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    A escuridão que me envolvia era morna e confortável. 
     

    Flutuava em um sonho doce, entre lençóis de seda, travesseiros fofos e perfumados. Uma paz incomum me envolvia, um alívio quase esquecido em meio à turbulência dos últimos tempos. 
     

    Então, veio a dor. 

    Uma fisgada na perna, cortante e impiedosa, arrancando-me daquele refúgio de sonhos. 
     

    Tentei gritar, mas minha voz não respondeu. 
     

    Tentei me mover, mas algo me prendia. 

    O pânico tomou conta. 
     

    Meu corpo estava pesado, os membros imóveis como se fossem feitos de pedra. 
     

    Abri os olhos, apenas para ser cegado por uma luz forte e cruel. 
     

    Ouvi uma voz aguda e estranhamente familiar, cortando a névoa da inconsciência como uma lâmina afiada. 
     

    — Hum… está acordando. — O tom era clínico, impessoal, quase entediado. — Vamos, me passe aquela poção. Se ele se agitar demais, pode prejudicar nosso trabalho. 
     

    Era Drael. 
     

    A realidade voltou com brutalidade. 
     

    Eu era um paciente involuntário. Uma cobaia. 
     

    Tentei resistir, mas apenas observei, impotente, enquanto um líquido escuro era despejado em um funil conectado a um dos tubos que saíam da minha garganta. 
     

    Não senti o gosto. 
     

    A poção escorreu diretamente para meu estômago, fria e estranha. 
     

    A consciência se apagou novamente. 
     

    Mas, antes disso, nos últimos fragmentos de lucidez, voltei aos lençóis de seda. 
     

    Ao perfume delicado. 

    E à maciez da pele de uma mulher em meus sonhos.  
     

    Acordei na cela. 
     

    O teto familiar de pedra crua surgiu diante dos meus olhos. 
     

    A lembrança dos esqueletos me carregando veio como um soco. 
     

    As intervenções já duravam semanas.
     

    Tentei me mover, me ajeitar, e a dor me atingiu como um raio. 
     

    Latejante. Cortante. Insuportável. 

    Minha perna queimava como se ainda estivesse sob as lâminas e agulhas de Drael. 
     

    Soltei um grunhido abafado. 
     

    — Calma, Gan. Sua poção está aqui comigo. 

    A voz suave e reconfortante veio ao meu lado. 
     

    Nix. 
     

    Ela estava sentada, próxima, os olhos preocupados e cheios de ternura. Com delicadeza, ergueu minha cabeça e encostou um frasco em meus lábios. 

    Engoli o líquido amargo, sentindo o alívio quase instantâneo se espalhar pelo corpo. 
     

    Ossos se unindo. 
     

    Ligamentos se restaurando. 
     

    Músculos sendo costurados pela magia alquímica. 
     

    Suspirei e olhei para ela. 
     

    Minha raposinha. 
     

    Ela sempre esteve ali, cuidando de mim com diligência e paciência, principalmente depois das cirurgias. 
     

    Eu lhe devia mais do que poderia expressar. 
     

    E, nos últimos dias, eu percebi algo mais. 
     

    Ela também se apegara a mim. 
     

    Nix era incrível. 
     

    Dedicada. Engraçada. Inteligente. 

    E, sem dúvida alguma, linda. 
     

    Seu jeito despreocupado contrastava com seus olhos, sempre carregados de emoções intensas. Seu corpo esguio e ágil, a cauda que se movia inconscientemente quando estava concentrada… 
     

    E o sorriso. 
     

    Aquele sorriso que fazia meu coração bater mais forte. 
     

    Não tive muitas experiências com mulheres. 
     

    A maioria me olhava com pena. Ou desprezo. 
     

    Mas Nix nunca fez isso. 
     

    Desde o início, ela me tratou com respeito, sem condescendência, sem enxergar apenas o defeito que carregava. 
     

    Isso significava muito. 
     

