Alguns que haviam se aproximado durante as danças procuravam-se novamente, criando uma teia de alianças e intrigas silenciosas.

    Caminhava de mãos dadas com Nix, atento aos movimentos ao nosso redor. Foi quando percebi Eryk Forlorn se aproximando, acompanhado de Niara, filha de Okron e líder da equipe Alce, além de outros dois jovens desconhecidos. Eryk apontou para mim, a voz carregada pela bebida.

    — É esse aí.

    Parei, colocando Nix sutilmente atrás de mim.

    — O que é que tem eu? — perguntei, a voz firme.

    Um círculo de curiosos começava a se formar. Exatamente o que eu esperava.

    — Ele trouxe uma vulpina para o baile… — começou Eryk, o tom venenoso.

    — O Imperador também — cortei, antes que ele continuasse. — Ou você não prestou atenção nos convidados de hoje? — referi-me à mesa dos não-humanos.

    — Mas ele não convidou nenhum escravo sujo. E você sim, seu desgraçado! — rosnou Eryk, avançando um passo.

    — Ele… Que intimidade com o Imperador, hein? — provoquei, o sorriso controlado.

    Os murmúrios aumentavam. Vi rostos conhecidos entre a multidão: Kael, Gérard, pálido como um papel, e Cassiopeia, que observava à distância, atenta. Claire também estava lá, o olhar frio e calculista.

    — Você está com ele? — perguntei a Niara, lançando um olhar incisivo. — Cuidado. Ele vai te arrastar para o buraco junto com ele. Falo por consideração ao seu pai. Gosto muito dele.

    Niara hesitou.

    — Você conhece meu pai?

    — Não interessa! — Eryk a interrompeu bruscamente. — O que importa é que ele trouxe uma escrava para um baile imperial. Um desrespeito sem tamanho. Você está frito, Lior. Acabou para você.

    A tensão atingiu o ápice. Os jovens ao redor cochichavam, os olhares fixos em nós. Então, Nix deu um passo à frente, saindo de trás de mim. Com um gesto decidido, retirou a máscara.

    — Quem você está chamando de escrava?

    A expressão de Eryk congelou. Ele esperava ver a marca em sua testa, mas encontrou apenas o olhar firme e desafiador de Nix.

    — Olha aí… Eu falei! Ela é uma vulpina. Ele tirou a marca só por causa do baile! — Eryk insistia, desesperado para manter sua narrativa.

    Calmamente, tirei do bolso alguns papéis dobrados e os entreguei a Niara. Eram documentos oficiais, carimbados e selados. Ela os examinou, a expressão de surpresa crescendo a cada linha lida.

    — Ela se chama Nix de Sylvania — declarei. — É uma exilada de sua terra natal, filha do xamã de sua tribo. Isso lhe confere um status semelhante ao de uma nobre de uma Casa menor. Sua terra está em guerra civil, e ela pediu asilo em nosso império. Foi concedido, junto com a cidadania.

    O silêncio ao redor era quase palpável. Niara olhava para Eryk com claro desgosto, e outros jovens desviavam o olhar, constrangidos.

    — E, devido ao status dela — continuei, a voz firme —, quero deixar claro a todos que a ajudo desde que chegou ao império. E que ela é, oficialmente, minha noiva.

    Eryk desapareceu na escuridão do bosque, o som de seus passos apressados ecoando até se dissolverem na noite. O círculo de jovens começou a se dispersar, os murmúrios diminuindo à medida que a atenção se voltava para outros grupos e conversas.

    Niara se aproximou de nós, ainda desconfortável.

    — Me desculpe — disse ela, com um tom sincero. — Não deveria ter dado ouvidos a ele.

    — Não se preocupe, não foi nada — respondeu Nix, com um sorriso gentil. Ela estendeu a mão para Niara, que aceitou o gesto. — Nix.

    — Niara — apresentou-se a garota, agora com um semblante mais relaxado.

    Eu observei o encontro das duas, sentindo a tensão se dissipar aos poucos. Mas a sombra do passado ainda pairava, e precisava ser abordada com cuidado. Não queria que informações distorcidas chegassem ao pai dela, ou que ele pensasse que eu estava escondendo algo.

    — Não sei o que Eryk lhe falou — comecei, com um tom firme, mas honesto. — Mas algumas partes eram verdade.

    Niara arqueou uma sobrancelha, surpresa. Nix me lançou um olhar breve, mas compreensivo. Não era hora de esconder a verdade.

    — Quando a conheci — continuei —, ela havia sido confundida com uma escrava. Chegaram a marcá-la, sim. Mas ao saber de sua história, fiz o que pude para ajudá-la a resolver a situação e conseguir sua cidadania.

    Niara assentiu, absorvendo cada palavra. Eu podia ver a dúvida inicial sendo substituída pela compreensão.

