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    Ao sair para o gramado na manhã seguinte, não consegui evitar um bocejo. O treinamento do dia anterior havia sido extenuante e se estendido até altas horas. Meu sono foi curto e pouco reparador. Nix parecia funcionar no automático, e até Selune, que raramente deixava transparecer sinais de cansaço, exibia olheiras. O único que parecia normal era Karlom, mais acostumado a esses rigores. Gérard não estava presente. Como havia se comportado bem no treino, dei-lhe a manhã de folga. Em contrapartida, Claire, que não aparecera no dia anterior, estava de volta ao meu quintal, com seus olhos brilhantes e energia irritantemente intacta. Ao vê-la tão disposta logo cedo, senti um desconforto involuntário.

    — Bom dia, professor! — ela cumprimentou alegremente. — Nix, Selune, Karlom.
    Nós apenas acenamos com a cabeça, exceto Karlom, que respondeu educadamente:

    — Bom dia, Lady Claire.

    — Fiz como você pediu, Lior. Espalhei aos quatro ventos o seu duelo com Roderick. Tenho certeza de que a arena estará cheia. Uma moça ligada à Casa Vulkaris até me parou na rua para perguntar por que eu estava fazendo isso… mas despistei.

    — Muito bem — assenti. — Uma parte do plano está feita. Agora só me resta ir lá e acabar com a raça dele — falei, como se fosse algo trivial.

    Virei-me para Selune:

    — Pode, por gentileza, entreter nossa pequena Claire? — pedi. — No outro dia fomos interrompidos, e vocês não puderam terminar.

    Selune revirou os olhos, claramente contrariada. Tudo o que ela não queria era tutelar a garota, mas eu estava empurrando isso para ela.

    — Relaxe, depois eu assumo — prometi.

    Ela me lançou um olhar incrédulo, mas acabou cedendo. Selune e Claire se sentaram a uma mesinha na sacada da residência, com vista para o gramado, e começaram a conversar.

    Virei-me para Nix:

    — Gérard não virá cedo. Se quiser descansar, sinta-se à vontade.

    Ela balançou a cabeça em silêncio e desapareceu para dentro da casa.

    Por fim, olhei para Karlom:

    — Vou tirar a manhã para resolver algumas coisas. Depois do almoço, nos encontramos aqui para repassar o duelo. Sua visão sobre como tudo pode se desenrolar me ajudará a montar o esquema mental. Está dispensado.

    Com um aceno, ele se retirou para seus aposentos.
    De volta ao meu quarto, Nix dormia profundamente, respirando de forma tranquila. Movi-me em silêncio até a escrivaninha, onde Shade, o corvo morto-vivo, aguardava. Assim que me viu, soltou um crocitar que soou inquietantemente como “mestre”. Um calafrio percorreu minha espinha. Corvos podem imitar vozes humanas, mas ninguém por aqui me chama dessa forma. Pelo comportamento dele, parecia estar se tornando mais inteligente, embora eu não soubesse se isso era efeito da nossa ligação.

    Examinei Shade com atenção, procurando sinais de decomposição, como Selune havia alertado que ocorreria. Não detectei nada anormal. Até o cheiro estava normal — considerando que ele não respira nem se alimenta. O único detalhe que notei foi que o nível de miasma em seu corpo parecia estar diminuindo lentamente.

    Concentrei-me, permitindo que um fio fino de energia negra fluísse para dentro de seu pequeno corpo. Shade reagiu, ficando mais agitado e energético.

    Por fim, dei-lhe uma ordem verbal:

    — Você sabe o que fazer. Vá.

    Shade me encarou por um instante antes de alçar voo pela janela aberta. Mantive nossa ligação mental no mínimo, apenas o suficiente para sentir sua presença. Queria ver se ele era capaz de cumprir a missão sozinho.

    Esperei. Cerca de vinte minutos depois, Shade retornou, entrando pela mesma janela por onde havia saído. Em seu bico, trazia um envelope. Sorri com o sucesso da missão.

    Na carta que enviei à minha mãe, expliquei que o corvo seria meu mensageiro, e que a cada dois dias ela deveria deixar o envelope na soleira da janela.

    Funcionou perfeitamente.

    Peguei a carta e, ao abri-la, deparei-me novamente com a cifra familiar. Sentando-me à escrivaninha, preparei papel e pena para decodificar a mensagem.

    “Querido e estimado filho,

    Também sentimos sua falta. Não posso deixar de mencionar que Cassiopeia ficou muito satisfeita ao saber que Roderick pretende lhe dar uma lição pelo que você fez. Ela está ansiosa para vê-lo apanhar.

    Quando me contou sobre seu plano e sua vontade de enfrentá-lo, pensei que seu juízo estivesse comprometido. Ainda penso isso. Mesmo que tenha superado seus problemas com mana, existem anos de diferença no treinamento entre vocês. Meu coração está inquieto.

    Fiz os arranjos que pediu. As pessoas importantes da nossa casa já sabem do duelo, que agora não será mais secreto. Cassiopeia e eu estaremos presentes na arena para presenciar. Inclusive, alguns de seus meio-irmãos, que não têm idade para participar do torneio, e suas outras madrastas estarão lá, vindos de nosso lar só para isso. Talvez até mesmo seu pai compareça para apoiar Roderick, afinal, ele defenderá a honra da família.

