Capítulo 5(2): A quebra da esperança
Dois dias depois da última cirurgia, eu já sentia os ossos do meu rosto firmes no lugar. A pele ainda coçava, mas a dor havia se tornado um incômodo suportável. Meus movimentos estavam mais ágeis, minha força era palpável, e a energia que percorria meu corpo indicava que a hora havia chegado.
— Tem que ser hoje — murmurei, olhando para Nix. Ela assentiu, os olhos cheios de determinação.
Ao longo das últimas semanas, havíamos percebido que Drael entrava em um estado de letargia em determinados momentos do dia. Talvez fosse um descanso, uma forma de restaurar suas forças ou algo relacionado à sua conexão com os esqueletos. O que importava era que, durante esse período, a vigilância diminuía. A maioria dos esqueletos parecia entrar em dormência, restando apenas alguns patrulhando os corredores.
Nosso objetivo inicial, escapar, logo se mostrou impossível. Drael nos mantinha cercados, sem brechas para fuga. Então, o plano mudou. Se não podíamos sair, destruiríamos aquilo que ele mais prezava: a pedra onde a consciência de Mahteal residia. Se conseguíssemos danificá-la o bastante, poderíamos impedir ou até sabotar o ritual de transferência de alma.
Eu sabia o risco. Se Drael percebesse, minha vida estaria acabada. Mas, se conseguíssemos enganá-lo, talvez acreditasse que o ritual tinha sido um sucesso. E isso nos daria a oportunidade de fugir.
Eu criaria uma distração, atraindo os guardas e, se possível, o próprio Drael. Enquanto isso, Nix iria ao laboratório e tentaria destruir a pedra.
Olhei para ela, gravando seu rosto em minha mente. Não queria que essa fosse a última vez que a via.
— Lembre-se, liberte alguns prisioneiros, mas não muitos. Conte até cem e vá direto para o laboratório. A pedra está no centro da sala, você não pode errar. — Minha voz saiu mais firme do que me sentia por dentro.
Os olhos dela brilharam com algo entre medo e coragem.
— Deixe comigo.
Eu segurei seu rosto entre as mãos, forçando-me a acreditar que aquilo daria certo.
— Em breve, vamos sair daqui. Juntos.
Ela não respondeu. Apenas se inclinou e me beijou. Um beijo urgente, carregado de promessas que talvez nunca pudéssemos cumprir.
Quando nos afastamos, Nix tocou a fechadura da porta. Um brilho suave de mana percorreu o metal e um clique ecoou na cela. A porta se abriu.
— Boa sorte — sussurrou.
— Você também, raposinha.
Eu gravei seu sorriso antes de me virar e disparar pelo corredor na direção oposta ao laboratório.
O complexo subterrâneo era um labirinto de corredores sombrios e portas trancadas. Eu corria sem rumo, escolhendo direções aleatórias e fazendo o máximo de barulho possível. Por alguns instantes, temi que não estivesse funcionando, que não tivesse atraído atenção suficiente. Mas então, ouvi.
Passos secos e ritmados.
O estalo inconfundível de ossos se movendo em sincronia.
Eles estavam vindo.
Sorri e gritei por cima do ombro:
— Venham me pegar, seus malditos!
Pela primeira vez, senti o mana pulsar dentro de mim. Minha força se multiplicou, impulsionando meus músculos com velocidade assustadora. Eu era rápido. Eu era forte. Pela primeira vez na vida, eu não era um erro.
Cheguei a uma bifurcação e virei à esquerda. Logo me arrependi. Mais esqueletos vinham daquele lado. Muitos.
Atrás de mim, os primeiros perseguidores já se aproximavam. Fechei os punhos, trincando os dentes. Não podia parar. Virei para a direita na bifurcação seguinte, sentindo o ar pesado e úmido do subterrâneo grudar na pele.
A cada passo, pensava em Nix. Ela teria tempo suficiente? Conseguiria destruir a pedra?
Não havia como saber. Só me restava correr e garantir que meu sacrifício valeria a pena.
Quando me dei conta, estava encurralado. O corredor estreito terminava em uma parede fria e úmida, sem nenhuma saída visível. Meus pulmões trabalhavam freneticamente, tentando absorver ar o suficiente para alimentar meu corpo já cansado. O suor escorria pelo meu rosto, pingando das sobrancelhas e se misturando ao gosto metálico do sangue em meus lábios.
Virei-me e vi a multidão de esqueletos se aproximando. Eles não avançavam de imediato, como se saboreassem minha situação. Tinham reduzido a velocidade, se agrupando, bloqueando qualquer possível rota de fuga. O som de seus ossos estalando no silêncio do corredor era um lembrete mórbido da armadilha em que eu havia caído.
