Índice de Capítulo

    Dois dias era o prazo estabelecido para o jantar na residência de André. A quantidade de pessoas, segundo ele, era grande demais para um evento improvisado, e sua mãe não ficaria nada satisfeita se ele forçasse o compromisso para aquela noite. Concordamos e nos despedimos.

    Quando finalmente retornamos à mansão de Jorjen, a noite já havia caído. Meu corpo estava exausto, mas minha mente fervia com a ideia de comemorar. Meu plano havia funcionado. Eu tinha transformado uma situação desfavorável em uma oportunidade de ouro e, melhor ainda, aproveitado ao máximo. A vitória não era apenas minha — era de todos nós — mas, ao mesmo tempo, eu sabia o que aquilo significava. Como André havia alertado, eu agora era alguém a ser observado de perto. De um pária social, tinha me tornado um jovem promissor e, mais importante, perigoso.

    Compartilhei meu desejo de celebrar com Jorjen.

    — Concordo plenamente. Foi uma vitória digna de comemoração — ele disse, com um raro sorriso de aprovação.

    Sem demora, mandou buscar um barril de vinho e outro de cerveja na adega, além de organizar a preparação de uma grande fogueira nos jardins da mansão.

    Em pouco tempo, estávamos todos reunidos ao redor do fogo, comendo carne assada, bebendo, rindo e conversando. Joaquim, sempre cheio de surpresas, apareceu com um alaúde e começou a tocar. Descobri que ele tinha um talento impressionante para música, e Joana, com sua voz doce, o acompanhou, cantando canções que trouxeram ainda mais vida àquela noite.

    Observei a cena com satisfação. Todos estavam relaxados, se divertindo, como se por um momento o mundo lá fora deixasse de existir. Me permiti baixar a guarda e aproveitar.

    Mais tarde, já de madrugada, o cansaço finalmente venceu a todos. Espalhados pelo jardim, meus amigos dormiam. Até Claire, geralmente tão contida, havia bebido mais do que o habitual e estava desmaiada ao lado de Selune e Nix. Nix, por sua vez, fazia movimentos engraçados no sono, como se estivesse correndo em seus sonhos. Ri baixo da cena, me sentindo leve e descontraído pela primeira vez em muito tempo.

    Decidi ir para o quarto antes que caísse no sono ali mesmo. Ao abrir a porta, porém, fui surpreendido por Shade, meu corvo morto-vivo. Desde que o infundira com miasma, ele não precisava mais comer, mas lá estava ele, brincando com o corpo de uma ratazana morta.

    Achei aquilo estranho. Shade, geralmente tão obediente e controlado, parecia estar desenvolvendo algo… diferente. Sádico, talvez? Ele olhou para mim, e através de nossa ligação senti que queria algo. Empurrou o rato em minha direção, insistente.

    — O que é isso, Shade? — perguntei, me agachando.

    A resposta veio pela conexão. Ele queria que eu infundisse o rato com miasma, como fiz com ele.

    A ideia me pegou de surpresa, mas fazia sentido. Desde o dia em que espionara Roderick através dos olhos de Shade, a ideia de ter “mais olhos” espalhados não saía da minha mente. E, de algum modo, Shade havia agido por conta própria para realizar meu desejo, mesmo sem eu ordenar.

    — Tudo bem, Shade. Mas não faça isso de novo sem que eu mande, entendeu?

    — Entendido — crocitou ele.

    Parei, incrédulo. Shade tinha acabado de falar. Tinha mesmo acontecido… ou seria efeito da bebida? Olhei para o corvo, mas ele apenas inclinou a cabeça, me observando em silêncio, como se aguardasse meu próximo movimento. Talvez estivesse imaginando coisas, ou talvez não. Naquele momento, decidi deixar a dúvida para o dia seguinte.

    Sem saber ao certo como reagir, me concentrei na ratazana. Infundi o miasma, e logo ela começou a se mover. Havia algo diferente na conexão que se formou. Não era como com Shade; talvez porque o rato já estava morto antes do processo.

    Testei a ligação. A criatura reagiu, obedecendo a um simples comando: se esconder. Não queria nem imaginar a reação de Selune se descobrisse o pequeno espião improvisado.

    Com aquilo resolvido, deitei na cama e fechei os olhos. A exaustão finalmente tomou conta, e adormeci quase imediatamente.

    No dia seguinte, quando acordei, Joaquim, Joana e Claire já tinham partido. Selune estava sentada em uma poltrona próxima, envolta pela fumaça de seu cachimbo.

    — Achei por bem te deixar dormir — disse ela, sem levantar os olhos.

    — Aconteceu alguma coisa?

