Capítulo 56: Tentando Selune
Quando voltamos à mansão, fomos direto para a sala de banho. O cheiro nauseante do cortiço parecia grudado em nossa pele, um lembrete vívido do horror que havíamos presenciado.
Deixei a água quente lavar o cansaço, mas a sensação de peso não se dissipava. Selune permanecia calada, os olhos prateados fixos em algum ponto distante. Sua expressão dura e pensativa me incomodava.
— Vamos falar disso amanhã — disse ela de repente, interrompendo minha tentativa de iniciar uma conversa. — Preciso organizar meus pensamentos… e tenho algumas revelações para fazer.
Assenti em silêncio, respeitando seu espaço.
Já no quarto, caí na cama, exausto. O peso dos últimos dias era sufocante: as consequências do meu duelo com Roderick, a preparação de Gérard e Claire para o Matadouro, a investigação do atentado contra mim e Cass, a iminência do torneio, e agora, a ameaça de alguém usando miasma de maneira magistral.
Tudo parecia desconectado, mas uma parte de mim temia que houvesse um fio comum unindo essas tragédias. E se houvesse, isso me colocava no centro de uma teia complexa e perigosa.
Fechei os olhos, sabendo que meu descanso seria breve e inquieto.
O puxão na minha consciência veio antes que o sono me tomasse por completo. Em um instante, eu estava novamente no meu oceano de mana.
— Estou intrigado — disse minha sombra, sua voz ressoando como um eco sombrio. — Não esperava encontrar um praticante de miasma tão habilidoso aqui no coração das terras humanas.
Lembrei-me dos crânios, daquele verme grotesco.
— O que era aquilo? Os crânios, o verme… Achei que miasma não existisse aqui.
— Preciso confessar algo — começou ele. — Evitei absorver conhecimentos relacionados ao miasma dentro da essência de Mahteal. Toda vez que mergulho profundamente ali, sinto algo me observando. Não é Mahteal… é como se outra coisa habitasse ali também.
Sua voz tinha um tom raro. Um receio de algo que nem ele sabia bem o que era.
— Mas depois do seu episódio com Shade e seus experimentos com miasma, fui forçado a buscar informações. Tinha receio que isso pudesse despertar a consciência dele, mas… nada aconteceu. Parece que ele não está apenas adormecido, mas em um estado de coma, a única hora que temos uma reação, é quando você tem seus sonhos.
— E o que você conseguiu descobrir?
— Bem, o verme é chamado de “semente de carniçal”. Ele é invocado para escravizar e controlar alguém. O invocador insere diretrizes primárias que se tornam a força motriz do hospedeiro. Fora dessas ordens, a pessoa age de forma autônoma.
Arrepios percorreram minha espinha enquanto ouvia.
— Com o tempo, os carniçais se tornam mais excêntricos e, em alguns casos, manifestam poderes. Se o verme não for alimentado com miasma regularmente, ele começa a devorar o cérebro do hospedeiro.
Minha mente imediatamente pensou em Jorjen e Marcus. Não tinha sido eu quem invocou a semente, disso eu tinha certeza. Mas… poderia ser isso que estava dentro deles? E se fosse, quais seriam as ordens primárias?
— Há uma maneira de reverter isso?
— Não que eu saiba. Talvez, com mais tempo, eu possa encontrar alguma informação.
O silêncio entre nós era denso, carregado de incertezas e temores.
— Agora, os crânios são uma coisa ainda mais elaborada e insidiosa. Criá-los não é tecnicamente difícil, mas exige um ritual em várias etapas, e, acima de tudo, a intenção deliberada de causar mal.
Minha sombra fez uma pausa, observando-me como se quisesse medir minha reação antes de continuar.
— Eles são chamados de “maldição de ossos”. Esse tipo de arte sombria é usado quase exclusivamente por necromantes humanos ou demi-humanos. Esses crânios transformam a mana ambiente em miasma de maneira lenta, quase imperceptível, e servem como instrumentos de maldição. O miasma que eles produzem é particularmente eficaz para causar desequilíbrios mentais, emocionais e até doenças debilitantes que não têm uma causa aparente.