Fechei os olhos por um instante, sentindo meu coração pulsar dentro do peito. Estralei o pescoço, sacudi os ombros, saltitei no lugar. Meu corpo estava mais forte, mais resistente. Eu tinha sido remodelado por Drael, transformado em algo novo, algo poderoso. Mas será que era o suficiente?
Minha mana circulava com fervor, fortificando meus músculos e ossos. A energia crepitava sob minha pele, zunindo nos meus ouvidos. Se era um teste, então eu o enfrentaria de cabeça erguida.
Os esqueletos avançaram.
O primeiro caiu com um soco direto no crânio. O impacto quebrou seu maxilar, desestabilizando-o, e uma cotovelada rápida despedaçou o restante da cabeça. Outro tentou me agarrar, mas meu chute o desmontou antes que seus dedos tocassem minha pele. Mais vinham, uma enxurrada de ossos rangentes. Eram incontáveis.
Continuei lutando, desviando, golpeando, destruindo. No começo, seus ataques eram caóticos, desesperados para me conter. Mas logo mudaram a estratégia. Eles pararam de tentar me esmagar com números e começaram a atacar em ondas coordenadas, investidas curtas e calculadas. E, pouco a pouco, começaram a me desgastar.
Minha mana diminuía mais rápido do que eu esperava. Meu corpo, que eu acreditava ser imbatível, agora gritava em protesto. Meus movimentos estavam ficando mais lentos, minha força vacilava. Eu ainda conseguia destruir um ou dois de cada vez, mas agora cada golpe me custava muito mais energia do que antes.
E então, de repente, eles pararam.
O silêncio se tornou opressor. Os esqueletos se moveram ordenadamente para os lados, criando uma abertura no corredor. Meu estômago se revirou ao ver a razão.
Drael.
Ele caminhava em minha direção com aquele sorriso monstruoso, seus olhos brilhando com um prazer perverso. Mas não era ele que mais me assustava.
Era Nix.
Ele a segurava pelos cabelos, erguendo-a como se fosse um troféu. Seu rosto estava coberto de lágrimas, os olhos arregalados em desespero e dor. Seus lábios se moviam sem som, mas eu entendi perfeitamente:
— Me desculpe.
Aquelas palavras despedaçaram o que restava do meu coração.
— Não há nada a desculpar… — murmurei, sem forças.
Os esqueletos voltaram a avançar e, dessa vez, não lutei. Não havia propósito. Suas mãos ossudas me agarraram, dedos frios se cravando em minha pele, forçando-me ao chão.
Drael se aproximou, seu fedor pútrido invadindo minhas narinas. Ele riu, um som baixo e cruel.
— Você achou que eu não sabia? Que estava alheio aos seus planos? — Ele inclinou a cabeça, fingindo curiosidade. — Nada aqui dentro me escapa, Ganimedes. Nada.
Minhas mãos se fecharam em punhos, mas não havia nada que eu pudesse fazer.
— Mas… — tentei protestar, minha voz saindo rouca.
— Ah, é tudo parte do meu plano — ele disse, como se estivesse se divertindo. — Eu os alimentei, os deixei confortáveis, nutri a esperança dentro de vocês. Sabe por quê?
Ele se inclinou para perto do meu rosto, seu hálito fétido me fazendo querer vomitar.
— Porque nada destrói um espírito como a quebra da esperança. Não há tortura mais eficiente. Não há golpe mais fatal do que arrancar a única luz no fim do túnel.
Aquela verdade cruel afundou em mim como um punhal.
Meus olhos foram para Nix novamente. Ela ainda chorava, sua expressão uma mistura de medo e culpa. Meu sonho de liberdade, nossa esperança, não passava de um jogo doentio na mente de Drael. Uma ilusão que ele mesmo tinha alimentado, apenas para nos destruir da pior maneira possível.
Drael riu, chamando minha atenção de volta.
— Sabe por que deixei sua querida raposinha viva até agora? — perguntou, brincando com um dos cachos de Nix. — Por que eu a dei a você como um agrado?
Eu o encarei, minha raiva crescendo, mas impotente diante da realidade.
Ele estalou os lábios, satisfeito consigo mesmo.
— Você tem um propósito, Ganimedes. E ela tem o dela. O corpo de um humano é moldável, adaptável. Mas a alma de uma Vulpina? Ah… essa é forte. E será o combustível perfeito para a ressurreição do meu mestre e rei.
Os olhos de Nix se arregalaram em horror absoluto.
Ela soltou um grito sufocado quando ele a puxou com brutalidade, arrastando-a pelo corredor como se fosse nada mais do que um peso morto.
— Tragam-no — ordenou aos esqueletos, sem sequer olhar para mim. — Está na hora de trazer o mestre de volta.
E eu, impotente, fui arrastado para o que parecia ser o nosso fim.
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