Índice de Capítulo

    Jorjen se movia com graça e desenvoltura enquanto caminhávamos em direção ao escritório de Rosa. Selune e Nix preferiram permanecer no camarote, entretidas por Charlotte, que servia bebidas e petiscos. Além disso, Selune precisava recolher seus ganhos da noite.

    Quando chegamos ao escritório, Rosa estava atrás de sua mesa, com várias bolsas de dinheiro dispostas à sua frente. Conferia o pagamento dos gladiadores com atenção.

    — Está tudo certinho. Podem levar as bolsas. Confiram os nomes nelas, não quero erros. — Enquanto seus funcionários recolhiam os sacos, ela retirou uma bolsa menor do decote e avisou: — Estava esquecendo. O extra da melhor luta é da Gata das Sombras. Entreguem a ela.

    Uma moça de cabelos prateados pegou a bolsa com agilidade, saindo logo em seguida.

    Jorjen pigarreou para chamar a atenção, e Rosa ergueu o olhar, abrindo um sorriso que era acolhedor e perigoso ao mesmo tempo.

    — Então o garoto vai participar da minha arena?

    — Não é sua — corrigiu Jorjen. — Eu e outros temos participação, além do Conselho das Casas Menores.

    — Semântica apenas — respondeu Rosa com um gesto despreocupado. — O que interessa é esse filhotinho aqui. Ele quer brincar no nosso parquinho.

    — Isso ele quer — confirmou Jorjen.

    — O filhotinho está aqui — interrompi, incomodado por falarem de mim como se eu não estivesse presente.

    Rosa me lançou um olhar direto. Havia uma força palpável por trás daquele gesto, algo que me fez lembrar que ela era muito mais do que aparentava. Não era como Jorjen; ela carregava poder genuíno em sua presença. Estimei que estivesse no quinto círculo completo, mas não tinha como ter certeza sem vê-la em ação.

    — Vamos fazer o seguinte — disse ela, finalmente. — Você vem amanhã cedo. Eu vou testar você, de acordo? Diferente dos joguinhos de vocês, aqui as pessoas lutam para viver. E pense em um nome para se apresentar, além de uma roupa característica. Os organizadores do torneio não se importam com os jovens nobres aparecendo aqui, mas não querem que o público os ligue diretamente às Casas.

    Assenti. Rosa se levantou, deixando claro que nossa conversa estava terminando.

    — Algo mais?

    — Posso trazer uns amigos? Quero que eles se fortaleçam também.

    Ela riu de leve, mas concordou:

    — Desde que saibam onde estão se metendo, quanto mais, melhor. Meu público agradece.

    Voltamos ao camarote para buscar Selune e Nix. Queria chegar logo em casa. A noite tinha me dado um bocado de coisas para pensar.

    Quando chegamos, Selune me deu um beijo como a algum tempo não me dava e saiu para seu quarto. Pude sentir seu gosto, misturado com o vinho e o tabaco de seu cachimbo. Desde que Nix tinha nos pego no flagra, ela não tinha demonstrações de carinho assim tão íntimas na presença de outras pessoas, principalmente na frente de Nix, que ficou olhando, curiosa.
    Esperei que Nix tivesse alguma reação de ciúmes, mas não teve. Respirei aliviado, e tomando-a pela mão a puxei para nosso quarto.

    Me sentei na minha escrivaninha e redigi bilhetes curtos, pedindo a presença de Joaquim, Joana e Claire aqui na mansão, amanhã cedinho. Ia fazer a eles a proposta da arena. Chamei um dos serviçais de Jorjen e disse que queria que os bilhetes fossem entregues ainda hoje.

    Quando olhei para a cama, Nix já dormia, babando no travesseiro.

    Aproveitei a oportunidade e convoquei a ratazana que eu havia criado ontem no quarto. Queria analisá-la. Um mal pressentimento me invadia por conta de nossa ligação ser diferente da que eu tinha com Shade.
    O rato apareceu e com um guincho agudo, chamou minha atenção. Percebi que ele fedia, e coloquei ele em cima da escrivaninha. Seu pelo havia caído em alguns lugares e seus olhos estavam esbranquiçados e baços. Ele estava apodrecendo.

    Será que era por conta de eu ter transformado ele depois de morto?

    Eu retirei todo miasma de seu pequeno corpo e ele ficou inerte. Shade me era útil por justamente não aparentar nada de errado.

    — onde vou arrumar um rato vivo… — me perguntei em voz baixa.

    Um crocitar me tirou de minhas  divagações. Shade havia pousado em minha frente, segurando em suas poderosas garras um rato vivo, que se contorcia. Novamente ele tinha se adiantado a mim. Achei aquilo estranho, mas por nossa ligação, podia perceber que ele não tinha nenhuma má intenção em relação à mim.
    Peguei o pequeno rato, era um camundongo de pelagem acastanhada. Não era uma ratazana desta vez. Olhei para ele e com um dar de ombros infundi nele o miasma. Shade me observava atentamente. O camundongo tremeu e espumou pela boca. Ficou estático e depois de uns minutos começou a se mexer. Ele veio e tocou meu dedo, senti uma ligação com a pequena criatura parecida com a que tinha com Shade. Em minha mente mandei o camundongo se esconder. Amanhã a noite iria fazer uma nova avaliação dele.
    Fiz menção de me levantar mas Shade bicou o tempo da escrivaninha. Me concentrei em nossa ligação. Ele queria uma dose de miasma.

    Quando infundi miasma nele, me assustei. Seu pequeno corpo absorveu de uma só vez uma grande quantidade de miasma. Eu não estava esperando esse “puxão” e cortei o fluxo. Mas mesmo assim fiquei um pouco tonto.