    Por isso, fazia questão de não abusar da marca de escrava que ela carregava. 
     

    Fazia questão de que ela se esquecesse disso.
     

    As noites se tornaram momentos nossos. 
     

    Deitados lado a lado na cama que Drael nos “presenteou”, compartilhávamos histórias. 
     

    Ela falava sobre sua família, sempre com lágrimas contidas nos olhos dourados, e sobre os costumes de seu povo. 
     

    Eu lhe contava sobre minha mãe, minha irmã, e sobre os tormentos que passei nas mãos de meus irmãos. 
     

    Drael, por algum motivo, começou a nos tratar melhor. 
     

    Ainda éramos prisioneiros. 
     

    Mas a cela ficou mais confortável. 
     

    A cama foi concedida depois que pedi a propriedade de Nix, refeições constantes eram oferecidas e certo dia, uma tina de banho foi trazida, uma ânfora de vinho ofertada.
     

    E ele sempre vinha nos ver. 
     

    Nos observar, com um sorriso insidioso.
     

    Nos testar.
     

    Nosso primeiro beijo foi forçado, um espetáculo para os olhos libidinosos da criatura. 
     

    Mas depois, outros beijos vieram. 
     

    Espontâneos. 
     

    Desejados. 
     

    E eu fazia questão de que nunca fossem motivados pelo vínculo da escravidão. Havia lhe prometido que assim que tudo isso passasse, lhe devolveria sua liberdade.
     

    Sabia quanto a liberdade significava para os Vulpinos.

    E se um dia saíssemos dali… 
     

    Eu queria que ela estivesse ao meu lado por escolha. 
     

    Mais do que tudo, queria que o plano de fuga desse certo.
     

    Não por mim. 
     

    Mas por ela. 
     

    Nix merecia mais do que aquele cativeiro sombrio. Mais do que a espera silenciosa por um destino que não controlávamos. E se havia algo que eu poderia fazer para garantir sua liberdade, eu o faria. 
     

    Mesmo que custasse a minha vida.
     

    Os dias passavam, arrastando-se em uma mistura de dor, recuperação e mudanças. 
     

    À medida que meu corpo se curava, comecei a ver, com mais clareza, o verdadeiro trabalho de Drael. 
     

    Ele não apenas me remendou. Ele me refez. 
     

    Meu reflexo na superfície refletida do balde d’água me encarava como um estranho. 
     

    Eu estava mais alto. 
     

    Mais forte. 
     

    Mais resistente. 
     

    A mana fluía por mim com uma naturalidade assustadora. Era como se cada fibra do meu corpo tivesse sido moldada para canalizá-la com eficiência máxima. Antes, minha conexão com a energia mágica era inexistente. 
     

    Agora, era um rio, crescendo em força e volume a cada batida do meu coração. 
     

    Meu núcleo rachado? 
     

    Curado. 

    Perfeito.
     

    E mais do que isso… algo novo estava se formando. 
     

    O primeiro círculo começava a se traçar dentro de mim, absorvendo mana em uma velocidade vertiginosa. 
     

    E, com cada dia que passava, eu sentia a antiga versão de mim mesmo desaparecer um pouco mais. 
     

    Me tornar outra coisa. 

    Algo diferente. 
     

    Eu tentava me acostumar a essa nova realidade. 
     

    Tentava convencer a mim mesmo de que ainda era Ganimedes.

    Mas… era? 
     

    Assim que estava forte, os esqueletos vieram me buscar, eles sempre sabiam quando. O quanto Drael nos espionava?
     

    Aquela rotina já não me causava estranheza. 
     

    A princípio, resisti, lutei contra os ossos que me arrastavam pelos corredores úmidos e escuros. 
     

    Agora, eu apenas os seguia. 
     

    Drael esperava na sala fria e iluminada, como sempre. 
     

    — Vamos começar. — Ele sorriu, afiado. — Hoje será especial. 
     

