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    Por algum tempo, achei que depois de ferir sua perna, poderia equilibrar a luta, estava enganado.

    — Eu disse que isso seria fácil. — A voz do gigante ecoou, arrogante, enquanto eu lutava para me erguer da areia, ensopada de suor e sangue, após ser jogado novamente no chão.

    Cada fibra do meu corpo gritava em protesto. O corte que eu havia desferido atrás do joelho dele o deixara mais lento, mas ele ainda era uma muralha imponente. E agora, estava mais atento aos meus movimentos.

    — Chega de brincar, garoto. Vamos acabar logo com isso.

    Ele avançou com a marreta em mãos, arrastando o peso da arma pelo chão. O som ecoava como um trovão em minha mente, paralisando-me por dentro. Eu estava assustado, e sabia que, naquele estado, minhas chances de vencer eram mínimas.

    “Não. Eu não posso perder aqui”, pensei. Mas meu corpo não obedecia.

    O mana circulava com dificuldade, como uma fogueira prestes a apagar. Não era meu núcleo, mas meu corpo, exausto, incapaz de reagir à infusão de mana. Foi então que senti outra coisa. Algo antigo, sombrio, pulsando dentro de mim. Uma alternativa.

    Minha corrupção. Meu miasma.

    — Não… — murmurei para mim mesmo.

    Era absurdo, suicida, mas irresistível. Se eu usasse apenas um fiapo, ninguém perceberia.

    — Já está falando sozinho? — zombou o gigante, preparando outro golpe. — Você é ainda mais patético do que eu pensava.

    Ele investiu, e o mundo pareceu desacelerar. Era agora ou nunca.

    “Um fiapo… só um fiapinho…”

    Fechei os olhos e deixei o miasma fluir. A energia maldita que eu sempre suprimia invadiu minhas veias como uma corrente de fogo negro, queimando minha carne e ossos. As faixas de linho em meu corpo escondiam as marcas que começavam a emergir. A dor foi tão intensa que soltei um grito gutural, mas, junto dela, veio uma força indescritível.

    Quando abri os olhos, tudo parecia cristalino. Cada detalhe da arena, cada grão de areia, cada movimento do gigante era nítido.

    Ele não percebeu a mudança. Avançou com a arma erguida, confiante, mas eu já não era o mesmo.

    Antes que a arma pudesse me atingir, desferi um golpe rápido e certeiro. Minha espada atravessou a proteção do ombro dele, separando a articulação. Seu braço caiu inerte, e a cabeça de sua marreta despencou no chão.

    — O quê?! — Ele recuou, atordoado.

    Não lhe dei tempo para reagir. Meus movimentos eram rápidos, precisos, sobre-humanos. Avancei e desferi uma sequência de cortes. Minha velocidade era outra, e ele estava sempre um passo atrás. Cada golpe era raso, mas intencional, como se eu estivesse brincando com minha presa.

    Quando perfurei seu joelho já ferido, ele urrou, brandindo inutilmente o que restava de sua força. A marreta agora era um peso morto em suas mãos.

    — O que você é?! — Ele gritou, a voz carregada de medo.

    — Algo que você nunca deveria ter provocado. — Minha voz saiu fria, quase irreconhecível até para mim.

    Com um último movimento, chutei sua perna ferida. Ele caiu de joelhos, respirando com dificuldade, o olhar derrotado.

    Levantei minha espada, pronto para o golpe final. Mas o calor do miasma começou a corroer minha mente. A sede por sangue crescia, acompanhada de visões distorcidas. Via todos ao meu redor reduzidos a mortos-vivos, servindo-me, ajoelhados diante de mim.

    Um sorriso começou a se formar em meus lábios.

    “Controle-se…”

    Cerrei os olhos e forcei o miasma de volta para as profundezas. O processo foi excruciante. Quando abri os olhos novamente, a arena parecia desbotada, como um sonho distante.

    O gigante estava no chão, derrotado. A multidão gritava em êxtase, mas seus gritos eram abafados por algo mais dentro de mim.

    O sangue pingava da minha espada, manchando a areia, e, por um instante, senti sede. Sede de mais.

    Meu corpo tremeu. Antes que eu pudesse sucumbir à tentação, minhas forças cederam. Tudo escureceu, e eu desmaiei, vencido pelo meu próprio poder.

    A primeira coisa que senti foi a maciez onde minha cabeça estava apoiada: o colo de Nix. Minha visão ainda estava turva, mas reconheci o ambiente ao redor. Estávamos no escritório de Rosa, um lugar que eu já conhecia.

    Nix estava sentada no sofá, com meus cabelos entre os dedos, e eu deitado no colo dela. Selune observava de uma cadeira próxima, enquanto Rosa permanecia séria atrás da escrivaninha. No canto da sala, um homem magro, de grandes orelhas e uma barba branca desgrenhada, mexia em algo fervente dentro de um cadinho cerâmico.