    Olhei para Shade. Ele me olhava como que pedindo mais.

    Me levantei e fui me deitar, deixando Shade na escrivaninha, seus olhos brilhando com algo que eu não conseguia decifrar.

    Deitei ao lado de Nix, que dormia tranquila, e fechei os olhos. Decidi que era hora de visitar minha sombra no oceano de mana.

    Havia perguntas sérias que precisavam de respostas — principalmente sobre aquele corvo enigmático.

    Me concentrei e, com pouco esforço, estava lá. Já sentia aquele espaço como algo familiar. Meu coração de mana, feito de uma pedra preciosa pela criatura Drael, pulsava, absorvendo a energia ao meu redor. Dois anéis azulados giravam hipnoticamente em volta dele, e um terceiro estava quase completo. Minha sombra estava lá, como sempre, assim como a imensa esfera negra que representava a vontade de Mahteal e do miasma.

    Ao olhar para minha sombra, me surpreendi: ela estava menor.

    — O que houve? — perguntei, franzindo a testa.

    — Sempre que você usa o miasma, eu fico menor — respondeu, com sua voz sombria. — E ainda não me recuperei completamente daquele ataque de pânico que você teve.

    Antes que eu pudesse responder, minha sombra continuou:

    — Você quer saber sobre o corvo, Shade. — Sua voz não era uma pergunta. — Eu vejo tudo que você vê, mas, infelizmente, não sei o que você pensa. Só posso deduzir.

    Caminhou até a esfera de Mahteal e espalmou sua mão nela. Observei, intrigado, enquanto sua forma parecia crescer ligeiramente, absorvendo parte da essência daquela esfera. Quando voltou para perto de mim, uma risada baixa escapou de sua boca.

    — Bem, qualquer pessoa com miasma em seu núcleo pode criar um morto-vivo. Basta circular e infundir miasma em uma área ou corpo específico.

    Assenti, ouvindo em silêncio enquanto ele explicava.

    — Áreas saturadas com miasma acabam produzindo mortos-vivos naturalmente, ou, melhor dizendo, antinaturalmente. O miasma corrompe tudo ao redor: plantas e plantações morrem, mortos voltam à vida, crianças adoecem. Esses mortos obedecem ordens simples, mas agem por instinto quando não supervisionados. Sem direção, atacam indiscriminadamente. Se Selune quisesse, poderia criar mortos-vivos desse tipo. Eu acho que ela já fez algum experimento com isso.

    Ele fez uma pausa breve antes de prosseguir:

    — Existem muitos tipos de mortos-vivos, mas apenas você é capaz de criar alguns tipos específicos, por causa da herança de Mahteal. Ele os chama de mortos-vivos superiores. Shade, e agora seu camundongo, são desse tipo. Eles consomem energia do nosso núcleo de miasma e são completamente fiéis a você, mas exigem muito mais controle e poder. Eles geralmente não apodrecem.

    — Existe um limite? — interrompi, curioso.

    — Sim. Você só consegue lidar com mais um sem prejudicar seu núcleo, por enquanto. No entanto, com mais miasma, pode evoluí-los. Eles ficam mais inteligentes e ganham habilidades que outros mortos-vivos jamais teriam.

    A sombra parou por um instante, como se ponderasse suas palavras.

    — Também há algo que você pode fazer por Selune. Você pode evoluir o miasma dela, dando a ela mais controle. Se aceitasse, ela poderia criar mortos-vivos superiores como você. Mas isso vem com um preço: ela teria que abraçar plenamente o miasma que carrega.

    Fiquei em silêncio, deixando as implicações do que ele disse ecoarem no meu pensamento.

    — E por que eu deveria ajudar Selune a evoluir o miasma dela? — perguntei, cauteloso.

    Minha sombra inclinou a cabeça, seus olhos cintilando como o brilho de uma noite sem lua.

    — Porque pode ser vantajoso. Ela já tem um controle impressionante sobre o miasma, mesmo que negue e o rejeite. Se ela aceitasse a mudança, ficaria mais poderosa, e, por consequência, mais útil para você. Porém, é um risco. Evoluir o miasma de alguém não é um processo reversível. Ela se tornaria ainda mais ligada a essa força. E, claro, mais ligada a você, de formas que você nem pode imaginar.

    Minha sombra continuou:

    — Quanto ao corvo, ele é interessante. Shade não é apenas um morto-vivo superior; ele é especial até mesmo entre eles. Não encontrei indícios de que uma criatura desse tipo pudesse agir de forma tão independente e… proativa. Isso pode ser bom ou ruim, dependendo de como você decidir lidar com essa ligação.

    — Então você não sabe o que o torna diferente?

    — Não, não sei. — Minha sombra fez uma pausa, a expressão enigmática. — Mas posso te dizer isto: quanto mais miasma você infundir nele, mais único ele se tornará. Honestamente, não sei qual será o resultado de sua evolução.

    Essas palavras me deram calafrios. A ideia de Shade, uma criatura vinculada ao meu núcleo, desenvolver pensamentos e vontades próprias era, ao mesmo tempo, fascinante e aterrorizante.

    — Então devo limitá-lo?

    — Eu não faria isso, Lior. — Minha sombra sorriu, um brilho de diversão sombria em seus olhos. — Você vai se surpreender com o resultado, e ele será leal a você, disso eu tenho certeza.

    Fiquei em silêncio, observando o oceano de mana pulsar ao meu redor. As decisões que pairavam sobre mim eram pesadas. O destino de Shade, a escolha de permitir ou não sua evolução, e a possibilidade de ajudar Selune a aceitar sua verdadeira natureza moldariam mais do que eu estava disposto a admitir naquele momento.

    Ainda assim, não poderia ignorar o que estava diante de mim.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota