Índice de Capítulo

    Gérard estava quase alcançando a entrada da mansão quando o interceptamos. Ainda havia uns bons vinte metros até o pórtico da casa principal, um espaço ideal para uma emboscada discreta. Pelo jeito que ele me olhou ao nos ver bloquear seu caminho, ele sabia exatamente o que estava para acontecer. Seus ombros tensos, os passos vacilantes, a respiração acelerada. Ele parecia um cervo encurralado, pronto para disparar em qualquer direção — mas sem saber para onde correr.

    — Pois bem, o que você queria falar comigo? — pressionei, minha voz cortando o silêncio como uma lâmina.

    Ele tentou responder, mas apenas abriu e fechou a boca, como um peixe fora d’água. Os olhos dele dançavam freneticamente entre mim, parado à sua frente, e Nix e Selune, que o cercavam silenciosamente pelas costas. O som de nossas botas no chão e o farfalhar ocasional da brisa eram as únicas testemunhas daquele momento.

    — O gato comeu sua língua? — perguntei, inclinando ligeiramente a cabeça, meu tom carregado de indiferença. — Ou prefere que seja a raposa a fazer isso?

    Nix sorriu, um sorriso cheio de dentes que era tudo, menos amigável. O brilho predatório em seus olhos parecia acender uma fagulha de pânico em Gérard, que engoliu em seco, visivelmente pálido.

    — Eu… eu não vi nada! — balbuciou ele, a voz quase inaudível, como se temesse que até mesmo o ato de falar o colocasse em mais perigo.

    — Você sabe — comecei, respirando fundo, minha paciência se afinando — que o que presenciou é um segredo muito importante para mim. Algo que não pode ser revelado a ninguém.

    — Não vou falar nada! — ele assegurou, balançando a cabeça com uma intensidade quase frenética. — Não quero prejudicar minha casa no torneio, eu juro!

    Observei cada detalhe: o suor que escorria por sua testa, a leve tremedeira de suas mãos, o ranger quase inaudível de seus dentes. Era como se o peso do momento estivesse esmagando qualquer resquício de dignidade que ele pudesse ter.

    Gérard era forte o suficiente — seu nível de mana estava próximo ao meu —, mas era óbvio que não tinha o espírito para enfrentar sequer uma situação de pressão psicológica, quanto mais um combate real. Era fácil entender por que sua mãe considerava tirá-lo do torneio.

    — Então… — falei, exalando um suspiro deliberado, como se estivesse cansado de lidar com aquilo. — Só a sua palavra não basta. Do mesmo jeito que eu estou te pressionando, e olha que nem estou pressionando tanto assim, outras pessoas podem fazer muito pior. Talvez até alguém atrás dos meus segredos. Preciso me certificar de que você não vai falar nada.

    Com um movimento lento, minha mão se aproximou de sua boca. Ele recuou instintivamente, mas eu mantive o gesto, firme e inexorável, até que meus dedos alcançaram seus lábios.

    — Abra — ordenei, minha voz fria e implacável.

    O ar ao nosso redor parecia congelar, pesado e sufocante, e foi então que aconteceu. Primeiro, o cheiro acre invadiu o espaço. Depois, o som abafado de líquido atingindo o tecido.

    — Não acredito que ele se mijou todo — disse Nix, torcendo o nariz, claramente enojada.

    — Eu faço o que você quiser! — Gérard choramingou, a voz embargada pelo pavor absoluto. As lágrimas começaram a brotar em seus olhos, enquanto ele se encolhia como uma criança indefesa.

    — Você vai jurar — afirmei, com um tom que não admitia contestação. — Um juramento sagrado.

    Apontei para Selune, que me olhou com uma mistura de resignação e irritação.

    — Vamos voltar para nossa residência. Você vai preparar o ritual.

