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    Já era noite quando cheguei de volta à mansão de Jorjen. O cansaço pesava em cada músculo do meu corpo; lutar de verdade era incomparavelmente mais exaustivo, e recompensador do que qualquer treino, por mais intenso que fosse.

    Caminhei até a residência que dividia com Nix, ansioso por um banho que aliviasse meu estado lastimável. Mas, ao entrar, deparei-me com Shade me aguardando, pousada sobre a escrivaninha. Em uma de suas garras, segurava uma das cartas codificadas da minha mãe, e, à sua frente, repousava um rato morto, cujo odor denunciava o início de sua decomposição.

    Nix, que estava por perto, torceu o nariz em desgosto ao notar a cena.

    — Não traga lixo pra casa, Shade — reclamou ela, olhando para a ave com desdém.

    Shade inclinou a cabeça como se ponderasse uma resposta, mas permaneceu em silêncio. Antes que a tensão aumentasse, intervim:

    — Vá tomar banho, Nix. Eu cuido do que Shade quer.

    Ela hesitou por um instante, os olhos dourados avaliando a situação, antes de balançar a cabeça e a cauda, retirando-se em direção à sala de banho.

    Com ela fora de vista, voltei minha atenção para Shade.

    — O que você tem aí? — perguntei, apontando para a carta e o rato.

    Com um movimento fluido, Shade assumiu sua forma humanoide de sombras. Desta vez, notei que seus contornos estavam… diferentes. Mais definidos, quase femininos. Ela fez uma reverência sutil antes de falar:

    — Tenho duas coisas, mestre. A primeira é esta carta de sua mãe. — Estendeu a mão diminuta, oferecendo-me o papel codificado. — A segunda… é que outro grupo, além de nós, está espalhando espiões recheados de miasma pela cidade. Esse rato estava espreitando pelos becos. Não é um dos nossos.

    A surpresa me fez pausar ao pegar a carta.

    — Espere um pouco. O que você quer dizer com “espalhando espiões além de nós”? Que eu saiba, só criei você e o camundongo.

    Shade hesitou, sua figura oscilando levemente, como se estivesse nervosa.

    — Bem… — começou ela, gaguejando. — Tomei certas liberdades, meu mestre. Para poder cumprir melhor suas ordens e vontades.

    — O que você fez? — perguntei, a raiva evidente em minha voz.

    — Calma, mestre. — A voz fina e infantil de Shade tremia, quase gaguejando. — Melhor mostrar do que explicar.

    Sem esperar minha resposta, ela voltou à forma de corvo e saiu pela janela. Antes de desaparecer, ouvi seu chamado:

    — Venha, venha…

    Havia uma mistura de orgulho e apreensão em sua voz.

    Guardei a carta, e o rato morto em meu bolso, e deixei a residência, seguindo-a até a orla da mata onde Shade fora criada. Ela me esperava no limite das árvores, movendo-se para dentro da floresta assim que me aproximei. Caminhei em sua direção, mas sempre que achava que havia perdido sua trilha, me concentrava em nossa ligação. Isso me permitia sentir sua presença, além de ouvir seu chamado inconfundível:

    — Venha, venha, mestre.

    Após alguns minutos, chegamos a uma clareira. Shade estava pousada no centro, imóvel como uma estátua. Esperei, observando-a, quando comecei a notar movimento entre as sombras. Pequenas criaturas surgiam, uma a uma, rodeando o corvo. Havia pássaros diminutos, roedores, e até um esquilo que parecia o maior entre eles.

    Meia hora depois, cerca de doze espiões estavam reunidos na clareira, incluindo Shade e o camundongo que subiu rapidamente em meu ombro.

    Sorri e acariciei a pequena cabeça dele, murmurando:

    — Preciso arrumar um nome para você.

    Para minha surpresa, pela ligação que compartilhávamos, uma palavra formou-se clara em minha mente: “Philip.”

    Shade, que observava nossa interação, avançou, claramente enciumada.

    — Philip. O nome é Philip. — Sua voz carregava uma ponta de irritação.

    Fitei os animais reunidos na clareira, e o que minha contraparte sombria dissera antes sobre o estresse que mortos-vivos podiam representar voltou à minha mente. Com meu nível de poder, eu sabia que só era possível controlar diretamente três mortos-vivos. Então, como ela havia conseguido criar tantos espiões?

    Shade notou minha hesitação e inclinou a cabeça, como se pudesse ouvir meus pensamentos. Ela voltou a assumir sua forma de garota de sombras, aos meus olhos, ainda mais definida que a anterior, e me olhou, antes de explicar.

    — Ah, mestre, eu sou mais do que apenas uma extensão do seu poder. — Sua voz tinha um tom travesso, mas seus olhos brilhavam com algo mais profundo, quase perigoso. — Eles não contam como mortos-vivos superiores. São… descartáveis. Ferramentas, nada além disso.

