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    Drael seguia na frente, arrastando Nix pelos corredores tortuosos que eu já havia percorrido antes, um labirinto de sombras, um emaranhado de pedra e dor. Eu havia trilhado aquele caminho na esperança de ganhar tempo, de dar a ela uma chance de danificar a joia maldita. Agora, cada gemido que escapava de sua garganta me cortava por dentro. Não importava mais a dor que sentia sendo arrastado pelos esqueletos. Seus dedos ossudos afundavam em minha carne com violência, mas eu já não era mais dono da minha dor.

    Meu espírito estava despedaçado, e o sofrimento de Nix era uma ferida muito mais funda do que qualquer outra.
     

    O percurso, que antes me parecera interminável, se revelou curto com a criatura guiando. Quando dei por mim, estávamos no laboratório. Um calafrio percorreu minha espinha. O ambiente fora transformado. O espaço, outrora macabro por natureza, agora era pura profanação. O lugar parecia ter sido arrancado de um pesadelo, círculos arcanos grotescos e macabros de enormes proporções cobriam o chão, enquanto inscrições ancestrais, feitas com o que parecia ser sangue coagulado, adornavam as paredes como cicatrizes rituais. As linhas vibravam com uma energia viva, pulsante, como se o próprio espaço respirasse. No centro do cenário hediondo, repousava a joia, um rubi colossal, do tamanho de um ovo gigantesco, pulsando com uma cadência doentia, como o coração de um deus morto, tentando bater uma última vez.
     

    Fomos levados ao centro da sala. Os esqueletos pareciam cuidadosos, como se temessem perturbar as inscrições no chão. Fui jogado sobre a mesa, a mesma que já me servira de maca nas sessões anteriores, e preso com grossas tiras de couro que cortavam meus pulsos e tornozelos. Na cabeceira da maca, havia agora uma jaula de ferro negro. Drael, sem qualquer cuidado ou compaixão, atirou Nix ali dentro como se fosse um farrapo. Ela tentou reagir, reunir forças, canalizar sua magia. Mas antes que pudesse concluir qualquer gesto, Drael ergueu a mão e a lançou contra as grades com um movimento simples, quase preguiçoso. Seu corpo bateu com força. Ela caiu, tonta, ofegante, os olhos girando, mas ainda viva.
     

    Drael me lançou um olhar carregado de escárnio. O sorriso em seu rosto era a antecipação da vitória.
     

    — Achou que eu não saberia? — disse ele, a voz arrastada, venenosa. — Tolo. Agora o mestre renascerá em seu corpo. Deveria se orgulhar disso…
     

    Ele se virou, apanhando o cetro de madeira negra que eu já havia visto. A peça era tortuosa, quase viva, como se tivesse se contorcido de dor ao ser criada. No topo, uma caveira adornava a arma, e em suas órbitas brilhavam gemas, uma esmeralda em particular, reluzente e doentia, parecia pulsar em sincronia com a joia ao centro da sala.
     

    Drael se aproximou de mim. Seus dedos deformados tocaram minha testa, e naquele instante senti como se uma agulha atravessasse meu crânio. Um espasmo percorreu meu corpo e quase perdi a consciência. Ele começou a entoar um cântico. Não era apenas uma língua esquecida, era algo profano, uma inversão do próprio conceito de linguagem. As palavras arranhavam meus ouvidos, reverberavam como garras nos ossos. Cada sílaba parecia desfigurar o ar. Meus pelos se eriçaram, e senti a mana do ambiente responder, girando em torno de nós, lenta no início, como uma dança ritual, mas ganhando velocidade e força a cada palavra dita.
     

    A joia acima da minha cabeça pulsava com mais intensidade, emitindo um brilho enegrecido que parecia absorver a luz ao redor. E então ela sincronizou com meu coração. Senti isso. Cada batida minha era refletida no rubi. Cada pulsação, um passo a mais rumo ao abismo.
     

    A mana girava ao nosso redor, transformando-se num redemoinho. Quando o turbilhão atingiu forma plena, Drael virou o cetro em direção à jaula. Nix arfava, tentando resistir, mas estava fraca demais. Um grito quase escapou de sua garganta, mas foi engolido pelo próprio esforço. E então vi: um fio dourado, tênue como o raio da alvorada, escapando de sua testa e do centro de seu peito. Era sua essência. A alma da raposa, viva, lutando contra o inevitável. A única centelha de luz num redemoinho de trevas que consumia tudo ao redor.
     

