Capítulo 42: Treinando para o duelo
— Se divertiu com seu bichinho de estimação? — perguntou Selune, claramente incomodada com Shade.
— Se eu não experimentar com miasma, como espera que eu resolva o seu problema? — retruquei, a voz elevada. — Você veio até mim pedindo ajuda para consertar seu núcleo de mana, praticamente aleijada, incapaz de conjurar sequer uma única magia!
Selune fechou o rosto, e o peso das minhas palavras caiu sobre mim. Nunca tinha sido tão grosseiro com ela — ou com Nix, para falar a verdade.
Abri a boca para me desculpar, mas ela ergueu a mão antes que eu conseguisse.
— Não! Não peça desculpas — disse ela, com firmeza. — Você tem razão. Se não experimentar, nunca resolveremos nada. Nós dois temos algo… algo estranho dentro de nossos oceanos de mana, uma parte que não pertence a nós. Não faço ideia de como vamos lidar com isso.
Ela parou, respirando fundo, antes de continuar:
— É só que… miasma me deixa nervosa. Foi por causa dele que perdi tudo. Que me tornei uma excluída. Tive muitas experiencias ruins por conta do miasma, a ponto de virar às costas para a magia, minha paixão.
Selune desviou o olhar por um momento, mas logo me encarou novamente.
— Não vou mais te impedir de usar o miasma, só… só tome cuidado, por favor.
Antes que eu pudesse responder, ela virou-se em direção ao gramado e, já saindo, completou:
— Só entrei para avisar que Karlom e Nix já estão prontos lá fora.
Assenti e a segui para fora. Nix já estava posicionada, com suas duas adagas em mãos, enquanto Karlom segurava sua velha espada. Assim que me viu, ele me ofereceu uma lâmina, apresentando o punho com um pequeno sorriso. Aceitei e a brandi algumas vezes, sentindo seu peso e equilíbrio.
— Você está familiarizado com o estilo da Casa Vulkaris? — perguntei. Precisaríamos simular Roderick com o máximo de precisão para que o treino fosse eficaz.
— Todo mundo que já serviu no exército conhece os fundamentos do estilo — respondeu ele. — Estive lá por cinco anos.
Karlom começou a demonstrar a postura básica, os ataques fundamentais e algumas sequências, retiradas e investidas. Ele não executava os movimentos com perfeição, mas eram suficientemente bons para a prática. Quando ele fazia um movimento específico, eu aproveitava para explicar quais eram os preferidos de Roderick.
No entanto, havia muitos detalhes do estilo que Karlom desconhecia. Como eu nunca tinha treinado diretamente com meus irmãos, também não podia ajudá-lo nesses pontos mais avançados. Apesar disso, trabalhamos juntos até cobrir todos os movimentos que seriam usados. Quando finalizamos, me afastei para observá-lo melhor.
— Selune, lembre-se de me atacar com algumas magias, para desestabilizar e manter minha mente alerta — disse, tentando incluir todos os elementos no treino.
Ela me lançou um olhar direto, sua expressão ainda carregando o peso de nossa discussão anterior.
— Não vamos nos precipitar — respondeu, a voz firme. — Primeiro, veja se consegue lidar com Karlom. Depois aumentamos a dificuldade.
Fez uma pausa, seu tom ganhando um leve toque irônico:
— Pode deixar que na hora de te atacar, não vai precisar me lembrar.
Fiquei em silêncio por um momento, reconhecendo a sombra do ressentimento em suas palavras. Ela ainda não tinha esquecido o que eu disse agora a pouco, e não podia culpá-la por isso.
Treinamos a tarde inteira e o início da noite, mergulhados em uma rotina exaustiva e implacável. Karlom atacava com uma ferocidade impressionante, como se estivesse diante de um verdadeiro inimigo. Seus golpes vinham pesados e rápidos, forçando-me a recuar ou me defender com todas as forças. Eu tentava encontrar brechas, mas ele era como uma muralha em movimento. Cada ataque que eu bloqueava fazia minha mão estremecer, e meus braços ardiam pelo esforço constante.
Quando Karlom precisava de descanso, Nix assumia o campo. A mudança no ritmo era imediata. Onde Karlom trazia força bruta, Nix trazia agilidade e astúcia. Suas adagas brilhavam sob o último brilho do crepúsculo, movendo-se com precisão letal. Ela dançava ao meu redor, seus golpes vindo de ângulos imprevisíveis. Embora não tivesse a mesma força esmagadora de Karlom, sua capacidade de me pegar desprevenido me deixava vulnerável em momentos críticos. Cada vez que ela me acertava, sabia que aquilo teria sido fatal em uma situação real.
Selune observava tudo de perto, mantendo-se reservada. Porém, em um momento de descuido, enquanto descansávamos por um instante, senti o chão abaixo de mim se tornar escorregadio. Um feitiço de graxa. Minha tentativa de manter o equilíbrio foi patética, e acabei caindo de lado no chão, o impacto arrancando o ar dos meus pulmões.
— Ops. Escapou — disse ela com um sorriso de canto e um olhar cínico que só me deixou mais irritado.
Quando a noite começou a cair, e a escuridão tornou a visibilidade limitada, Karlom baixou sua espada e se afastou.
— É melhor encerrarmos por hoje — sugeriu ele, sua respiração pesada denunciando o cansaço.
— Mais uma vez — insisti, levantando-me e ajustando minha postura. — Quero tentar algo diferente.
Karlom arqueou uma sobrancelha, hesitante, mas acabou assentindo e assumindo sua posição. Inspirei fundo, sentindo meu corpo cansado, mas meu espírito determinado. Fechei os olhos por um instante, concentrando-me no fluxo de mana que percorria meu ser. A energia dentro de mim parecia se agitar, como um oceano em tempestade, e precisei de toda a minha força de vontade para guiá-la.
