Capítulo 32: O interrogatório
Depois do último anúncio do Imperador, dando pontos a Valis, o baile perdeu qualquer vestígio de celebração. Permanecemos no salão por um tempo, mas o ambiente estava carregado. O semblante dos participantes era um reflexo do que sentiam: a tensão e a frustração de estarem diante de algo que não podiam controlar. Os únicos que pareciam realmente se divertir eram Valis e Elizabeth. Dançavam como se tivessem acabado de vencer uma guerra, indiferentes ao caos que haviam provocado, e alguns poucos jovens que queriam aproveitar a onda se juntavam a eles.
Jorjen nos observava, a mim e a Gérard, com um olhar estranho — como se já fôssemos cadáveres andando. Uma previsão?
A viagem de carruagem de volta foi silenciosa. Mesmo assim, senti que a noite havia sido proveitosa. Não pelo resultado, mas pelas peças que se moviam no tabuleiro. Era um jogo cruel, e Valis acabara de mostrar o quão imprevisível poderia ser.
Ao chegar, Selune me aguardava na entrada, os olhos atentos e cheios de curiosidade. Ela não perguntou nada, mas o olhar dela era como um interrogatório silencioso.
— Depois… — murmurei, cansado. Percebi que ela queria me dizer algo, mas engoliu as palavras, respeitando meu cansaço.
Fui para o quarto com Nix. Tudo que eu queria era dormir.
Na manhã seguinte, pedi que o café fosse servido no quarto. Para minha surpresa, Selune foi quem trouxe a bandeja. Com a familiaridade de quem já se sentia em casa, ela arrumou tudo sobre a mesa e começou a se servir sem esperar por mim ou por Nix.
— Não vai me contar o que aconteceu? — perguntou, com a voz calma, mas o olhar afiado.
Suspirei e resumi os acontecimentos do baile. Falava a contragosto, como se cada palavra relembrasse minha impotência diante daquela situação. Cada movimento mal calculado parecia ecoar na minha mente.
— Nem você, nem ninguém poderia prever essa jogada dele — disse Selune, como se lesse meus pensamentos. — Mas estou mais interessada nessa Elizabeth do que nesse Valis. Me parece que ela está por trás dele.
Nix, sentada ao meu lado e devorando um pão doce, assentiu com a boca cheia, os olhos dourados fixos em Selune.
— Outra coisa — Selune, continuou servindo-se de mais chá —, não acho que sua mãe tenha acreditado na sua conversa. Em breve, ela vai mandar te buscar para uma conversa. Esteja preparado. Talvez seja perigoso.
Como se previsse o futuro, antes mesmo de terminarmos o café, alguém bateu à porta. Era Jorjen. Ele trazia um convite de Lady Isolde. Ela queria me encontrar em um restaurante no final da tarde, e havia deixado claro que esperava que eu fosse sozinho.
— Jovem mestre, o patrocínio de Lady Isolde pode atrair olhares indesejados para você — aconselhou Jorjen, com um tom preocupado.
— Não se preocupe com isso — respondi, tentando manter a voz firme.
Ele franziu o cenho, claramente insatisfeito com minha resposta. — Não tem como não me preocupar. Minha prima está considerando seriamente retirar Gérard da competição. As Grandes Casas se protegem entre si, mas jovens de talento questionável, como os de casas menores, estarão por conta própria. À mercê da sorte. E, pelo que vejo, este torneio será brutal e implacável.
— Mais um motivo para garantir o patrocínio de Lady Isolde — argumentei. — Com a Casa Vulkaris ao meu lado, estarei mais seguro.
Ele me encarou por um instante, os olhos carregados de uma preocupação que beirava a frustração. — Ou você será um alvo ainda mais atraente…
Sem esperar por uma resposta, ele se virou e saiu, deixando um silêncio pesado no ar. Eu, Nix e Selune permanecemos à mesa, terminando nosso café da manhã em silêncio. A tensão que ele deixara para trás pairava sobre nós como uma sombra.
Selune quebrou o silêncio, sua voz baixa, mas carregada de firmeza:
— Ele não conhece toda a sua história.
— Talvez não — respondi, cruzando os braços, pensativo. — Mas isso não muda o que ele disse. Se aprendi alguma coisa ontem, é que não posso vacilar. E, definitivamente, não posso me dar ao luxo de ter piedade.
Houve um instante de silêncio após minhas palavras, pesado e significativo. Olhei para ambas as garotas, sentindo o peso das escolhas que eu havia feito até aquele momento. Respirei fundo e deixei sair o que estava preso dentro de mim.