    — Ferramentas? — repeti, franzindo o cenho.

    — Sim. Não estão vinculados diretamente a você. Não drenam sua energia, como eu. Eles só precisam de um pouco de miasma para continuar funcionando e trazem informações apenas quando os encontro pessoalmente.

    Olhei novamente para as criaturas diante de mim. Havia algo de profundamente errado nelas, algo que mexia com meus instintos. Um dos pássaros tinha penas faltando, revelando carne pálida e ressecada. O esquilo apresentava olhos vidrados e um cheiro pútrido que embrulhava meu estômago. Não eram apenas ferramentas; eram corpos reanimados, fracos, mas ainda funcionais.

    — E quanto tempo eles… duram? — perguntei, contendo meu desconforto.

    — Depende do material e do ambiente. Talvez uma semana antes de se tornarem inúteis. — Shade deu de ombros, com uma indiferença que me incomodava. — Mas sempre podemos criar mais.

    As palavras dela ecoaram em minha mente, despertando um incômodo profundo. Shade estava certa: eles não eram como ela, mas a facilidade com que ela os criava acendia um alerta em mim. Respirei fundo e a encarei com autoridade.

    — E como exatamente você fez isso sem minha permissão?

    Ela hesitou, encolhendo-se levemente diante da minha irritação.

    — Eu só queria ajudar, mestre. — Sua voz carregava um tom de desculpa, mas também havia algo de desafiador ali. — Achei que você precisava de olhos e ouvidos em mais lugares. E você me deu liberdade para agir, lembra?

    Fechei os olhos por um instante, tentando manter a calma.

    — Shade, você precisa entender que, mesmo sendo minha criação, não pode tomar essas decisões sozinha. O que acontece se algo der errado? E se alguém descobrir o que você está fazendo?

    Ela abaixou a cabeça, mas seus olhos brilhavam com determinação.

    — Nada dará errado, mestre. Eu garanto.

    A confiança em suas palavras não aliviou o peso no meu peito. Shade era leal, mas sua independência crescente começava a parecer perigosa.

    — Muito bem. — Minha voz saiu firme. — Mas quero um relatório completo de cada um desses… espiões. Onde estão, o que sabem e como estão sendo controlados. Entendido?

    Shade inclinou a cabeça, em um gesto que misturava submissão e desafio.

    — Como desejar, mestre.

    Eu sabia que aquilo estava longe de terminar. Shade havia criado algo maior do que eu esperava, e agora era minha responsabilidade garantir que não saísse do controle.

    — Quer receber o relatório deles e lhes dar a ordem do dia? — Ela perguntou, animada.

    — Como faço isso? — indaguei, lançando-lhe um olhar desconfiado.

    — Simples. Basta ligar um fiapo de miasma a cada um deles. Eles vão absorver o que precisam para se manter em funcionamento, e as imagens e sons úteis que captaram irão direto para o seu cérebro. É confuso no início, mas tenho certeza de que você se adaptará rapidamente.

    Segui suas instruções. Conectei-me a um dos animais primeiro. As informações começaram a fluir imediatamente, e quando vi que tudo estava sob controle, aumentei a quantidade de criaturas. Quando conectei-me a seis deles ao mesmo tempo, senti-me sobrecarregado. Imagens, sons, cheiros e impressões invadiram minha mente como uma enxurrada. No entanto, de alguma forma, eu consegui processar tudo, descartando o irrelevante e retendo o que parecia promissor.

    Em meio a isso, vi, através dos olhos de um pequeno pássaro, as lutas que ocorreram mais cedo na arena. Não havia nada ali que saltasse aos olhos como útil. Dei novas ordens: eles continuariam suas patrulhas, mas com duas alterações — um grupo espionaria a Casa Vulkaris e outro, a Casa Nonnar, de Valis.

    — Muito bem. — Virei-me para Shade. — E quanto ao rato que você capturou?

    — Ah, sim, mestre. — A figura sombria dela se endireitou. — Peguei-o espionando Milady Selune. Suponho que o miasma dela tenha atraído a atenção do pequeno espião.

    Ela fez uma pausa e me lançou um olhar de desprezo velado.

    — Lady Selune, ao contrário do mestre ou de mim, não sabe esconder seu miasma perfeitamente. Resta saber o quanto nossos inimigos sabem sobre ela…

    Gelei. A possibilidade de que minhas ações na casa de André tivessem exposto Selune a algum perigo me fez sentir um calafrio na espinha.

    — Tenho como descobrir as ordens do rato?

    Shade me olhou com um sorriso maroto, quase provocador.

    — Só tem um jeito de saber, mestre. — Ela apontou diretamente para o bolso onde eu havia guardado o rato.

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