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    Drael me lançou um olhar frio, sua expressão já não carregava mais aquele traço distorcido de hospitalidade. Depois da minha observação sobre a rachadura na pedra, ele se tornou brusco, irritadiço. Fez um gesto curto e os esqueletos que me acompanhavam responderam de imediato, agarrando meus braços com força. Suas garras ossudas afundaram na minha pele, como se quisessem atravessar a carne e tocar os ossos por dentro. 
     

    Ele se aproximou lentamente, seu olhar avaliando cada detalhe meu. Com dedos longos e ásperos, começou a desabotoar minha camisa, um botão de cada vez. Por um instante, seu semblante franzido demonstrou impaciência e, sem aviso, puxou o tecido com brutalidade. O som do tecido se rasgando ecoou no laboratório, misturando-se ao tilintar suave de frascos pendurados. 
     

    — Tão frágil… — murmurou, observando meu peito exposto. 
     

    Eu tentei me debater, mas a força dos esqueletos era absurda. Meus movimentos eram inúteis, meus músculos estavam rígidos de puro medo, e uma sensação de impotência me tomou. Não era apenas o frio da sala que fazia minha pele arrepiar. Era o terror puro, aquele que se infiltrava na mente e corroía qualquer noção de esperança. 
     

    Drael me empurrou sobre a mesa de pedra. O contato com a superfície gelada arrancou um espasmo do meu corpo. Cordas rústicas foram apertadas ao redor dos meus pulsos e tornozelos, cravando-se na pele. Meu coração martelava em um ritmo frenético, e meus olhos correram para cima, encontrando a pedra escarlate suspensa no altar. 
     

    Ela pulsava. 
     

    Por um momento, senti que algo me sussurrava, palavras indistintas, um chamado distante. Talvez fosse só minha mente tentando escapar da realidade insuportável. 
     

    Drael sorriu de novo, mas agora seu rosto transbordava satisfação doentia. Ele ergueu a mão, e um brilho negro começou a irradiar de seus dedos. A energia corrompida serpenteava em sua palma, como se tivesse vida própria, um fluxo viscoso e denso. 
     

    — Interessante… — murmurou. Ele deslizou os dedos do meu pé até minha cabeça, sua magia percorrendo meu corpo. 
     

    Eu tentei me mover, tentei gritar, mas tudo que saiu foi um suspiro trêmulo. 
     

    — Tudo rompido por aqui… — ele disse, como se falasse consigo mesmo. — Não será um reparo, mas sim uma construção totalmente nova. 
     

    Ele sorriu ainda mais. 
     

    — Isso é melhor do que o esperado. 

    Seus olhos brilharam. 
     

    — Preciso voltar para o projeto. 
     

    E então, seu dedo indicador tocou minha testa. 
     

    O mundo desapareceu. 
     

    A escuridão foi um alívio. Sem dor. Sem medo. Sem pensamentos. 
     

    Mas a inconsciência não durou para sempre. 
     

    Acordei com a sensação de algo quente e macio sob minha cabeça. Pisquei algumas vezes, confuso. O teto de pedra familiar da cela estava ali, acima de mim, enevoado pela névoa de minha mente grogue. Me mexi ligeiramente e senti um cheiro sutil, uma mistura de terra molhada e algo adocicado. 
     

    Virei o rosto e meu coração quase parou. 
     

    Nix estava ali, meio debruçada sobre mim, minha cabeça apoiada em seu colo. Seus olhos grandes me observavam com curiosidade, e quando percebeu que eu havia acordado, recuou ligeiramente, parecendo tão desconcertada quanto eu. 
     

    O calor subiu até minhas orelhas. 
     

    — O que…? — tentei me levantar, mas uma dor lancinante atravessou meu abdômen. 
     

    Engoli um gemido, mas Nix percebeu. 
     

    — Devagar — ela disse, sua voz suave. 
     

    Minha respiração ficou irregular enquanto tentava me acomodar. Só então percebi que meu peito estava enfaixado, e um cheiro forte de álcool subia das ataduras. Algumas partes estavam manchadas de sangue seco. Meu corpo parecia mais pesado do que o normal, mas… diferente. 
     

    Baixei os olhos e vi que vestia um robe rústico de linho, com calças simples. A sensação de exposição ainda me incomodava, mas pelo menos estava coberto. Ao lado, sobre um pano dobrado, havia uma cuia com mingau e uma jarra d’água. 
     

