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    Era uma escuridão estranha, mas confortável. Não havia cima, nem baixo, nem qualquer outra direção discernível. Um lugar onde o tempo parecia suspenso, e o espaço se dissolvia. Era morno, acolhedor como o útero de uma criatura adormecida. Durante alguns momentos, considerei a ideia de que, se aquilo fosse a morte, talvez não fosse tão ruim assim.
     

    Meus olhos, ou a lembrança deles, começaram a pesar. A consciência, tênue como fumaça, ameaçava escapar, dispersando-se na vastidão sem nome.
     

    Foi então que senti. Um puxão, leve, quase imperceptível, na minha testa.
     

    A princípio, ignorei. Mas ele se repetiu, insistente, rasgando o torpor que começava a me consumir. Afastei a apatia com esforço e foquei naquele único ponto de conexão com algo além do vazio.
     

    Abri meus sentidos, tentando captar mais, e então o vi: um fio fino, de um brilho azulado muito sutil, que se estendia da minha testa, desaparecendo em algum lugar da escuridão.
     

    O calor confortável da morte foi substituído por um calafrio de sobrevivência. Era como se, de repente, minha mente gritasse para que eu lutasse. Para que eu não me entregasse.
     

    A imagem de Cassiopeia surgiu na minha mente, não como uma lembrança forçada, mas como um sussurro natural. Eu a tinha visto treinar incontáveis vezes, manipulando seu oceano de mana. Ela dizia que a vontade era a chave. Que, dentro daquele espaço interior, tudo se movia e obedecia apenas à força da vontade.
     

    Agarrei-me a essa lembrança como a um salva-vidas.
     

    Concentrei minha intenção em me mover. E então, pela primeira vez naquele lugar de silêncio absoluto, avancei.
     

    O fio azul vibrava levemente, como uma trilha viva, me guiando. À medida que eu acelerava, percebia que a escuridão parecia recuar, diluindo-se como névoa. Uma claridade longínqua surgia no horizonte.
     

    Depois de um tempo, que não sei dizer se foram segundos ou eternidades, me vi emergir em um novo cenário.
     

    Acima, um céu carregado de nuvens escuras. Elas passavam rápido, empurradas por ventos silenciosos, formando redemoinhos e espirais inquietas. Nenhuma estrela. Nenhuma luz.
     
    Abaixo, um oceano igualmente cinzento e revolto. As ondas se chocavam com violência invisível, produzindo um som surdo, abafado pela distância.
     

    No meio daquele caos, flutuando acima das águas turbulentas, havia uma joia. Um enorme coração de cristal vermelho, brilhando fracamente. Seu interior parecia oco, vazio, como se tivesse sido esvaziado à força.
     

    Eu soube, instintivamente: aquele era o meu núcleo de mana. Não o núcleo natural com o qual eu nascera, mas algo reconstruído. Um receptáculo, uma armadilha moldada pelas mãos de Drael.
     

    E estava vazio.
     

    Meus pensamentos correram velozes. O mana que eu acumulara nos últimos dias, o que eu acreditava ser uma recuperação, fora drenado. Preparado para algo maior. Algo que agora eu começava a entender: para abrigar Mahteal.
     

    Olhei ao redor, procurando algum sinal de mim mesmo. E então vi.
     

    O fio azul ainda me ligava a uma esfera flutuante de luz. Uma esfera azulada, translúcida, vibrante. Ela pulsava, e sua presença era como o calor de um lar esquecido.

    Meu verdadeiro mana. Meu eu.
     

    Mas não era a única coisa naquele lugar.
     

    Ao lado da esfera azul, quase fundida à sombra do céu, havia outra esfera. Imensa. Negra como um poço sem fundo.

    A superfície daquela coisa ondulava lentamente, com movimentos lentos e viscosos. Era como observar óleo negro flutuar sobre a água, pesado e denso.
     

    Uma pressão invisível caiu sobre mim, comprimindo meus pulmões, prendendo minha respiração.
     

    Medo. Um medo puro e irracional.
     

    Fiquei paralisado por instantes, incapaz de fazer qualquer coisa além de observar aquela massa viva e adormecida. Porém, ao olhar com mais atenção, percebi algo crucial: ela não se movia de forma ativa. Não reagia. Estava… dormente.
     

    Era como uma fera enterrada em sono profundo, esperando o momento certo para acordar.
     

    Não era defeito. Não era descuido. Lhe faltava intenção.
     

    Com essa percepção, meu medo recuou ligeiramente, abrindo espaço para uma ponta de curiosidade misturada a pavor.
     

    Eu não podia esperar mais. Cada batida do meu coração dizia isso.
     

    Concentrei-me. Comandei a esfera azul com um pensamento. Pedi, implorei para que ela se movesse em direção ao coração vazio de cristal.
     

    E ela obedeceu.
     

    A esfera deslizou pelo ar pesado, aproximando-se do coração vermelho. Quando chegou suficientemente perto, a joia pulsou, um som grave e solitário que ecoou pelo oceano cinzento.
     

    Do núcleo azul partiram tentáculos de luz. Eles se estenderam, hesitantes a princípio, depois firmes, abraçando o coração.
     

    O cristal reagiu, vibrando. Os tentáculos começaram a se enroscar, a infundir seu brilho para dentro da estrutura vazia.
     

    Uma batida. Depois outra. O núcleo ganhava vida.
     

    Meu peito se inflou de esperança.
     

    Mas essa esperança foi esmagada no instante seguinte.
     

    A esfera negra, até então adormecida, tremeu levemente. Um estremecimento quase imperceptível correu por sua superfície.
     