    — Dois juramentos no mesmo dia? — bufou ela, cruzando os braços. — Isso vai custar caro…

    Enquanto levávamos Gérard de volta ao gramado, seus passos arrastados eram um reflexo de sua completa rendição. Ele nos olhava de esguelha, tentando entender que tipo de monstros éramos, e a cada instante sua expressão deixava transparecer mais medo, mais arrependimento. Não precisávamos dizer nada; o silêncio pesado e o olhar feroz de Nix e Selune já eram mais do que suficientes para sufocar qualquer resistência.

    Depois de feito o juramento, Gérard parecia uma marionete com os fios cortados. O olhar perdido, os ombros caídos, a expressão vazia. Um boneco quebrado e sem vida. Mandei-o embora, mas com uma condição: que voltasse na manhã seguinte, preparado para treinar de verdade. Uma ideia começava a tomar forma em minha mente. Eu iria usá-lo. No torneio, ter uma rede de apoio era vital, e ele poderia ser uma peça nesse jogo.

    Apesar do cansaço, ainda precisava tomar banho antes de descansar. Caminhei em direção à sala de banho, os músculos protestando a cada passo. Selune já havia se retirado para seu quarto, claramente ainda aborrecida pelas minhas palavras duras, e Nix, ao me ver seguir para o banho, veio atrás de mim com um sorriso travesso.

    — Que é isso? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.

    — Só pra me certificar de que você não vai dormir na banheira de novo — respondeu ela, com um tom implicante e uma expressão que sugeria intenções bem menos inocentes.

    Sorri. Ela sabia como aliviar a tensão de um dia difícil, mesmo que fosse apenas com brincadeiras.

    Na manhã seguinte, acordei com o som de Selune entrando no quarto. Ela tinha o hábito de trazer nosso café da manhã, algo que, com o tempo, havia se tornado um ritual quase sagrado. Nix e eu nos sentamos à mesa, enquanto Selune já desfrutava dos pratos silenciosamente.

    — Gérard já está lá fora — disse ela, apontando para o gramado.

    — Eu sei, já tinha visto ele através de Shade — respondi, referindo-me ao corvo.

    Ela estremeceu ao ouvir o nome da criatura, mas rapidamente desviou o olhar, focando-se na torrada que passava na geleia.

    — Deixe-o esperar. Vamos terminar de comer primeiro.

    Terminamos nosso desjejum com tranquilidade, o aroma do café misturando-se ao som suave do vento lá fora. Quando finalmente saímos, encontrei Karlom esperando por mim também, pronto para mais um dia de treinamento.

    Olhei para Gérard, avaliando-o de cima a baixo antes de perguntar:

    — Qual sua especialidade?

    — Sou um mago — ele respondeu, hesitante.

    Suspirei. Tudo fazia sentido. Era óbvio por que ele parecia tão covarde: provavelmente nunca havia enfrentado uma ameaça real.

    — Certo. Pra você me ser útil, preciso que perca o medo de se machucar. E, infelizmente, isso só acontece… se machucando.

    Dei um sorriso malicioso e lancei a ordem:

    — Nix, você vai lutar com ele a manhã toda. Sem armas. Se ele se recusar a lutar, pode espancar ele. Não se preocupe, eu tenho magia de cura para cuidar de qualquer estrago.

    Gérard se engasgou, o rosto alternando entre incredulidade e pânico. Era difícil dizer se foi a menção à magia de cura ou à possibilidade de ser espancado. Mas algo na rigidez de seus ombros me disse que ele aceitaria meus termos.

    Enquanto Nix o guiava para um canto do gramado, voltei minha atenção para Karlom e Selune.

    — Alguma ideia sobre o que discutimos ontem à noite? Sobre como superar Roderick?

    Karlom foi direto:

    — Eu acho uma tremenda burrice querer enfrentá-lo onde ele é mais forte. Até comentei isso com Selune.

    Ele me olhou com intensidade, sua expressão séria.

    — Roderick é um especialista em desenvolvimento corporal, com quarto círculo completo. Você, um mago de terceiro círculo incompleto. Seria uma estupidez desafiá-lo diretamente. Mesmo com suas alterações corporais e vantagens, talvez — e só talvez — você consiga derrotá-lo em um confronto direto.