    — Ah, você acordou! — disse ele, aproximando-se com passos rápidos.

    Antes que eu pudesse reagir, ele segurou meu rosto e puxou minha pálpebra para baixo, examinando meus olhos com atenção. Seus próprios olhos, negros e cristalinos, brilhavam com curiosidade.

    — Hmmm… interessante… — murmurou antes de me soltar e voltar à sua mistura. Ele despejou um pouco de vinho no cadinho, mexeu e, então, estendeu-me o recipiente.

    — Tome. É um estimulante. Vai ajudar a acelerar sua recuperação. Me diga… usou muita magia de cura lá dentro?

    Foi nesse momento que a memória da luta voltou como um trovão. Lembrei-me das pancadas, do miasma, da dor e da queda final. Levantei-me abruptamente do colo de Nix e do sofá, mas o movimento me deixou tonto. Cambaleei, mas o velho me segurou com uma força inesperada para alguém tão magro.

    — Vá com calma, rapaz! — disse ele, com um sorriso satisfeito.

    Mexi os braços e o torso, tentando sentir algum resquício de dor ou fratura, mas nada. A sensação de recuperação completa era quase surreal.

    — É… acho que usei sim… — respondi hesitante.

    Ele estendeu a mão em um gesto amistoso.

    — Malkus. Sou o chefe dos alquimistas-cirurgiões da arena. Minha função é preservar a vida e a funcionalidade dos gladiadores. — Ele me avaliou de cima a baixo. — Fazia tempo que não via uma magia de cura tão… eficiente por aqui.

    Antes que eu pudesse responder, a voz autoritária de Rosa cortou o ar— Obrigada, Malkus, mas agora eu e este jovem temos assuntos a tratar.

    Malkus hesitou, lançando-me um último olhar que misturava curiosidade e algo mais. Balançou a cabeça como se quisesse dizer algo, mas acabou saindo sem palavra alguma.

    Rosa se inclinou para frente, entrelaçando os dedos sobre a mesa.

    — Belo show.

    — Teria sido melhor se eu não tivesse desmaiado, não acha?

    — Ah, não! — disse ela, com um sorriso afiado. — Foi o toque de dramaticidade que a arena exige. O início foi morno, com muita troca de golpes e estudo. Mas o final? Apoteótico.

    — E então? — perguntei, ansioso por saber se tínhamos agradado a ela e ao público.

    — Bem, tirando seu primo, que perdeu em condições muito suspeitas, todos vocês venceram. Estou satisfeita. Se quiserem, podem se apresentar nos nossos finais de semana. — Rosa abriu uma gaveta e puxou uma pilha de contratos, espalhando-os sobre a mesa.

    Antes que eu pudesse responder, ela sinalizou para seu guarda-costas abrir a porta. Gérard, Joaquim, Dante, Joana e Claire entraram, preenchendo o espaço apertado do escritório

    — Esses contratos basicamente isentam o Matadouro de qualquer responsabilidade, mas nos obrigam a fornecer tratamento e a manter suas identidades em segredo. — Rosa fez uma pausa, olhando para cada um de nós. — A hora de decidir é agora.

    Ela se levantou, apoiando as mãos na mesa, seu tom ficando mais sério:

    — Já disse antes, mas vou repetir. Mortes são raras, mas podem acontecer. Não gostamos de gladiadores muito sanguinolentos, mas eles aparecem. Mais do que sangue, meus espectadores querem ver um espetáculo. Então, pensem bem.

    O ar ficou pesado. Eu podia sentir os olhares dos outros sobre mim, esperando que eu tomasse a iniciativa. Peguei o contrato sobre a mesa, lendo rapidamente as condições.

    “Um show, hein?”, pensei, sentindo o peso do miasma ainda latejando em algum lugar dentro de mim.

    Acabamos todos assinando o contrato. Nosso grupo foi incluído no ranking mais baixo, reservado para guerreiros de até o terceiro círculo completo. Era um início modesto, mas a oportunidade de subir os degraus até os rankings superiores estava diante de nós. Marreta de Aço, o gigante que enfrentei, havia acabado de ser promovido ao ranking dos lutadores de quarto círculo, teoricamente um nível acima de onde estávamos.

    Deixamos a arena na carroça que nos trouxe. Durante o trajeto, o silêncio prevaleceu, cada um absorto em seus próprios pensamentos. Um misto de alívio e ansiedade pairava no ar.

    Conforme seguimos nosso caminho, deixei Joaquim, Joana, Dante e Claire em seus respectivos destinos.

    Antes de cada um descer, fiz questão de reforçar:

    — Descansem e guardem segredo. — Minhas palavras foram diretas, o tom sério. — Daqui a dois dias, em Martialis, teremos nosso primeiro treino em conjunto com André e o resto do time. Não se esqueçam.

    Todos assentiram, e, um a um, partiram. Restando apenas eu, Selune e Nix, na carroça, seguindo até a mansão. 
     
     
     
     

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