    Não sei qual é o seu plano, mas o duelo terá grande público.

    Tentei convencer Roderick a não lutar para matar, mas, sem revelar nossa relação de ajuda mútua, não pude persuadi-lo. Ele virá com tudo. Espero que tenha se preparado adequadamente.

    Por favor, responda para aliviar meu coração preocupado.”

    Li a carta com um sorriso nos lábios. Era típico de minha mãe: equilibrar afeto e crítica. Ela claramente achava que eu precisava de um corretivo por meu espetáculo com Cassiopeia, mas não escondia o aperto em seu coração diante do duelo iminente. E, claro, não colocava muita fé em minha vitória.
    Peguei um novo papel e comecei a redigir minha resposta. Cifrei cuidadosamente a mensagem e a coloquei em um envelope. Ao invés de chamar Shade imediatamente, deixei o envelope sobre a escrivaninha.

    — Pode levar — falei, observando o corvo. Ele atravessou a escrivaninha, pegou o envelope no bico e, sem hesitar, voou para fora pela janela aberta.

    Sentia-me satisfeito comigo mesmo quando retornei ao gramado.

    Selune e Claire ainda estavam lá. A garota conjurava chamas simples, enquanto a elfa observava com atenção. A cena parecia inocente, mas algo em sua postura me deixou desconfiado. Seria possível que Selune tivesse descumprido minhas ordens e mostrado algum de nossos segredos?

    Aproximei-me calmamente.

    — O que me diz sobre Claire, Selune?

    A elfa manteve a compostura, mas seu tom carregava um resquício de orgulho.

    — Ela é uma jovem muito talentosa. Domina o básico com maestria e tem aptidão natural para magias de suporte, o que explica seu interesse por cura. Não me oponho que você a ensine.

    Ela então se levantou e me puxou para o lado, longe do alcance dos ouvidos de Claire.

    — Se pudermos ensiná-la a nossa técnica para interromper magias, ela pode ser uma grande ajuda para você no torneio.

    Fiquei em silêncio por um instante, ponderando.

    — Faz parte de nossos segredos. Você está certa disso?

    Selune assentiu com firmeza.

    — Absolutamente.

    Respirei fundo, aceitando sua lógica.

    — Muito bem. Vamos fazer isso. Mas agora vou precisar da ajuda dela para outra coisa.

    Voltamos até onde Claire nos aguardava, os olhos brilhando de expectativa.

    — Vou lhe ensinar — falei, direto ao ponto. — Mas só depois do meu duelo. Entende isso, não é?

    A garota assentiu rapidamente, um sorriso tímido iluminando seu rosto.

    — Ótimo. — Fiz uma pausa. — Mas tem outra coisa. Vou precisar de sua ajuda com algo mais imediato.

    Aproximei-me e lhe expliquei em voz baixa o que tinha em mente. Claire ouviu atentamente, sua expressão mudando para uma de compreensão determinada.

    — Entendido! — disse ela antes de se virar e caminhar em direção à saída.

    Enquanto se afastava, eu a chamei.

    — Não se esqueça de voltar aqui. Quero chegar lá com todos vocês ao meu lado.

    Claire olhou por cima do ombro e assentiu antes de desaparecer pela porta.

    Enquanto observava Claire desaparecer ao longe, senti um chamado sutil no fundo da minha mente. Era Shade. Ele já havia concluído sua missão, deixando a carta na janela de minha mãe, mas agora parecia querer me mostrar algo. Fechei os olhos, permitindo que nossa conexão trouxesse as imagens.

    De cima de uma grande árvore, a visão se abria para os telhados da imponente mansão Vulkaris e suas muitas alas se destacando no horizonte. Ao lado da residência principal, um pequeno grupo estava reunido.

    No centro, Roderick, sem camisa, movia-se com vigor. Sua espada reluzia enquanto avançava e recuava em golpes precisos. A intensidade do treino era evidente, e seus movimentos carregavam uma determinação quase feroz.

    Cassiopeia gritava palavras de encorajamento, acompanhada por Nyra e dois dos meus irmãos mais novos, Dida e Peter, que pareciam fascinados. Até Alissande estava lá, observando atentamente. O oponente de Roderick era Victor, um dos nossos meio-irmãos mais velhos, experiente e já veterano do torneio.
    Victor recuou, baixando a espada, e Roderick aproveitou a abertura com um movimento ágil. Sua lâmina cortou o ar em um arco horizontal, e uma linha fina de mana se desprendeu da espada com uma velocidade impressionante. Só então notei o pequeno alvo no centro do gramado, a cerca de quinze metros, algo que havia passado despercebido até aquele momento. A energia atingiu o alvo com precisão, partindo-o ao meio em uma fração de segundo.

    Aquilo me pegou de surpresa. Não sabia que Roderick era capaz de usar mana dessa forma. Saber disso com antecedência era uma vantagem inestimável. Agradeci silenciosamente a Shade pelas informações. Precisava de alguma coisa que me protegesse contra esse tipo de ataque. Se eu entrasse naquele duelo sem esse conhecimento, meu plano de manter distância seria completamente inútil.

    Meus olhos buscaram por Selune. Precisaria de sua ajuda para encontrar algo que anulasse essa vantagem de Roderick.

    Ainda assim, um sorriso leve surgiu em meu rosto. O palco estava montado, e tudo o que restava era eu desempenhar meu papel.

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