Capítulo 44: A arena clandestina
O gramado onde treinávamos começava a me parecer um lugar pequeno demais para a mudança drástica que eu precisava implementar na minha estratégia de combate. Teria que aprender manter distância de Karlom, me movimentar muito, então algo mais amplo, mais versátil, seria necessário se eu quisesse evoluir.
— Será que tem como alugarmos alguma arena? Por hoje pelo menos? — perguntei, mais para mim mesmo do que para os outros, mas Selune e Karlom trocaram olhares e responderam quase ao mesmo tempo:
— Se tem alguém que sabe, é Jorjen.
A urgência tomou conta de mim. Corri até o escritório onde Jorjen passava a maior parte dos seus dias, já planejando como convencer aquele homem de que eu precisava de uma solução imediata.
— Preciso saber se tem alguma arena de duelo na cidade que eu possa usar, discreta e disponível pra agora.
Jorjen levantou a cabeça, franzindo o cenho com minha entrada abrupta.
— Hein? — Ele piscou algumas vezes, confuso, mas então o raciocínio começou a encaixar. — Sim, consigo pensar em uma. Que dia é hoje? — Ele conferiu um calendário que tinha na mesa. — Não é final de semana… Sim, dá pra usar.
— Podemos ir agora? — pressionei, ansioso.
— Vou pedir para Marcus ir com vocês até lá. — Ele hesitou por um instante, como se algo mais o incomodasse. — A propósito, o que você fez com Gérard? Liana está me atazanando desde ontem à noite. Parece que foi por causa de alguma coisa que você fez…
Tentei conter um sorriso.
— Relaxe. Diga a ela que eu vou fazer ela ter orgulho do filho dela. Vou deixá-lo mais poderoso. — E antes que ele pudesse perguntar mais alguma coisa, me virei e fui avisar o grupo de que teríamos uma arena para treinar.
Em pouco tempo, estávamos a caminho, numa carroça modesta conduzida por Marcus. Era igual àquelas que eu havia ajudado a descarregar quando resgatei Selune e Karlom do armazém de Jorjen.
— Por que não usamos uma carruagem? — perguntei, observando as ruas pela abertura traseira da carroça.
— Uma carruagem chamaria muita atenção por esses lados da cidade — respondeu Marcus, o tom direto e sem rodeios.
Enquanto avançávamos pelas ruas, as casas começaram a se tornar mais simples, com armazéns se misturando à paisagem. Os rostos das pessoas mudavam também, suas roupas e expressões denunciando as dificuldades daquela parte da cidade. A periferia tinha uma energia própria, crua e difícil de ignorar.
Paramos ao lado de um bar. Estava fechado, mas Marcus desceu e bateu na porta com uma sequência de toques que soou como um código. Uma portinhola se abriu, e um par de olhos avaliou quem era. Após um momento, a porta se destrancou, pesada e rangente, e entramos.
O ambiente estava escuro, abafado, e o cheiro era uma mistura de suor, vinho derramado e cerveja envelhecida. Marcus se aproximou de um homem magro e sujo, que parecia quase parte da mobília do lugar, e entregou-lhe uma pequena bolsa. O homem balançou o conteúdo, satisfeito, e assentiu.
— Vamos pra arena — disse Marcus, enquanto o homem começava a caminhar por um corredor estreito. Seguimos todos atrás dele.
Descemos uma longa escadaria que parecia levar às profundezas da terra. A cada degrau, o ar ficava mais denso e o cheiro mudava, tornando-se algo mais primitivo, quase animal. Quando finalmente chegamos lá embaixo, a visão me tirou o fôlego.
Era uma arena completa, escondida sob a cidade. Arquibancadas semicirculares cercavam o espaço, letreiros apagados pendiam das paredes, e havia até uma tribuna de honra. Não pude evitar de perguntar:
— Que lugar é esse?
— Essa é a arena clandestina — respondeu Marcus, direto, com um tom quase casual. — Chamamos ela de Matadouro — acrescentou, deixando escapar um sorriso perturbador. — Só funciona nos finais de semana. Muitos nobres sabem da existência dela, mas preferem fazer vista grossa por causa do dinheiro que ela movimenta. Jorjen é um dos que possui uma parte.
Enquanto observava a grandiosidade oculta daquele lugar, uma ideia começou a germinar em minha mente, mas não era hora para isso. Meu foco era o duelo.
Virei-me para o grupo. Selune examinava tudo com seus olhos prateados, intrigada. Karlom já parecia avaliar como usar o ambiente a nosso favor. Nix tinha um brilho de excitação no olhar, enquanto Gérard permanecia hesitante, claramente desconfortável com o cenário.
— Bem… Vamos treinar pro duelo então. — A firmeza na minha voz preencheu o espaço vazio da arena.
O silêncio da arena subterrânea parecia ter um peso próprio, denso e opressor. A cada passo, o som abafado de nossas botas na areia trazia uma sensação quase ritualística. As manchas escuras no chão contavam histórias de batalhas antigas, algumas talvez sangrentas demais para o que eu imaginava, e o odor de feras misturava-se ao cheiro de vinho e suor que subia pelas narinas. O local tinha uma energia própria, brutal e indomada, mas também carregava uma estranha familiaridade.
