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    A festa dos Vulkaris prometia ser o evento mais aguardado da temporada de patrocínios, rivalizando em importância apenas com o grandioso baile de máscaras do Imperador. As carruagens formavam uma longa fila para adentrar a propriedade, iluminada por lanternas mágicas que lançavam reflexos dourados sobre a paisagem.

    As grandes Casas marcariam presença, acompanhadas pelas menores que exerciam influência significativa. Era o momento perfeito para alianças, intrigas e, possivelmente, traições.

    A propriedade dos Vulkaris, imponente e estrategicamente localizada, ficava ao lado do Palácio Imperial, no coração de um bosque antigo cujas árvores robustas formavam um arco natural sobre os caminhos. O bosque abria-se para os jardins do palácio, criando uma vista harmoniosa, ainda que cheia de um certo peso histórico.

    O prédio principal era uma verdadeira obra de arte marcial, misturando beleza e funcionalidade. Parecia mais uma fortaleza do que uma residência: suas torres altivas alcançavam os céus, e as paredes de pedra escura exalavam força e autoridade. Bandeiras com o brasão dos Vulkaris — uma espada flamejante cruzada com um escudo negro — tremulavam ao vento, reforçando a ideia de poder absoluto.

    No interior, a decoração contrastava com o exterior austero. Lustres de cristal preenchiam os salões com luz suave, refletida em espelhos ornamentados e tapeçarias ricas que narravam os feitos de gerações passadas da Casa Vulkaris. Tudo ali era uma lembrança silenciosa, mas poderosa, de sua influência e força militar.

    Cada detalhe, desde os guardas impecavelmente trajados, e as imponentes armaduras Manaclastes nas entradas até os arranjos de flores raras nos salões, deixava claro que os Vulkaris não economizavam esforços para consolidar sua imagem. Esta não seria apenas uma festa; seria um espetáculo cuidadosamente orquestrado para reafirmar sua posição no tabuleiro político.

    Dentro da carruagem, Selune exibia uma inquietação que era quase desconcertante. Eu a havia convidado como minha acompanhante por dois motivos: queria apresentar ela à minha mãe e para cumprir minha promessa de um encontro com ela.

    Seus cabelos prateados estavam perfeitamente arrumados, mas uma mecha teimosa escapava, alvo de seus dedos nervosos. O vestido negro que escolhera moldava sua figura com uma elegância quase cruel, como se quisesse esconder as cicatrizes de um passado que ela raramente mencionava.

    O cachimbo tremia ligeiramente em suas mãos. A fumaça, que normalmente lhe dava um ar de tranquilidade, parecia hoje uma tentativa desesperada de mascarar a tensão que a consumia.

    — Estou nervosa — admitiu, finalmente, a voz abafada pela fumaça que escapava de seus lábios. 

    Fiquei surpreso. Selune raramente demonstrava vulnerabilidade. Ela enfrentava tudo com uma calma quase sobrenatural. Vê-la assim era desconcertante.

    — Nervosa? Você? — perguntei, a incredulidade clara em meu tom.

    Ela desviou o olhar, os olhos prateados fixos na janela da carruagem, como se buscasse uma fuga.

    — Isso é diferente, Lior — murmurou, sua voz carregada de algo que não reconheci de imediato. — Não é uma luta ou uma missão. É… outra coisa.

    Pensei por um momento, tentando conectar os pontos. Então percebi.

    — Lady Isolde.

    Ela assentiu, tragando profundamente antes de apagar o cachimbo com uma mão trêmula.

    — Sua mãe é uma mulher poderosa, respeitada, nobre… Tudo o que eu não sou — disse, as palavras saindo quase como um suspiro.

    — Selune…

    — Não, Lior. Deixe-me falar. — Ela me interrompeu, o tom mais firme agora. — Eu sou mais velha que você. Muito mais velha. Isso, por si só, já seria suficiente para causar murmúrios. Mas não é só isso. Você sabe… sabe de onde vim.

    Eu sabia. Ou ao menos, conhecia o suficiente para entender por que ela se sentia assim. Selune havia sobrevivido a um mundo implacável, fazendo o que era necessário para continuar. Negócios, segredos, escolhas difíceis… e sim, até mesmo vender o que tinha de mais íntimo. Não era algo que ela me contava com orgulho ou vergonha, mas com a resignação de quem fez o que era preciso.