    Nix se mexeu levemente, parecendo hesitante. 
     

    — Eu troquei seu curativo — ela disse, desviando o olhar. — Igual Drael me mostrou. Então não precisa ficar envergonhado. 
     

    Eu corei ainda mais. A ideia dela cuidando de mim naquela situação desconfortável me deixou completamente sem palavras. 
     

    Ela me estendeu um frasco pequeno com um líquido esverdeado. 
     

    — Ele mandou você beber assim que acordasse. 
     

    Peguei o frasco e bebi de uma vez. O gosto era terroso, amargo, mas quase de imediato senti a dor aliviar. Meu corpo começou a responder melhor. 
     

    Levantei devagar e examinei meu próprio peito. As ataduras cobriam grande parte da pele, mas algo estava errado. 
     

    Havia uma sensação estranha. 
     

    Uma corrente morna, sutil, circulava debaixo das bandagens. Começava nos braços e se reunia no centro do peito. 
     

    Minha respiração ficou presa na garganta. 
     

    Eu conhecia aquela sensação. 
     

    Mana. 
     

    A mesma energia que eu nunca fui capaz de manipular. 
     

    Pisquei algumas vezes, incrédulo. Era real? Ou apenas um efeito residual da poção? 
     

    Lágrimas vieram aos meus olhos. 
     

    Meu aleijão… havia desaparecido. 
     

    Algo que nenhum especialista do Império conseguiu curar, Drael fez. 
     

    Mas a que custo? 
     

    Minha mente oscilou entre o alívio de finalmente possuir mana e o horror de saber que eu estava sendo moldado para algo muito pior. 
     

    Minhas mãos tremiam. O choro veio sem que eu pudesse segurar. 
     

    Nix me observava, sua expressão suavizou. Ela não disse nada, apenas se inclinou e, sem hesitação, me envolveu em um abraço. 
     

    Foi inesperado, mas… reconfortante. 
     

    A princípio, eu endureci, não acostumado com aquele tipo de contato. Mas algo dentro de mim cedeu. Seus braços pequenos mas firmes transmitiam um calor sincero, um gesto puro de empatia. 
     

    Eu não queria que ela estivesse ali. Não queria que passasse por tudo aquilo. 
     

    Quando meu choro cessou, ela se afastou lentamente, mas seu cheiro permaneceu em minha pele. 
     

    Eu respirei fundo e fui até as grades. Olhei para ambos os lados, certificando-me de que nenhum esqueleto estava por perto. 

    Voltei-me para Nix. 
     

    — Tenho um plano. 

    Ela piscou, surpresa, e quando expliquei meu raciocínio, sua expressão se tornou sombria. 
     

    — É arriscado — ela disse, sua voz trêmula. 
     

    — Eu sei. 

    Ela hesitou, mas seus olhos dourados demonstravam que compreendia o que eu queria dizer. Ainda assim, sua expressão se fechou em incerteza. 
     

    — Eu não posso deixar que eles acabem com sua habilidade de abrir portas — continuei. — Ela será importante. E também não posso permitir que te machuquem… ou pior. 
     

    Nix abaixou as orelhas e fitou o chão, mordendo o lábio inferior. Seu rabo felpudo se moveu lentamente, um reflexo de sua inquietação. 
     

    — Eles são muitos. Se Drael ainda me mantém viva, é só porque precisa de mim de alguma forma. Você, é a mesma coisa. Como podemos resistir? Não tem como… — sua voz saiu arrastada, quase um sussurro. 
     

    Me aproximei mais um pouco, minha voz baixa, controlada. 
     

    — Enquanto ele ainda precisa de mim, parece querer me agradar. Acho que sua própria natureza sádica pode jogar a nosso favor. 
     

    Ela franziu o cenho. 

    — Como assim? 
     

    — Se eu agir como alguém como ele, talvez ele me veja como um igual. E, nesse caso… ele pode acabar me dando você de presente. 
     

    Os olhos de Nix se arregalaram. 
     

    — Me dar pra você? Você enlouqueceu? 
     

    Sem pensar muito nas palavras, continuei: 
     

    — Sim. Ele pode transferir sua escravidão para mim. Deve ser o dono da sua marca. 
     

    Levei o dedo até sua testa, entre suas sobrancelhas, onde a marca mágica estava gravada. Para minha surpresa, Nix recuou bruscamente, como se meu toque a queimasse. Ela levou as mãos ao rosto, e os tremores de seu corpo vieram antes mesmo das lágrimas. 
     

    Um soluço contido escapou por entre seus dedos. 
     

    Foi então que entendi. 
     

    Ela não sabia. 
     

    Nix não fazia ideia de que estava sob um contrato mágico. 
     

    Drael nunca usou seu domínio sobre ela, nunca a forçou diretamente… e, por isso, ela nunca percebeu que era uma escrava. Até agora. 
     

    Eu queria dizer algo. Qualquer coisa. Mas as palavras ficaram presas na garganta. A verdade havia sido lançada sobre ela como um balde de água fria, e eu não sabia como consertar aquilo. 
     

    Seu choro só aumentava, os soluços se tornando mais intensos. 

    — Nix… 
     

    Tentei me aproximar, como ela havia feito comigo antes, mas ela se encolheu contra a parede, recusando o toque. 
     

    Merda. 
     

    Minha mente girava em busca de uma saída, algo que pudesse mudar aquele momento. Mas não havia tempo para isso. 
     

    Agarrei o osso que o orc usava para ameaçar os outros prisioneiros e bati com força contra as grades da cela. 
     

    — Ei! — berrei, chamando atenção de forma insistente. — Drael! 

    O som ecoou pelo corredor escuro. 
     

    Passaram-se minutos que pareceram uma eternidade antes de ouvirmos os passos. 
     

    Drael apareceu, ladeado por seus esqueletos. O brilho sombrio da mana corrompida irradiava dele como uma presença sufocante. 
     

    Ele ergueu uma sobrancelha. 
     

    — Que bagunça é essa? Seus pontos se abriram? 
     

    Respirei fundo. 
     

    Então vesti minha máscara. 
     

    Inclinei a cabeça e encarei Nix no canto da cela. Fiz a cara mais safada que consegui, forçando um sorriso que quase me fez vomitar. 
     

    Estalei os lábios, como se estivesse avaliando um prêmio. 
     

    — Quero ela. Para me divertir enquanto estiver aqui. Não sou seu mais estimado hóspede? 
     

    Drael me estudou com interesse, como um predador farejando uma mentira. 

    — Se a quer, eu posso ordenar que ela não resista — ele disse, o tom carregado de desdém. 
     

    Balancei a cabeça e dei um passo à frente. 
     

    — Não é a mesma coisa — insisti, fingindo frustração. — Quero ser o dono dela. Pelo menos enquanto ainda sou… eu mesmo. 
     

    Os olhos de Drael brilharam, e um sorriso torto puxou seus lábios. 
     

    — Hm… isso é interessante. 
     

    — E quero que a poupe — acrescentei. — Se ela ficar fraca, será inútil para mim. 
     

    Ele riu baixinho, a diversão em seu rosto me dando calafrios. 
     

    — Você está tramando algo — ele disse, um tom quase admirado em sua voz. — Mas quero ver até onde vai com essa história. 
     

    Fez um gesto para que eu me aproximasse. 
     

    Hesitei por um instante antes de obedecer. 
     

    Drael segurou minha mão. 
     

    Senti a energia escura passar para mim como um veneno gélido, escorrendo por minha pele, penetrando cada fibra do meu ser. Um fio invisível se formou entre mim e Nix, um laço tênue de mana que pulsava em minha mente. 
     

    Foi quando senti. 
     

    A tristeza dela. 
     

    Ela estava arrasada. Se via como uma escrava agora, uma verdade inegável marcada em sua carne e alma, algo indizível para uma vulpina.
     

    Engoli em seco. 
     

    Isso era necessário. Era a única forma de protegê-la.
     

    Drael soltou minha mão e lançou um olhar lascivo para Nix, que chorava silenciosamente. Depois voltou sua atenção para mim. 
     

    — Divirta-se, mas cuidado com os pontos — ele disse, um sorriso predatório brincando em seu rosto. — O que fiz até agora foi apenas a primeira etapa. Muitas mais virão até que esteja pronto. 
     

    Ele virou-se e desapareceu na escuridão do corredor. 

    Fiquei parado, sentindo o peso daquela corrente invisível ligando Nix a mim. 
     

    Ela não olhava para mim. 
     

    Eu queria dizer algo, pedir desculpas, explicar… mas que desculpa poderia dar? 
     

    Apenas suspirei e voltei para meu cobertor. 
     

    O primeiro passo do plano havia sido dado. 
     

    Mas o preço… o preço estava se tornando alto demais.

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