    Refleti sobre suas palavras, deixando o peso delas afundar.

    — Sim — murmurei, reconhecendo a verdade. Minha visão estreita de querer vencer a qualquer custo estava me cegando. Karlom estava certo.

    Eu precisava ser estratégico, agir com inteligência. Esse era um jogo, e eu estava jogando como um amador. Impulsividade não me levaria longe, como já havia provado durante a festa dos Vulkaris.

    Eu respirava fundo, tentando dissipar a frustração. Era hora de começar a pensar como um verdadeiro competidor, não como um garoto impetuoso.

    Olhei para Selune, tentando captar o que se passava por trás de seus olhos prateados. Eu sabia que ela já tinha pensado em tudo isso antes. Selune era esperta demais para não prever certas coisas. Talvez estivesse apenas esperando que eu cometesse meus próprios erros, para aprender com eles.

    — Tem alguma sugestão? — perguntei, com um tom mais aberto do que o usual.

    Ela se empertigou, ajeitando-se com uma expressão que misturava disciplina e autossuficiência.

    — Tenho sim, mas há alguns problemas — começou, sua voz assumindo um tom didático. — Na escola que frequentei, era comum os professores e até mesmo alguns alunos avançados se debruçarem sobre esse tipo de problema: “como enfrentar um especialista corporal em um duelo…”. Especialmente nos primeiros estágios do desenvolvimento.

    Selune fez uma pausa, os olhos fixos nos meus, como se quisesse garantir que eu estivesse realmente ouvindo.

    — No começo, especialistas corporais são bem mais poderosos do que magos. Isso acontece mais ou menos até o quinto ou sexto círculo. Depois do oitavo círculo, os magos, teoricamente, tornam-se mais fortes, e a diferença aumenta a cada passo. Teoricamente, porque… a pessoa mais forte que já existiu alcançou o oitavo círculo. Hoje, pelo que sei, só seu pai e o Imperador estão nesse nível.

    A menção ao meu pai me fez respirar fundo, um lembrete incômodo de sua presença constante como uma sombra em minha vida.

    — Por essas e outras — continuou ela, ignorando qualquer reação minha —, a maioria das pessoas escolhe o caminho do fortalecimento corporal.

    Selune parou de falar, provavelmente para me dar tempo de processar a avalanche de informações. Apesar disso, sua postura permanecia firme, indicando que ainda havia mais a dizer.

    — Magos precisam manter distância. Encher a arena de obstáculos e evitar, a qualquer custo, que o oponente se aproxime — ela explicou, pausando novamente antes de prosseguir. — Mas você tem vantagens que os outros magos não têm.

    Ela apontou um dedo em minha direção, como se quisesse enfatizar sua próxima fala.

    — Duas, na verdade. Primeiro, seu corpo é tão forte quanto o de um especialista corporal. Não é algo comum para magos. Segundo, você tem magias mais flexíveis e mais fortes do que qualquer um do seu nível. E, claro, acesso a uma biblioteca de runas e feitiços que seriam completamente inacessíveis para alguém da sua idade ou experiência.

    As palavras dela eram verdadeiras, mas havia um peso nelas. Um lembrete de que minha força vinha de circunstâncias incomuns, e talvez perigosas. Eu tinha vantagens, sim, mas o preço delas ainda era algo que eu precisava entender.

    — Então você acha que eu devo evitar o confronto direto? — perguntei, processando suas sugestões.

    — Evitar, mas sem parecer covarde. Se usar estratégia, o que você perder em força será compensado em inteligência e controle da arena.

    Eu acenei lentamente. Karlom tinha razão sobre minha visão limitada, mas Selune acabara de me dar a chave para expandi-la. Isso não seria só um duelo; seria um jogo, e eu precisaria jogar com todas as peças à minha disposição.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (5 votos)

    Nota