    — Você acha que isso vai importar para ela? — perguntei, tentando aliviar a tensão que emanava dela.

    — Importar? — Selune riu, mas era um som vazio, sem humor. — Claro que vai. Lady Isolde não é uma mulher qualquer. Ela é uma matriarca da Casa Vulkaris, primeira esposa de Tiberius. Para ela, mesmo as menores coisas importam.

    Não consegui responder de imediato. Em vez disso, estendi a mão, colocando-a sobre a dela.

    — Para mim, você é Selune. Isso é tudo o que importa.

    Ela finalmente ergueu o olhar, seus olhos prateados brilhando com algo que parecia estar entre gratidão e medo.

    — Espero que seja o suficiente — murmurou.

    A carruagem parou com um leve solavanco, indicando que havíamos chegado à propriedade dos Vulkaris. Selune respirou fundo, endireitou-se e apagou o cachimbo com um movimento decisivo.

    — Vamos lá. — Sua voz soou mais controlada agora, mas eu podia ver que, por trás daquela máscara de calma, a tensão ainda a consumia.

    Eu desci primeiro, estendendo a mão para ajudá-la. Selune a aceitou, seu toque frio contrastando com a firmeza de seu aperto.

    — Não está sozinha — disse, tentando tranquilizá-la.

    Ela assentiu, mas algo em seu olhar dizia que enfrentar Lady Isolde seria, para ela, uma batalha mais difícil do que qualquer outra.

    — Vai dar tudo certo, você vai ver. — Sorri, tentando transmitir confiança.

    Selune balançou a cabeça, como quem não acreditava completamente, mas aceitava meu esforço.

    — Tudo bem. — Suspirou, o som mais leve desta vez, como se estivesse se resignando. — Mas se der errado, a culpa é sua. Vou cobrar de você. — O tom dela era provocador, a voz carregada de uma doçura perigosa. Seus lábios curvaram-se em um sorriso que parecia um convite, e seus olhos prateados me encararam com uma intensidade que me fez sentir o peso daquela brincadeira.

    Meu sorriso alargou, ainda que um calor inesperado subisse pelo meu peito.

    — Pode cobrar — respondi, tentando manter a leveza.

    A tensão entre nós era sutil, mas quase palpável. Selune sabia o efeito que tinha e parecia usá-lo com precisão, ainda que suas próprias incertezas a traíssem.

    — Vamos. Não podemos deixar minha mãe esperando. — Brinquei, mais para aliviar o clima do que por qualquer outro motivo.

    Selune apenas acenou, ajustando a postura com graça, mas também com uma determinação que fazia jus à sua força interior. Cada movimento dela era calculado. O brilho de seus olhos prateados captava a luz do entardecer, refletindo uma complexidade que poucos podiam entender.

    Eu sabia que a festa dos Vulkaris seria mais do que um evento social. Era uma arena, onde julgamentos silenciosos seriam feitos e poder, sutilmente, exercido. Naquele momento, Selune e eu estávamos sozinhos.

    Jorjen, Gérard e Liana não haviam sido convidados. A ausência deles era um alívio por um lado, mas também um lembrete de que, sem aliados próximos, cada passo precisaria ser calculado com cuidado.

    Desci da carruagem primeiro, oferecendo minha mão para Selune. Ela a aceitou com firmeza, e juntos seguimos em direção à entrada.

    A propriedade Vulkaris, iluminada pelas luzes do evento, parecia uma fortaleza imponente. Em meio ao esplendor calculado e à tensão no ar, Selune parecia ainda mais magnífica, uma figura que desafiava as convenções ao mesmo tempo em que parecia prestes a ser esmagada por elas.

    E, de alguma forma, eu sabia que, naquela noite, não era apenas ela que seria julgada.

    O hall de entrada fervilhava de atividade, um espetáculo coreografado onde figuras proeminentes da Casa Vulkaris tomavam seus lugares como peças de uma pintura meticulosamente organizada. Lady Isolde estava ao centro, acompanhada por Lady Avelline e Augustus. Ao redor deles, Cassiopeia, Alissande, Roderick, Kael e Nyra completavam a formação, para receber os convidados, irradiando um carisma calculado que parecia refletir diretamente o poder de sua casa. Como esperado, meu pai estava ausente, sua presença reduzida a uma sombra que pairava sobre os Vulkaris.