    — Nada de novo, mas Marcus voltou da rua dizendo que a cidade inteira só fala do seu duelo.

    Franzi a testa, ponderando se toda essa atenção poderia se voltar contra mim em algum momento. O sucesso era uma moeda de duas faces, e eu não queria ser pego de surpresa. Olhei para Selune, que me devolveu um olhar sereno, antes de perguntar:

    — E Nix? Onde está?

    — Provavelmente no banho. Acho que ela nunca tinha ficado bêbada antes. Confesso que fazia muito tempo que eu não bebia assim também. Foi bom, mas precisamos voltar à realidade.

    — Sem dúvida. — Fiz uma pausa e, hesitante, perguntei: — Quer ir a um lugar comigo hoje à noite?

    Selune ergueu uma sobrancelha, já adivinhando minha intenção.

    — À arena clandestina? — Ela soltou a fumaça lentamente antes de continuar. — Imaginei que você queria voltar lá, pela cara que fez ao ver o lugar. O que você pretende?

    — Quero observar o funcionamento dela primeiro. Acho que pode ser um lugar incrível para fazermos dinheiro próprio… e para que eu possa treinar. Lutar de verdade me deixou mais alerta e me ajudou a entender minhas fraquezas. O torneio vai exigir isso de mim.

    Selune assentiu, exalando mais uma baforada, o olhar fixo no vazio, como se já calculasse os riscos e as oportunidades.

    Após conversar com Jorjen, ele concordou em nos acompanhar naquela noite à arena clandestina. O dia transcorreu sem grandes novidades; descansamos e nos preparamos. Quando fui procurar Nix, encontrei-a na sala de banhos, escondida no escuro, meio submersa na água morna. Ela choramingava, com a cabeça entre as mãos, claramente sofrendo os efeitos de sua primeira ressaca.

    — Minha cabeça vai explodir… — murmurou, com uma voz trêmula.

    Sorri, me aproximando. Com uma leve magia de cura, aliviei sua dor.

    — Pronto. Isso deve ajudar.

    Nix abriu os olhos lentamente, piscando como se não acreditasse no alívio repentino.

    — Você é um anjo… ou um demônio disfarçado. Ainda não decidi. — Ela soltou um suspiro aliviado antes de se encostar na borda da banheira.

    Quando o sol começou a se pôr, diferente da primeira vez, fomos de carruagem. Além de mim, Nix e Selune, Jorjen nos acompanhava, parecendo até empolgado. O caminho era familiar; as ruas eram as mesmas que havíamos atravessado anteriormente, mas, ao final do trajeto, em vez de seguirmos até o bar, dobramos uma esquina e paramos diante de um grande armazém.

    Um número considerável de pessoas vestindo uniformes vermelhos se espalhava pelo local.

    — São da Rosa Escarlate — murmurou Jorjen. — A verdadeira força do submundo.

    Eles organizavam tudo com eficiência. Havia um setor para carruagens, outro para ingressos, e o movimento de pessoas a pé era constante. Um grande portão de duas folhas dava acesso ao interior. Notei uma escadaria de pedra que descia suavemente, algo que não percebi na visita anterior.

    — Apenas os lutadores usam a entrada do bar — explicou Jorjen, ao notar minha curiosidade.

    O mercador gordo parecia completamente à vontade, cumprimentando pessoas e distribuindo sorrisos contidos.

    — A confiança é um dos segredos… — disse ele, em um tom professoral.

    Cruzamos um mar de rostos animados, risadas e copos erguidos. O cheiro de álcool e comida enchia o ar, e vi Nix fechar os olhos, segurando o nariz como se precisasse conter o estômago.

    Finalmente, chegamos a um camarote na tribuna de honra. Jorjen fez um gesto para que nos acomodássemos e, logo depois, chamou uma jovem com uniforme da Rosa Escarlate.

    — Pois não, Lorde Jorjen? — perguntou ela com uma reverência sutil.

    — O de sempre, Charlote — respondeu ele, antes de olhar para nós, indicando que era nossa vez.

    — Uma cerveja, por favor — pedi, acomodando-me no assento.

    — Água — disse Nix, ainda pálida.

    — Sangria — pediu Selune, sem tirar o cachimbo da boca.

    A garçonete desapareceu rapidamente entre a multidão, e aproveitei para observar o lugar.

    A arena estava iluminada por tochas estrategicamente posicionadas, enquanto os homens de vermelho ajustavam os últimos detalhes na areia. Do camarote, tínhamos uma visão privilegiada. Aos poucos, as arquibancadas enchiam, e a atmosfera ficava cada vez mais elétrica. Podia sentir a animação crescente no ar.

    — Vai ser interessante — murmurei para mim mesmo, já ansioso pelo que estava por vir.

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