    A frase ressoou em minha mente quando a poção foi despejada pelo funil e minha consciência escorregou para o abismo. 
     

    Acordei com uma sensação terrível. 
     

    Meu rosto queimava, a cabeça pulsava.
     

    Não uma dor aguda e localizada, mas um incômodo profundo, latejante, como se o próprio ar irritasse minha carne. 
     

    Instintivamente, levei as mãos ao rosto. 
     

    Toquei tecido. 
     

    Curativo. 
     

    Eu estava completamente enfaixado. 
     

    A última cirurgia não havia sido no meu corpo… 

    Mas no meu rosto e cabeça.
     

    Engoli em seco, sentindo um aperto no peito. 
     

    Meu rosto. 
     

    O que ele tinha feito? 
     

    O pânico ameaçou me dominar, mas então… 
     

    — Gangan… 
     

    A voz suave dissipou meus medos. 
     

    Virei a cabeça e vi Nix ali, sentada ao meu lado, segurando um frasco de poção. 
     

    Ela sorriu, aquele sorriso pequeno e tranquilo que sempre me acalmava. 
     

    — Aqui, beba. Vai ajudar com o incômodo. 
     

    Ela me ajudou a erguer a cabeça e verteu o líquido em meus lábios. O efeito foi quase instantâneo, a queimação diminuindo até se tornar apenas um leve formigamento. 

    Fechei os olhos e respirei fundo. 
     

    Ela sempre estava ali. 
     

    Cuidando de mim. 
     

    Mesmo quando eu não podia fazer nada em troca. 
     

    Dois dias depois, as bandagens foram removidas. 
     

    Eu estava sentado na cama quando Nix se aproximou com dedos cuidadosos, começando a desenrolar o tecido que cobria minha pele. 
     

    A cada camada que caía, minha ansiedade crescia. 
     

    Quem eu veria no reflexo do balde? 
     

    Eu ainda seria eu? 
     

    Por fim, as bandagens caíram por completo. 
     
    Nix inclinou a cabeça, analisando meu rosto com um olhar atento. 
     

    Então, sorriu. 

    — Não está feio, não. — A voz dela carregava um tom brincalhão, mas sincero. — Está… diferente. Seus traços mudaram um pouco, mas… — Ela fez uma pausa, inclinando-se levemente. — Está bonito. Bem bonito, por sinal. 
     

    Meus lábios se entreabriram, surpreso. 
     

    — Pra um humano. — completou, dando uma risadinha. 
     

    Ri junto, balançando a cabeça. 
     

    Ela era assim. Mesmo em um lugar como aquele, sempre conseguia arrancar um sorriso meu. 
     

    Nix se inclinou e beijou minha testa. 
     

    Um gesto singelo, mas que fez algo quente se espalhar pelo meu peito. 
     

    Antes que ela se afastasse completamente, a puxei para perto e capturei seus lábios nos meus. 
     

    Dessa vez, não havia espectadores. 
     

    Nenhuma ordem de Drael. 
     

    Nenhuma pressão. 
     

    Apenas nós dois. 
     

    Quando nos separamos, ela me olhou séria, os olhos dourados brilhando no meio da penumbra da cela. 
     

    A expressão dela refletia exatamente o que eu estava pensando. 
     

    — Acho que temos que agir logo. — murmurei. — Não vejo muito espaço para mais cirurgias. Em breve, Drael vai querer completar o ritual. 
     

    Os olhos de Nix se estreitaram. 
     

    Ela já sabia disso. 
     

    A cada mudança em meu corpo, ficava mais claro que Drael não estava apenas me transformando fisicamente. 
     

    Ele estava me preparando para algo maior. 
     

    Algo que ele não havia revelado completamente. 
     

    Ela respirou fundo e assentiu. 

    — Acho que tem razão.
     

    Silêncio. 
     

    O peso da decisão pairava entre nós. 
     

    Não havia mais tempo para esperar. 
     

    Se quiséssemos escapar… Teria que ser em breve.

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