    Entrei de braços dados com Selune. Sua figura elegante, com os cabelos prateados e o vestido negro, atraiu olhares imediatos. Fascinação e julgamento cruzavam-se em cada rosto que a observava, como se sua mera existência fosse uma afronta às convenções. Ela caminhava com graça, mas havia algo em sua postura — talvez a rigidez nos ombros ou o aperto discreto em meu braço — que traía a tensão sob a fachada impenetrável.

    Quando os olhos de minha mãe encontraram os meus, um sorriso cálido iluminou seu rosto. Por um momento, fui apenas o filho voltando para casa. Mas, ao notar Selune ao meu lado, o sorriso hesitou, transformando-se em uma expressão estudada, difícil de decifrar.

    Lady Isolde era mestre em sutilezas. Seu olhar não demonstrava reprovação aberta, mas uma análise minuciosa, como se Selune fosse uma joia exótica que ela avaliava para determinar seu valor. Aquele era o julgamento que Selune temia, aquele que não dependia de palavras, mas de uma percepção aguçada que podia transformar qualquer desvio em uma falha.

    Mesmo assim, Selune não vacilou. Sua reverência foi impecável, cada movimento uma dança de respeito calculado. Ainda que seus gestos fossem graciosos, eu podia sentir a luta interna mascarada em cada um deles.

    — Lior. — A voz de Lady Isolde quebrou o silêncio, suave, mas carregada de autoridade. Seus olhos brilharam com a curiosidade que nunca demonstraria abertamente. — E esta deve ser sua convidada.

    — Selune. — Respondi, mantendo minha voz firme. — Uma aliada valiosa.

    Selune ergueu a cabeça levemente, seus olhos prateados encontrando os de minha mãe sem hesitação.

    — É uma honra conhecer a senhora, Lady Isolde. — Sua voz era baixa, mas carregava uma força discreta.

    Minha mãe inclinou a cabeça, seu sorriso retornando, agora mais contido.

    — Bem-vinda à Casa Vulkaris, Selune. Espero que aproveite a noite.

    Houve um instante de silêncio após essas palavras, um vazio quase ensurdecedor em meio ao burburinho ao nosso redor. Aquele pequeno momento pareceu durar uma eternidade antes que Lady Avelline interviesse, mudando o foco da conversa com habilidade.

    Enquanto as formalidades continuavam, senti Selune relaxar ligeiramente ao meu lado, embora ainda mantivesse sua máscara impecável. A primeira batalha havia terminado, mas a noite ainda estava apenas começando.

    Enquanto caminhávamos para dentro do salão, passamos por Alissande. Ela nos observou com um sorriso que logo se transformou em uma provocação afiada.

    — Então, você se alistou na equipe do André, não? Lior Aníbal? — disse ela, o sarcasmo evidente em cada palavra.

    Fiz um gesto afirmativo, mantendo a compostura. Sabia que precisaria me aproximar de André e Alissande, mas isso não tornava a interação mais confortável.

    — Você é um tipo de colecionador de não-humanas? — continuou Alissande, com sua voz doce disfarçando o veneno da pergunta.

    Engoli a irritação que ameaçava surgir e respondi com um tom neutro, deixando as palavras flutuarem no ar.

    — Não é bem assim. Me interesso por quem de fato tem valor, e ultimamente, as não-humanas têm se mostrado mais interessantes do que as humanas.

    A resposta ficou no ar, sem margem para mais comentários. Não queria prolongar aquela troca. Minha prioridade era afastar Selune daquela atmosfera sufocante. Ela já havia suportado olhares inquisitivos e o julgamento velado de minha mãe. Não precisava também ser alvo das palavras afiadas de Alissande.

    Entrei no salão, com Selune ao meu lado, e procurei nossa mesa. Ela caminhava ao meu lado com a postura impecável, mas eu sabia que por trás daquela fachada de tranquilidade, havia algo mais profundo. Algo que me corroía por dentro. Selune não merecia aquilo. Não por minha causa.

    Enquanto cruzávamos o salão, sentia o peso das atenções sobre ela, a carga de ser constantemente observada, julgada. Eu não sabia como aliviar aquilo, como fazer com que se sentisse à vontade em um lugar onde claramente não pertencíamos. Ela estava comigo, sim, mas a cada momento, eu a via ser arrastada para o centro de uma sociedade que a tratava como algo… diferente.

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