— Em algum momento, as coisas ficaram fáceis demais. Confortáveis demais. — Minha voz estava baixa, mas havia uma convicção que não podia ser ignorada. — Perdi o foco, me afastei dos meus objetivos. Sinto que acabei me acomodando. Em vez de liderar, estou sendo levado.
Fitei os olhos prateados de Selune e os dourados de Nix, buscando uma conexão.
— Preciso de ajuda para meus próximos passos.
Nix, ainda mastigando um pedaço de pão doce, parou por um momento e assentiu em silêncio, seus olhos brilhando com uma compreensão quase instintiva. Ela não precisou dizer nada. O mundo em que vivíamos não era gentil com os fracos, e todos ali sabiam disso.
Selune apoiou o cotovelo na mesa e acendeu seu cachimbo, liberando uma fumaça prateada que subiu lentamente, misturando-se à luz suave da manhã. Seus olhos prateados, fixos em mim, pareciam enxergar além do que eu queria mostrar.
— Primeira lição, então. — Sua voz era firme, quase cortante, mas carregada de uma sinceridade inegável. — Não peça ajuda como quem pede permissão. Peça como quem dá ordens. Você é Lior, e o mundo lá fora precisa se lembrar disso.
Ela deu uma tragada longa, soltando a fumaça com um suspiro quase teatral antes de continuar.
— Lembre-se, gosto de você pela promessa de quem você será. Pelo seu potencial. Não me decepcione.
Aquelas palavras atingiram como um golpe certeiro. Não eram apenas uma crítica; eram um desafio. Selune não via o homem que eu era, mas o homem que ela acreditava que eu poderia me tornar. E isso, de alguma forma, pesava mais do que qualquer julgamento que eu já tivesse enfrentado.
Eu endireitei a postura, sentindo uma mistura de orgulho ferido e determinação renovada.
— Eu não pretendo decepcionar ninguém. Muito menos você.
O leve sorriso que surgiu nos lábios de Selune foi quase imperceptível, mas estava lá, uma promessa silenciosa de que ela estaria ao meu lado — contanto que eu me mantivesse à altura.
Aquelas palavras ficaram pairando no ar, um lembrete do que eu deveria ser. Nix terminou de mastigar, limpou as mãos no guardanapo e sorriu levemente.
— Se isso significa que temos trabalho a fazer, acho que é bom começar logo.
Eu ri, apesar de mim mesmo, sentindo um vislumbre de determinação reacender em meu peito.
— Vamos começar agora. O que está por vir não vai esperar por nós.
Passamos o dia inteiro treinando. Selune, determinada como sempre, empenhava-se em me ajudar a completar meu terceiro círculo de mana. A energia fluía pelo meu corpo alterado com uma intensidade quase sobrenatural. O progresso que eu havia alcançado nos últimos seis meses equivalia a anos de esforço para um jovem comum. Ainda assim, não era suficiente. A imagem de Valis Nonnar, abatendo um oponente com um único golpe, assombrava minha mente. Eu podia sentir a diferença entre nós. Mesmo que eu pudesse replicar aquele feito, teria que ativar os poderes ocultos do meu corpo, canalizando minha mana de forma extenuante. Não era a mesma coisa. Ainda não.
Quando chegou a hora de me preparar para o encontro com minha mãe, fui tomar banho. A água quente não dissipou a tensão. Vesti-me com cuidado, escolhendo um traje que equilibrasse respeito e poder. Ansioso, mas focado. Não era apenas um encontro: era um teste.
Ao chegar ao local marcado, reconheci imediatamente o restaurante. Um lugar elegante, frequentado apenas por nobres e mercadores influentes. O segundo andar inteiro estava reservado para o encontro. Dois guarda-costas me escoltaram até lá, suas expressões impassíveis, mas atentos a cada movimento meu.
O ambiente era luxuoso, com cabines discretas que garantiam conversas privadas. A penumbra dominava o espaço, exceto por uma cabine iluminada ao fundo. Minha mãe estava lá, esperando por mim, uma taça de água nas mãos. A expressão em seu rosto era severa, quase glacial. Um frio percorreu minha espinha.
— Sente-se, Lior. — Sua voz era firme, carregada de autoridade.
Antes que eu pudesse responder, uma figura emergiu das sombras. Althéa. Concubina de meu pai e uma das confidentes mais leais de minha mãe. Os boatos diziam que ela era uma espiã e assassina, responsável por investigar as intrigas dentro da nossa casa. Decidi começar com transparência.
— Lady Althéa. — Inclinei a cabeça em cumprimento. As duas trocaram um olhar carregado de significado, em teoria, eu não devia conhecê-la, suas trocas de olhares era um diálogo silencioso entre mulheres que já enfrentaram muitas batalhas juntas.
Althéa aproximou-se, a expressão neutra, mas os olhos analisando cada detalhe meu.