    O som das batidas do coração, a movimentação da mana… haviam despertado a fera.
     

    Com uma lentidão agonizante, a massa negra começou a se mover, estendendo suas sombras na direção do núcleo.
     

    Eu soube, sem dúvida, que se ela o alcançasse antes que toda minha mana estivesse lá dentro… tudo estaria perdido.
     

    O terror antigo voltou a me consumir. Mas desta vez, junto a ele, veio a determinação.
     

    Eu tinha que vencer.
     

    De algum jeito, eu tinha que vencer.
     

    As lições de Cassiopeia vieram à tona como um sussurro familiar, uma âncora em meio ao caos. Ela dizia que dentro do oceano de mana, tudo se resumia a uma única força: a vontade. Não importavam fórmulas ou gestos arcanos. O que determinava a realidade ali era a firmeza da intenção, a clareza do desejo.
     

    Com isso em mente, reuni tudo o que podia da minha determinação e a moldei, concentrando-me em conter a esfera negra. Visualizei redes intricadas feitas de luz, correntes de energia mágica, cordas espiraladas que desciam do céu e se prendiam ao oceano abaixo — todas ligadas à massa negra, tentando imobilizá-la.
     

    Mas foi inútil.
     

    Minhas amarras se desfaziam como fumaça ao toque da esfera. Não sei se foi por falta de prática, ou se pela densidade brutal de vontade que pulsava dentro daquela coisa escura… Mas nada funcionava. Ela seguia seu caminho, inabalável, como um planeta colidindo com um cometa, sem nem perceber a tentativa de resistência.
     

    Meu senso de urgência explodiu como uma sirene em minha mente.
     
    Tentei empurrá-la com a mente, tentei alterar o terreno, mudar a gravidade, criar barreiras de energia… Tudo inútil. A esfera negra avançava lenta e firme, como se nada no universo pudesse detê-la. E, mais do que isso, eu estava com medo. Um medo profundo, visceral, de tocar aquela coisa e ser apagado.
     

    Minha mente pulava de solução em solução até que, no meio da confusão, surgiu uma ideia insana.
     

    E se eu dividisse minha consciência?
     

    Se pudesse manter a transferência de mana com uma parte de mim, e com outra tentar confrontar diretamente a esfera? Mesmo que perdesse um pedaço de mim no processo, ainda teria chances. Ainda estaria vivo. E isso, naquele momento, era o que importava.
     

    Me concentrei.
     

    Projetei minha vontade como uma lâmina e a fendi, ou melhor, a estiquei. Me dividi. E, com espanto, percebi que havia conseguido. Me vi por outro par de olhos. Era como estar em dois corpos ao mesmo tempo, em duas mentes distintas, mas ainda assim conectado. Um milagre bizarro de autopercepção.
     

    Uma parte de mim continuou focada em manter o fluxo da esfera azul em direção ao núcleo. A outra, tomou impulso e voou direto para a esfera negra.
     

    O medo era quase paralisante. Sentia sua pele pegajosa mesmo antes de tocá-la. A superfície da esfera parecia feita de óleo vivo e frio, pulsando com intenções ocultas. Mas minha outra parte não hesitou.
     

    Encostou.
     

    E submergiu.
     

    Naquele instante, a conexão entre nós foi cortada. Como se uma ponte tivesse sido destruída atrás de mim. Um vazio repentino, mas… não me senti incompleto. Ainda estava inteiro, de algum modo. Como se aquela parte tivesse sido absorvida e agora ecoasse dentro de mim, mesmo que separada.
     

    A esfera negra, pela primeira vez, parou.
     

    Estagnou no ar, congelada em seu avanço.
     

    Enquanto isso, a esfera azulada completava sua tarefa. Os últimos fios de mana se conectaram ao coração de cristal, que bateu com força, um som grave, orgânico, vibrando por todo o céu cinzento.
     

    E então, tudo mudou.
     

    O céu escuro se abriu lentamente, como se o sol estivesse tentando romper o véu de nuvens. A luz que emergiu era suave, dourada, reconfortante. O oceano, antes agitado e sem cor, se acalmou, ganhando um tom azulado sereno.
     

    Era belo. Quase sagrado.
     

    Eu respirei fundo pela primeira vez, sentindo que talvez tivesse vencido. Mas a vitória durou pouco.
     

    Algo se moveu.
     

    Uma sombra negra emergiu da superfície da esfera paralisada.
     

    Meu coração parou por um instante.
     

    Ela tinha minha forma.
     

    Era idêntico a mim. Cada traço, cada fio de cabelo, cada centímetro da expressão.
     

    Mas seus olhos eram diferentes. Carregavam uma profundidade que me fazia lembrar de mil noites insones, mil decisões impossíveis, mil mortes que quase aconteceram.
     

    — Drael vai perceber, assim que acordar, que a transferência não deu certo — disse ele, com um tom calmo e direto.
     

    Levantou uma das mãos. Na palma descansava uma pequena esfera negra, do tamanho de uma maçã. Ela pulsava com uma energia densa, contida, viva.
     

    — Aqui está tudo que sei sobre ele. Como lidar com Drael, como enfrentar o que virá. E também informações sobre os poderes de Mahteal. Vai precisar.
     

    Abriu a outra mão.
     

    Ali repousava uma pequena esfera dourada, delicada e quente, com uma luz que vibrava de maneira reconfortante.
     

    — Esta é a essência de Nix. Acho que vai querer levá-la também.
     

    Ele me olhou por um longo momento. Seu olhar era o meu, mas também era algo mais, mais velho, mais cansado, mais esperançoso.
     

    E sorriu.
     

    — Agora vá. Salve-nos… e salve nossa raposinha.

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