As palavras dele me deixaram inquieto, mas era a seriedade no tom de sua voz que realmente me abalava.
— Esse tipo de conhecimento não é algo que você encontra facilmente — ele continuou. — É proibido, guardado a sete chaves. Não é todo mundo que carrega uma biblioteca de magias dentro de si, como você.
Havia uma advertência em sua voz que não passou despercebida.
— Não subestime quem fez isso, Lior. Para chegar tão longe sem a bênção de Mahteal, essa pessoa precisa de uma vontade inabalável, além de ser impiedosa e consumida por sede de poder. Necromancia e miasma não são para os fracos de estômago.
Meu estômago revirou ao pensar nisso. Quem quer que estivesse por trás desses rituais, era alguém muito além de um simples manipulador. Era um adversário que operava nas sombras, com objetivos que ainda não compreendíamos.
O peso daquela revelação pairou sobre mim, tornando o ambiente do meu oceano de mana ainda mais sufocante. Se tudo isso estava conectado às ameaças que rondavam as Grandes Casas, eu não tinha dúvida: o pior ainda estava por vir.
Acordei olhando para a viga no teto, onde Shade ainda estava envolto em sombras. Seu contorno quase indistinto parecia me observar, e um arrepio percorreu minha espinha.
Levantei-me e fui até a mesa onde Nix e Selune tomavam o café da manhã. Selune estava quieta, seu olhar perdido em pensamentos. Quando terminamos, ela pediu para Nix sair, dizendo que precisava falar comigo a sós.
— Certo — murmurei, sentando-me novamente. A expressão complicada em seu rosto indicava que o que viria a seguir não seria fácil de ouvir.
Ela respirou fundo antes de começar.
— Saiba que não me orgulho do que vou lhe dizer. Já lhe contei sobre minha paixão pela magia, pelo conhecimento, e, porque não dizer, pelo poder.
Ela hesitou, buscando as palavras certas.
— Quando perdi minha magia… eu tentei de tudo. Queria voltar a me sentir especial. Queria poder de novo. Você sabe o que é sentir que o mundo está em suas mãos e, de repente, perdê-lo?
Balancei a cabeça.
— Não, realmente não sei. Nunca tive poder algum.
Ela me olhou como se pedisse desculpas, mas fiz um gesto para que continuasse.
— Depois que meu núcleo se corrompeu, só restou o miasma. As magias convencionais não aceitam miasma como fonte de energia. Elas são incompatíveis. Eu me vi diante de dois caminhos: abandonar a magia para sempre ou abraçar a única forma de magia que usa miasma como fonte… necromancia.
Sua voz tremeu na última palavra, como se ela carregasse peso suficiente para quebrá-la.
— O livro que continha os rituais que corromperam meu núcleo… não foi encontrado na biblioteca, como te disse antes. Ele me foi dado de presente por uma colega.
Selune baixou os olhos, sua voz carregada de tristeza e arrependimento.
— Assim como eu, ela era fascinada por magia, poder e segredos. Disse-me que o ritual revelaria meu verdadeiro potencial, que eu seria poderosa além dos limites. Mas ela mentiu.
Houve uma pausa, e sua expressão ficou mais sombria.
— Ela me garantiu que o ritual liberaria meu poder oculto, não miasma. Disse que, quando isso acontecesse, eu deveria procurá-la, e ela me ajudaria a entender esse poder, apresentaria pessoas que poderiam me ensinar…
Sua voz tremeu, e lágrimas começaram a descer por seu rosto.
— Mas não foi isso que aconteceu. Quando meu núcleo se corrompeu, procurei ajuda dos meus professores. E foi aí que Calista… desapareceu. Era como se ela nunca tivesse existido. Seu quarto alugado estava vazio, sua inscrição na escola era falsa.
O silêncio que seguiu suas palavras parecia pesar na sala.