— Posso lançar um feitiço em você? — Sua voz era suave, mas deixava claro que não aceitava negativas.
— Não tenho nada a esconder. Por favor, prossiga.
Ela assentiu, e senti sua mana envolver-me, sondando cada fibra do meu ser. Era como ser examinado por dentro e por fora. Quando terminou, fez um leve aceno para minha mãe.
— Pronto. Pode prosseguir, Milady.
Minha mãe não perdeu tempo com rodeios. Seus olhos, duros como aço, fixaram-se nos meus.
— Você tem alguma ligação com o último atentado?
— Não. — Minha resposta foi firme, sem hesitação.
— Você ou sua organização têm Ganimedes como refém? Torturaram-no?
— Não, e não.
— Você é Ganimedes? — A pergunta veio como uma lâmina afiada.
— Sim.
Por um instante, o silêncio dominou a sala. Althéa voltou-se para minha mãe e confirmou com um leve aceno.
— Ele não mentiu, nenhuma vez até agora.
Minha mãe respirou fundo, os olhos avaliando-me com uma intensidade que parecia perfurar minha alma.
— Pois bem, Lior. Conte-me sua história.
Não me opus à presença de Althéa. Se minha mãe confiava nela, eu também deveria confiar. Respirei fundo, organizando os pensamentos, preparando-me para abrir as portas do passado.
— Tudo começou quando percebi que a pedra de Cass tinha sido alterada… — E comecei a contar. Não omiti nada. As batalhas, os tormentos, a transformação que havia sofrido. A cada palavra, sentia a presença de minha mãe, ora rígida, ora suavemente vulnerável, como se lutasse para manter a máscara intacta.
Quando terminei, o silêncio voltou a preencher o espaço. Althéa e minha mãe trocaram outro olhar, desta vez carregado de algo que não consegui decifrar.
— Tudo o que quero — continuei, a voz mais baixa — é ajudar você e Cassiopeia. Descobrir quem está por trás das tentativas de assassinato e me vingar também.
— E espera que eu acredite? — Ela inclinou-se para frente, os olhos penetrantes. — Você volta da Névoa, com um corpo diferente, uma história incrível, e espera que eu confie cegamente?
— Não peço confiança cega. Peço uma chance. Teste-me. Pergunte algo que só Ganimedes saberia, já falei isso…
A sala mergulhou em silêncio. A tensão era palpável, cada segundo se arrastando como uma eternidade. Por fim, minha mãe assentiu lentamente, a expressão indecifrável, os olhos fixos em mim, buscando algo além das palavras.
— Farei três perguntas — declarou, a voz firme, quase fria. — Uma única falha significa que você fracassou.
A primeira pergunta veio como um golpe calculado:
— Cassiopeia tinha um pequeno cobertor. Como ela o chamava?
Compreendi de imediato suas intenções. Não era apenas um teste de conhecimento; era algo mais profundo. Ela queria avaliar não apenas o que eu sabia, mas como eu sabia. Buscava evidências de que minha vivência com a Casa Vulkaris era genuína, que eu não era apenas alguém com informações roubadas ou fabricadas. Era sua forma sutil de garantir que eu era, de fato, quem afirmava ser.
Cada pergunta carregava um peso oculto, uma tentativa de revelar algo que apenas Ganimedes poderia saber, mas que também demonstrasse uma familiaridade íntima com os hábitos, segredos e intrigas da casa. Era um teste de autenticidade, e eu sabia que qualquer hesitação ou deslize seria fatal para minha credibilidade.
— Era o “puninhu” — respondi, imitando o jeito infantil que Cassiopeia tinha de falar naquela época.
Um lampejo de emoção cruzou seu rosto, rápido demais para que eu pudesse decifrar. Ela prosseguiu:
— Como se chamava a ama de leite substituta que cuidou de vocês? Não a oficial, a substituta.
A resposta veio sem hesitação.
— Não foi uma ama. Foi Lady Avelline. Quem diria que eu, Cass e Alissande dividimos o mesmo seio? — Sorri de leve. — Nessa época, ela te adorava, mãe — completei, com uma ponta de ironia.
Antes que ela pudesse fazer a terceira pergunta, me antecipei. Comecei a desfiar histórias antigas, detalhes de nossa infância, segredos que só alguém da família poderia conhecer. Falei não apenas de mim ou de Cassiopeia, mas da Casa Vulkaris inteira: memórias, tradições, velhos escândalos que nunca chegaram aos ouvidos dos de fora. Ambas me encaravam, os olhos arregalados, o silêncio agora carregado de algo mais do que desconfiança. Era a possibilidade real de minha história, a lembrança de quem eu era.
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