    — Inclusive, seu pai me ajudou a lidar com Eryk uma vez, em Brumora — acrescentei. —   Eryk estava no meu pé, e até me incriminou. Acredito que, sem a ajuda de Okron, as coisas teriam sido muito mais difíceis.

    Niara esboçou um sorriso tímido.

    — Isso soa como algo que ele faria. Ele sempre foi justo, embora… rigoroso.

    — Rigoroso, mas correto e generoso — concordei. — E esse é o tipo de aliado que todos precisamos.

    Ela olhou para Nix e depois para mim, como se estivesse pesando nossas palavras.

    — Vou falar com meu pai…, mas para esclarecer tudo. Não quero que Eryk envenene mais ninguém com suas mentiras.

    — Agradecemos — disse Nix, com sinceridade.

    Niara fez um gesto de despedida e se afastou, a expressão determinada. Enquanto a observávamos partir, senti o peso de mais um obstáculo superado. Mas o jogo estava longe de terminar.

    — Isso foi arriscado — sussurrou Nix, apertando minha mão.

    — Concordo, mas era necessário.

    Pouco tempo depois, um jovem de cabelos longos e cacheados, pele oliva e corpo magro, mas bem delineado, aproximou-se de mim e de Nix, acompanhado de uma garota que, pela semelhança nos traços, provavelmente era sua irmã ou prima. Ele exibia um ar de dândi, a postura afetada e o sorriso desdenhoso. Ela, por outro lado, mantinha uma expressão de indiferença fria, como se tudo ao redor fosse banal demais para merecer sua atenção. Seus olhos, no entanto, denunciavam um interesse dissimulado.

    — Belo showzinho… — começou ele, o tom impregnado de sarcasmo, os olhos fixos em mim. — Mas isso não muda uma coisa: como você pôde trazer uma therian para cá? E ainda por cima… bradar aos ventos que ela é sua noiva? Patético.

    A afronta me pegou de surpresa. As palavras dele cortaram como lâminas afiadas, e por um momento, hesitei, buscando uma resposta adequada. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele prosseguiu, aproveitando a vantagem daquele silêncio momentâneo.

    — Eu te desafio! — anunciou, a voz carregada de arrogância. A garota ao seu lado soltou uma risada baixa e abafada, quase como um sussurro, o som ecoando de maneira incômoda.

    — Acho que duelos são proibidos aqui no baile — respondi, tentando manter o tom firme, embora sentisse o peso dos olhares ao redor.

    — Não se não usarmos mana ou armas… — Ele sorriu, o desafio evidente em cada palavra.

    — E como vamos duelar então? — Minha surpresa era genuína, e a curiosidade se misturava à tensão crescente.

    — Com os punhos. Como homens de verdade.

    As palavras dele, carregadas de provocação, pairaram no ar. Não havia como recusar sem perder o respeito dos presentes. Mesmo sabendo que aquilo não passava de uma demonstração vazia de orgulho, o código não escrito daquelas casas exigia que eu aceitasse.

    — E como vamos fazer isso? — perguntei, já resignado ao inevitável.

    — Simples. Tiramos nossos casacos para não sujá-los e trocamos socos. Já ouviu falar de pugilismo? — Ele sorriu, os olhos brilhando de excitação. — Lutamos até que um de nós caia.

    Assenti lentamente, sentindo o peso de cada olhar que se fixava em nós. Tirei minha casaca e, em seguida, minha camisa, entregando-as a Nix. Fiquei com o peito nu, os músculos tensos, a pele arrepiada mais pela expectativa do que pelo frio da noite.

    Meu adversário fez o mesmo, retirando a própria casaca com gestos exageradamente teatrais. Seus olhos nunca deixaram os meus, refletindo a mesma mistura de desafio e desprezo. A garota continuava rindo, aquele som baixo e quase venenoso perfurando o silêncio. Nix me observava com uma expressão tensa, seus olhos dourados brilhando de preocupação.

    Enquanto começávamos a circular um ao outro, medindo a distância, percebi que uma pequena multidão já se formava ao nosso redor, atraída pelo embate. Murmúrios ecoavam entre os jovens, um misto de curiosidade e empolgação. Entre os rostos conhecidos, identifiquei Claire. Ela me observava de forma intensa, os olhos brilhando com algo que eu não conseguia decifrar — curiosidade? Desconfiança? Admiração?

    A tensão era palpável, quase tangível no ar. Embora meu treinamento fosse focado em combate mágico, sabia que as alterações em meu corpo me dariam alguma vantagem. Cada músculo e fibra havia sido transformado, refinado, e mesmo sem usar mana, isso seria meu trunfo.

    Meu oponente, Joaquim, exalava confiança, a postura de um lutador experiente e seguro. O primeiro golpe veio rápido e forte, tão poderoso quanto eu imaginava para alguém no terceiro círculo completo. Decidi não esquivar, mas absorver o impacto em minha guarda, avaliando o potencial de seus ataques. A força era impressionante, mais do que o esperado, mas nada que eu não pudesse suportar.

    — Bom golpe. — Comentei entre dentes, mantendo os olhos fixos nele.

    Ele não perdeu tempo. Investiu com uma saraivada de socos, rápidos e precisos. Esquivei de alguns, defendi outros, mas um direto acertou meu abdome com força suficiente para fazê-lo sorrir.

    — Minha vez. — Respondi, devolvendo os golpes. Meu punho acertou sua cintura com um impacto que o fez se curvar, a dor refletida em sua expressão — mas, para minha surpresa, ele sorriu novamente.

    — Você é forte demais. — Disse, recuperando o fôlego. — Não faz sentido… Seu círculo é menor que o meu, mas não sinto você mais fraco.

    — Sou um mago. — Respondi, com um leve sorriso.

    Ele me olhou, confuso, quase como se eu tivesse acabado de contar uma piada absurda.

    — Um mago? — Repetiu, perplexo. — Especialista em corpo, talvez? Resistência física?

    — Não. Apenas um mago. — Arqueei a sobrancelha, notando sua surpresa.

    Os olhos dele carregavam uma mistura de respeito e curiosidade enquanto trocávamos mais golpes. Com tantos espectadores, sabia que não poderia demonstrar todo meu potencial. No entanto, Joaquim percebia que eu segurava parte de minhas habilidades.

    — Sou Joaquim. — Ele disse, enquanto desferia mais um direto, quase arrancando minha cabeça.

    — Lior. — Respondi, esquivando e devolvendo com um uppercut.

    Trocamos mais alguns golpes. Havia algo diferente no jeito que ele se movia, como se a luta não fosse apenas sobre força ou técnica. Foi então que ele falou, quase baixo demais para que eu ouvisse:

    — Me desculpe. — As palavras saíram carregadas de sinceridade, pegando-me completamente desprevenido.

    — Pelo quê? — Perguntei, franzindo o cenho.

    — Eu tive inveja de você. — Ele hesitou, desviando o olhar. — Da sua coragem. Foi por isso que te desafiei.

    A confissão me pegou de surpresa.

    — Coragem? — Repeti, ainda focado na luta.

    — Sim. Sua coragem. — Ele parou por um momento, como se escolhesse as palavras. — Você desafia tudo o que as nossas casas representam. Esse noivado com uma therian… foi um soco na cara de todos. Você não tem medo de ser quem é, de se opor a esse jogo de máscaras e tradições vazias.

    As palavras dele ecoaram dentro de mim, ressoando mais fundo do que eu gostaria de admitir.

    — Queria ter a coragem de amar quem eu realmente amo… — Ele disse, baixo, quase para si mesmo.

    Houve um instante de conexão, uma compreensão silenciosa entre nós.

    — Essa luta não faz mais sentido. — Murmurei, observando o círculo de jovens ao redor, vibrando a cada golpe. — Mas eles querem um espetáculo.

    — Então vamos dar a eles. — Joaquim sorriu e investiu novamente.

    Trocamos golpes por longos minutos. Sua técnica era superior à minha, e ele acertou mais golpes do que eu gostaria de admitir. Meu rosto estava marcado por pequenos cortes e hematomas, mas ele não estava em melhor estado. O rosto de Joaquim era uma máscara de sangue e inchaço, os olhos mal abertos pela dor.

    Exaustos, caímos no chão, sentados lado a lado, recuperando o fôlego.

    — Obrigado. — Disse ele, a voz ofegante.

    — Pelo quê? — Perguntei, limpando o sangue do lábio.

    — Por pegar leve. Por não me humilhar.

    — Você merece respeito, Joaquim. Eu entendi a sua dor. — Respondi, respirando fundo.

    Fechei os olhos por um instante, sentindo a mana circular dentro de mim. Trouxe à tona as lições que minha contraparte sombria havia me ensinado, e minha mão se iluminou com um brilho dourado, uma energia quente e reconfortante.

    Joaquim recuou instintivamente quando aproximei a mão de seu rosto, mas depois relaxou. Toquei sua pele ferida, e a luz começou a curar seus ferimentos. Em segundos, cortes desapareceram e hematomas sumiram.

    — Então você é um mago mesmo… — Murmurou, surpreso.

    Passei a mão no meu próprio rosto, repetindo o processo. A dor cedeu, e meu corpo se renovou.

    — Magia de cura… — A voz de Claire rompeu o silêncio. Ela ainda estava ali, imóvel, os olhos fixos em mim. Sua expressão era um misto de admiração e algo mais, algo que não consegui decifrar.

    — Incrível. — Disse, quase em um sussurro. 

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