— Meu núcleo só produzia miasma. Não conseguia mais acessar mana, e meus professores… me renegaram. Fui presa na escola, acusada de práticas proibidas. Iriam me entregar ao tribunal.
Ela limpou os olhos, tentando manter a compostura.
— Mas eu escapei. Foi nessa época que conheci Karlom. Ele era jovem e tinha sua irmãzinha para proteger. Nós nos ajudamos, sobrevivemos… Fizemos o que era necessário para nos manter vivos. Não vou entrar em detalhes, Lior, porque nem eu, nem ele, nos orgulhamos dessa fase. Mas isso nos moldou no que somos hoje.
Ela ergueu o olhar novamente, determinada, mas ainda vulnerável.
— Voltando à história… eu não tinha como aprender a usar o miasma. Calista havia desaparecido, a escola me rejeitava, e ninguém aceitava alguém como eu. Mas eu não podia abandonar a magia. A única opção era necromancia.
Houve um brilho sombrio em seus olhos enquanto continuava.
— Mas eu não tinha ninguém para me ensinar. Então… experimentei. Aprendi sozinha, na base de tentativa e erro. Tínhamos que mudar de esconderijo quase toda semana. Cada passo era um risco, cada erro, uma sentença de morte.
Ela fez uma pausa, sua voz pesada com a lembrança do que havia vivido.
— E, por mais terrível que fosse… sobrevivi. Mas não sem cicatrizes. Aprendi, a duras penas, que o miasma só traz dor e sofrimento. É um veneno lento, que consome a alma. Não quero que o mesmo aconteça a você. Mas ontem… o que aconteceu ontem me mostrou algo que sempre temi. O passado, Lior… o passado nunca fica enterrado. Ele sempre encontra uma maneira de voltar.
Ela respirou fundo, os olhos brilhando com algo que eu não conseguia distinguir entre medo e dor. Eu a encarei.
— Você sabe sobre minha sombra, minha contraparte, e sobre a consciência que habita meu oceano de mana. É por causa deles que possuo conhecimentos que, de outra forma, seriam impossíveis para mim.
Selune me olhou com seus olhos ainda úmidos e assentiu lentamente. Havia uma aceitação silenciosa em seu gesto, e isso me encorajou a continuar.
— E se eu dissesse que o que você fez não é exatamente necromancia? Ou, talvez, que seja… mas de forma crua, incompleta. Apenas uma sombra do que poderia ser. O miasma que você carrega não é poder; é uma maldição. Ele só conhece a corrupção e a desgraça.
Dei um passo à frente, meu coração batendo com força.
— Você me ensinou muito, Selune. Continua me ensinando. Mas preciso dizer que o que você conhece sobre o miasma e a necromancia… é quase nada. Tudo o que fez até agora foram tentativas às cegas, sem o combustível certo, sem a verdadeira compreensão.
Parei por um momento, deixando minhas palavras ressoarem.
— Nos conhecimentos que herdei, descobri que existe uma maneira de transformar sua produção de miasma, de moldá-la em algo mais. Você poderia se tornar uma verdadeira necromante, Selune. Mas nunca tive a oportunidade de falar isso. Até agora.
Seus olhos se arregalaram, surpresa estampada em sua expressão.
— Não peço que aceite. Essa escolha é sua. Mas quero que saiba que existe um caminho. Qualquer dor ou trauma que tenha vivido antes foi fruto da ignorância, da ausência de uma direção verdadeira. E eu posso ajudá-la a trilhar esse caminho, se você quiser.
Meus olhos se fixaram nos dela, e a convicção em minha voz me surpreendeu tanto quanto as palavras que escapavam de meus lábios.
Por um instante, ela ficou imóvel. Eu podia sentir o peso daquele momento entre nós, como se estivéssemos à beira de algo grande e perigoso, algo que poderia mudar tudo. Pisquei, atordoado pelas minhas próprias palavras. Elas fluíram de mim como se pertencessem a outra pessoa. Mas, no fundo, eu sabia que eram verdadeiras.
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