Dei uma olhada ao redor, absorvendo o ambiente enquanto as ideias começavam a se formar em minha mente. Selune estava de pé ao meu lado, seus olhos prateados brilhando na penumbra. Ela parecia absorta, examinando cada detalhe da estrutura. Havia uma curiosidade viva em sua expressão, mas também um olhar calculista. Karlom, por sua vez, já estava avaliando a arena como um campo de batalha. Seus olhos passavam por cada canto, cada obstáculo improvisado, buscando maneiras de aproveitar o espaço.
Nix, com seu sorriso atrevido de sempre, observava tudo com entusiasmo. No entanto, seus movimentos não eram descuidados; havia uma atenção implícita, como a de um predador em terreno desconhecido. Gérard, por outro lado, estava claramente desconfortável. Seus ombros tensos e o olhar nervoso denunciavam seu estado de espírito.
Caminhei até o centro da arena, onde o cheiro metálico de sangue parecia mais forte.
— Certo — comecei, minha voz ecoando no espaço vazio. — Temos muito trabalho a fazer, e este lugar é perfeito.
— Nix, você vai continuar trabalhando com Gérard. Leve-o para algum dos cantos — disse, apontando para uma área mais afastada da arena. — Novamente, sem armas. Mas quero que leve isso a sério. Ele precisa entender como funciona o combate físico, e a única maneira disso acontecer é… bem, ele apanhando.
— De novo? — Gérard protestou, sua voz um misto de cansaço e incredulidade.
— De novo — respondi com firmeza, cruzando os braços. — E vai continuar até você superar esse medo de se machucar. Sem isso, você não serve para o torneio.
Nix sorriu de maneira predatória, e Gérard engoliu em seco antes de seguir para um dos cantos da arena, com ela no encalço.
Virei-me para Selune, que observava tudo com atenção, seu olhar afiado não perdendo nenhum movimento.
— E você? — perguntei, curioso sobre seu ponto de vista.
— Vou observar por enquanto — respondeu ela, cruzando os braços com um sorriso enigmático. — Estou curiosa para ver como pretende enfrentar Roderick… e o que mais está tramando.
Olhei para Karlom, que já se afastava, tomando a postura e a distância de um duelo padrão. Ele sabia o que tinha que fazer. Ele estava pronto. Revi rapidamente os feitiços que imaginava serem mais eficazes e comecei a concentrar minha mana, sentindo-a fluir por mim como se fosse a única coisa que eu tivesse sob controle naquele momento.
Selune, com um leve aceno, deu o comando:
— Comecem.
Karlom avançou com uma fúria inesperada, não me dando tempo de pensar. Ele era rápido, e a energia com a qual se movia parecia consumir a própria distância entre nós. Em um piscar de olhos, estava na minha frente. Meus feitiços saíam errados, sempre segundos atrasados ou sem causar o efeito esperado. Havia falhado em manter a distância.
Selune soltou uma risada de escárnio, como se já soubesse que seria um caminho árduo:
— Tô vendo que terei muito trabalho aqui…
Balancei a cabeça, tentando encontrar meu equilíbrio em meio à frustração. Precisava me livrar de antigos vícios e me adaptar rapidamente ao novo estilo de combate. O tempo era curto, mas eu estava determinado. O caminho estava claro, e a única forma de seguir em frente era aprimorar meu condicionamento de combate e meus reflexos.
Enquanto isso, Karlom, respirando pesado e com um sorriso no rosto, voltou novamente ao ponto de partida, aguardando o próximo início de combate. Eu o observava, já percebendo que seu estilo era físico e impetuoso, e que precisaria aprender a lidar com isso. Seus punhos cerrados e sua postura agressiva indicavam que ele estava pronto.
Foi nesse momento que Selune sugeriu, com calma:
— Tente antecipar o movimento dele. Preveja o que ele vai fazer antes de ele fazer.
Assenti. “Preciso prever, não reagir.” A ideia começou a se enraizar. Tentei aplicar o que Selune sugerira, com mais calma e foco.
Karlom atacou novamente, mas desta vez consegui manter a distância por mais tempo. Ainda estava longe do ideal, mas era um começo. Ele continuava desviando dos meus feitiços, mas consegui lançar uma magia defensiva que retardou seus ataques, fazendo-o perder o ritmo.
Selune observou em silêncio, seu olhar avaliando cada movimento. Então, apontou para um dos lados da arena:
— Agora tente usar o terreno. Força e magia devem trabalhar juntas.
Assenti novamente, me preparando. Karlom voltou à posição inicial. Esse ciclo se repetiria muitas vezes ainda naquele dia, e eu melhorava a cada repetição.
Enquanto me concentrava no combate, Nix estava a todo vapor com Gérard. Ela o pressionava com uma velocidade impressionante, sempre forçando-o a agir. No início, ele hesitava, sua falta de confiança evidente, mas a pressão de Nix não dava espaço para dúvidas.
Aos poucos, Gérard começou a responder com movimentos mais rápidos e certeiros, embora ainda hesitantes. De vez em quando, conseguia espaço para lançar um ou outro feitiço. Seus reflexos estavam claramente melhorando.
Observando o progresso de Gérard, eu sabia que o mesmo aconteceria comigo, se me permitisse falhar e aprender a cada erro. A adaptação estava em andamento.
Selune, à distância, começou a dar sugestões mais pontuais. Falou sobre controle e uso de energia, mencionou o tempo de reação e a importância de entender o momento exato de usar a magia para criar um efeito surpreendente. Suas ideias fluíam como água, cada uma mais útil que a anterior.
Senti que o dia seria proveitoso, e estratégias para vencer o duelo finalmente começavam a tomar forma em minha mente.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.