Quando liberei o poder, senti o impacto imediato em meu corpo. Um estalo percorreu meus ossos, e meus músculos enrijeceram como se feitos de pedra. Minha pele começou a mudar, adquirindo um tom negro em alguns pontos, enquanto algumas runas brilhantes surgiam como marcas incandescentes espalhadas por meu corpo. Escamas vermelhas emergiram em meus braços, brilhando sob a luz pálida da lua, e quando abri os olhos, vi que eles emanavam uma luz azulada, intensa e hipnotizante.
Karlom não hesitou. Ele avançou como uma tempestade, sua espada cortando o ar em golpes precisos e mortais. Mas, dessa vez, eu estava pronto. Meus movimentos eram mais rápidos, mais fortes, e consegui interceptar seus ataques com uma precisão que nunca havia alcançado antes. Cada impacto de nossas lâminas fazia faíscas dançarem no ar, e o som metálico ecoava pelo campo.
Apesar da minha evolução, Karlom não era um adversário fácil. Ele cobriu sua lâmina com mana, concentrando sua energia em um único golpe devastador. Quando nossas armas se encontraram, o impacto foi diferente de tudo o que eu havia sentido até então. Por um instante, senti minha espada perder completamente o peso, como se a lâmina tivesse desaparecido. Olhei incrédulo para o que restava em minha mão. A lâmina havia sido cortada ao meio, com uma precisão absurda, como se fosse feita de manteiga diante do fio revestido de mana de Karlom.
O fragmento da lâmina voou para o lado, e o golpe dele me alcançou. Felizmente, as escamas e as runas em minha pele absorveram o impacto, impedindo uma ferida mais grave, mesmo assim, senti a lâmina bater no osso.
— Seu irmão consegue infundir mana na espada — disse Karlom, com um tom sério e olhar avaliador. — E ele não vai hesitar em querer te machucar de verdade.
Respirei fundo, sentindo o peso das palavras dele enquanto olhava para os restos de minha lâmina partida. Precisaria estar pronto, não apenas para enfrentar a força de Roderick, mas também a ferocidade da Casa Vulkaris.
Selune, com os braços cruzados, manteve o olhar fixo em mim, sua expressão carregada de preocupação, mas com um toque de irritação.
— No final, você conseguiu acompanhar Karlom, mas tem certeza de que é uma boa ideia mostrar essas suas… modificações para os outros? — Sua voz saiu mais suave do que antes, embora ainda mantivesse um tom sério. — Lembre-se: se alguém descobrir o que você realmente pode fazer, o risco de acabar como uma cobaia em algum laboratório imperial é real. Enquanto não tiver força absoluta, você não pode revelar todas as suas cartas.
O tom mais brando dela fez suas palavras parecerem menos uma repreensão e mais um aviso sincero. Mesmo assim, cortaram fundo. Ela tinha razão, mas isso apenas ampliava a frustração que eu sentia. Inspirando profundamente, tentei ignorar a ardência residual nas escamas que gradativamente voltavam à minha forma natural.
— Eu sei disso, Selune. — Suspirei, deixando a tensão escapar. — E é exatamente por isso que preciso de vocês. Quero que pensem em algo, qualquer coisa, que possa me ajudar a enfrentar Roderick sem que eu tenha que recorrer… a essas alterações. Vocês têm até amanhã cedo para me apresentar ideias.
Houve um breve silêncio, mas as expressões sérias de todos mostraram que entenderam o peso do pedido. Selune assentiu devagar antes de relaxar os braços, ainda pensativa.
Antes que ela pudesse dizer algo mais, fomos interrompidos por um som vindo do lado da casa principal. Quando me virei, vi Gérard, o outro participante do torneio da Casa Aníbal, caminhando pelo gramado em nossa direção. A última vez que havíamos trocado palavras tinha sido no baile de máscaras, e sua presença ali foi uma surpresa.
— Preciso falar com você, Lior — ele anunciou, sem cerimônia, seus olhos passando rapidamente de mim para os outros.
Meu coração disparou quando percebi que Gérard havia me visto na forma alterada, com os restos da espada de Karlom ainda presos ao meu antebraço. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele virou as costas e começou a se afastar.
— Droga… — murmurei, sentindo a tensão crescer novamente. Eu precisaria ir atrás dele.
Selune me lançou um olhar incisivo, mas, em vez de me repreender, ela simplesmente colocou a mão em meu ombro, sua voz mais calma agora.
— Tome cuidado com o que você vai dizer. — Selune pousou a mão no meu ombro, suas palavras eram calmas, mas carregavam um peso evidente.
Ela começou a se afastar em direção à casa, mas antes que desaparecesse, eu a chamei.
— Selune, espere. Venha comigo. — Meu olhar se voltou para Nix, que estava mais atrás, observando com um sorriso sutil. — Você também, Nix. Talvez tenhamos que dar um apavoro nele.
Selune arqueou uma sobrancelha, cética, mas parou.
— Tem certeza disso? — perguntou, sua voz soando mais como um teste do que uma objeção real.
— Ele viu demais — respondi, meu tom firme. — Não podemos deixar isso passar.
Nix apenas riu, como se a ideia a divertisse.
— Um apavoro? Parece mais o meu estilo. — Ela caminhou para perto de mim, o sorriso agora ligeiramente predatório. Juntos, partimos em direção à casa principal, onde Gérard desaparecera. O ar ao nosso redor parecia pesado, mas dessa vez não era apenas tensão — era a preparação para o confronto que viria.
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