    A expressão de Drael se tornou ainda mais monstruosa. As sombras brincavam em seu rosto como serpentes, moldando uma máscara de prazer sádico.
     

    Ele voltou-se para a joia, agora vibrando com uma frequência frenética. Dela começou a emanar uma energia espessa, negra como óleo e com o odor acre de ódio antigo. Aquilo não era apenas mana. Era emoção crua — raiva, rancor, agonia — condensadas em forma de magia. A névoa pútrida se misturou ao redemoinho, escurecendo-o ainda mais. Era uma luz antinatural, que ao invés de iluminar, apagava. Uma claridade invertida. Fantasmagórica.
     

    No instante seguinte, a última centelha dourada escapou de Nix. Seu corpo tremeu violentamente, depois colapsou, inerte sobre o chão da cela. Espuma saía de sua boca e nariz. Quis gritar, mas minha garganta estava selada por um nó invisível. Quis chorar, mas as lágrimas me faltaram. Meu corpo já não me pertencia. Era uma marionete presa à mesa.
     

    A joia escarlate vibrou uma última vez e, com um clarão sombrio, tornou-se opaca, morta. A pulsação cessou. O redemoinho, ao contrário, brilhou intensamente, como se um relâmpago invertido o tivesse atravessado, e então acelerou ainda mais.
     

    Quando a energia do ritual atingiu seu ápice, Drael alterou o tom do cântico. As palavras, antes solenes e arrastadas, tornaram-se rápidas e cortantes, uma torrente de sílabas agudas que pareciam se enterrar direto na minha mente. Cada som soava como lâminas finas rasgando meus pensamentos, como se a própria linguagem do feitiço tivesse sido forjada para ferir a alma. 
     

    Com um gesto brusco, animalesco, Drael canalizou o redemoinho de energia. O vórtice afunilou-se em espiral vertiginosa, ganhando uma densidade opressiva, até que um único ponto emergiu, e esse ponto se alinhou precisamente com o local da agulhada em minha testa. 
     

    No instante em que se conectou a mim, um impacto surdo ressoou dentro da minha cabeça. A pressão era brutal, antinatural, impossível de suportar. Era como se um segundo coração tivesse começado a bater dentro do meu crânio, crescendo e se expandindo a cada pulsação, buscando explodir para fora em uma explosão de carne e ossos. 
     

    Senti um gosto metálico e pútrido invadir minha boca, como se estivesse mastigando ferrugem e carniça. Meus olhos lacrimejavam contra minha vontade, minha respiração se tornava errática, e percebi que minha consciência começava a vacilar, a escorregar para os cantos escuros da loucura. Mas me agarrei a mim mesmo com unhas e dentes. Por Nix. Por mim. Eu não podia ceder. 
     

    Drael parecia extasiado. Sua expressão era de êxtase profano, como se tivesse tocado o divino, ou o que ele considerava divino. Suas mãos tremiam enquanto manipulava o fluxo da mana profana que agora se forçava para dentro do meu corpo. Cada gota daquele poder me parecia feita de chumbo derretido. Meus ossos estalavam com ruídos úmidos e doentes, como se estivessem sendo moldados, rearranjados por dentro. 
     

    Trinquei os dentes até sentir sangue na boca. Meu corpo inteiro tremia como se estivesse sendo eletrocutado, espasmos involuntários percorriam meus membros. Era como se algo, ou alguém, estivesse tentando entrar. Tomar posse. 
     

    Mais da metade daquela energia já havia me invadido, mergulhado em mim como uma maldição líquida e viva. A parte restante vinha em velocidade ainda maior, pressionando minha mente como um peso esmagador. Minhas costas arqueavam-se contra as correias de couro. Eu gritava por dentro, mas não havia som. 
     

    Quando a última gota daquela escuridão atravessou minha pele, rompendo a fronteira final entre mim e o ritual, o mundo explodiu em silêncio. Tudo apagou. 
     

    E então, me vi em um lugar escuro. 
     

    Um vazio absoluto. Sem som. Sem luz. Sem corpo. 
     

    Apenas eu, ou o que restava de mim.

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