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    Coloquei o rato no chão da clareira e dei um passo para trás.

    — Então? — Olhei para Shade, esperando instruções mais claras.

    — Miasma, mestre. A resposta sempre é miasma. — A garota de sombras riu, com seu tom levemente provocador. — Infunda miasma nele, principalmente no cérebro, e bastante. Não se preocupe, estamos longe e ninguém vai sentir nada. Pode ser que o mestre encontre uma barreira — é a marca do antigo dono. Se usar sua força de vontade e superar essa barreira, talvez até descubra quem o criou.

    Observei os zumbis à nossa volta e a tranquilidade que Shade demonstrava. Ela percebeu minha hesitação e riu novamente.

    — Eles não podem nos trair, mestre, mesmo revertendo sua criação. Minha técnica é muito superior à de quem fez esse rato.

    Seu tom de superioridade me irritou. Quando a encarei, ela percebeu, pela nossa ligação, que havia falado mais do que deveria, eu tinha muitas dúvidas da origem desse conhecimento.  Shade abaixou a cabeça, envergonhada, e se afastou, ficando em silêncio enquanto me deixava sozinho com o rato.

    Respirei fundo e infundi miasma na pequena criatura. O rato espasmou violentamente antes de ficar inerte mais uma vez. Então, senti a barreira que Shade havia mencionado. Ela carregava uma intenção clara: proteger segredos. Porém, para minha surpresa, não parecia tão forte.

    Fechei os olhos e concentrei minha mente. Empurrei contra a barreira, sentindo um calor desconfortável subir pelo meu rosto. Gotículas de suor se acumularam na minha testa enquanto eu forçava passagem. Com uma última investida mental, a barreira se rompeu.

    Foi como se minha mente estivesse conectada ao rato. Imediatamente, imagens começaram a surgir.

    Vi um homem magro, de olhos negros e careca, com tufos de cabelo cor de palha sobre as orelhas. Sua testa estava encharcada de suor, e ele segurava o rato em suas mãos. Pelos olhos da criatura, observei enquanto ele o colocava no chão.

    — Vá, seja meus olhos e ouvidos — disse ele, com uma voz calma e controlada.

    O miasma dele envolveu o rato, dominando sua vontade diminuta e seus instintos. Junto da infusão veio uma ordem clara: seguir a elfa negra perdida e descobrir se estava sozinha.

    Enquanto o rato corria para cumprir sua missão, ouvi, de longe, a voz do homem.

    — Minha senhora, está feito.

    A cena seguinte foi um vazio. O homem havia se retirado, mas algo em sua voz, no tom servil e cuidadoso, me causou arrepios.

    Ao me desconectar do rato, respirei fundo, tentando processar tudo o que havia descoberto. “Minha senhora”. Aquelas palavras ecoavam na minha mente. Quem quer que fosse a mulher mencionada, sabia sobre Selune. E, pior, desconfiava que ela não estava sozinha.

    Com certa hesitação, reconectei-me ao rato, revisitando suas memórias para avaliar o quanto ele havia cumprido de sua missão. Para meu alívio, ele fora capturado logo no início da incursão. Era um jogo arriscado: capturar o espião mostrava que estávamos alertas, mas também expunha que possuíamos defesas. Por outro lado, deixá-lo livre significaria abrir mão de segredos valiosos. Sem saber como proceder, decidi que conversaria com Selune sobre isso pela manhã.

    Virei-me para Shade e Philip, que me observavam em silêncio.

    — Vou voltar para a mansão. Preciso tomar um banho e dormir. Por ora, não deixem que nenhum desses espiões se aproxime.

    Ambos assentiram, e eu me retirei, ainda com a mente carregada de preocupações.

    Na manhã seguinte, ao entrar no quarto, encontrei Selune já sentada à mesa. Como sempre, ela mordiscava uma torrada com geleia e tomava um chá com elegância distraída.

    Peguei a carta de minha mãe e comecei a decodificá-la. Enquanto fazia isso, decidi atualizar Selune sobre os acontecimentos da noite anterior.

    — Sabe o que Shade descobriu ontem?

    Selune ergueu uma sobrancelha, mantendo o tom levemente zombeteiro que sempre usava quando se referia à minha criação.

    — O que aquela pequena aberração descobriu?

    Antes que eu pudesse responder, a voz de Shade interrompeu, carregada de sarcasmo. Sua forma sombria se materializou sobre a mesa, fazendo uma mesura exagerada para Selune enquanto mostrava a língua.

    — A aberração está aqui, Milady, garantindo a sua segurança por um acaso.

    — Comportem-se, vocês duas. — Minha voz carregava exasperação. — Não quero picuinhas entre nós.

    Ambas me fitaram com olhares desafiadores, como se esperassem que eu escolhesse um lado. Decidi ignorar a tensão e continuei.

    — Shade encontrou um rato espião. Ele estava atrás de você, Selune.

    A tensão na sala aumentou. Relatei detalhadamente tudo o que havia acontecido e as informações que extraí do rato. Ao terminar, a atmosfera ficou ainda mais carregada.

    — Em resumo: não sabemos contra o que ou quem estamos lutando. Eles já sabem de você, Selune. Tenho medo de que possam tentar algo drástico. Fomos expostos, de certa forma, por causa do nosso noivado.
    Selune ponderou por um momento antes de responder:

    — Nem tudo está perdido. — Sua voz era calma, mas firme. — Pelo que aprendi com minha colega, a responsável por corromper minha mana, usuários de miasma se escondem na sociedade usando pessoas comuns como escudo. Talvez eles achem que você seja meu álibi, meu disfarce para agir socialmente. Não acho que vão me expor. Fazer isso seria revelar a própria existência deles. Eles só agirão quando tiverem certeza de quem somos. Pelo que você nos contou, eles ainda não têm.

    — Isso não é verdade. — Shade interrompeu, sua voz carregada de desdém. — Suas habilidades com miasma são insignificantes, Lady Selune. Eles podem perceber isso. Nem esconder seu miasma você consegue fazer direito. Sem um mestre, você jamais teria alcançado esse nível.

    Selune franziu o cenho, seus olhos prateados fixando-se em mim em busca de confirmação.

    — Eu não consigo esconder meu miasma?
    Engoli em seco antes de responder.

    — Não, Selune. É um traço muito tênue, mas ainda perceptível.

    Ela baixou a cabeça, claramente incomodada. Sua voz saiu baixa, quase um sussurro:

    — Você devia ter me dito antes… Está bem. Vou deixar você alterar meu miasma e me ensinar. Não posso deixar minha teimosia nos prejudicar.

    Enquanto Nix acariciava a cabeça de Selune, tentando confortá-la, Shade me lançou um olhar triunfante, como se sua previsão estivesse se concretizando. Selune, por outro lado, parecia abatida, seu brilho usual agora substituído por um peso difícil de ignorar.

    — Bem, vou te dar até depois do almoço para decidir se realmente quer fazer isso. Agora, preciso terminar de decodificar esta carta.

    Com um último olhar para elas, levantei-me e caminhei até a escrivaninha. A tensão no ambiente parecia me seguir, como se cada sombra carregasse uma parte da conversa que acabáramos de ter. Sentei-me, alisei o papel da carta com as mãos e respirei fundo, tentando concentrar minha mente no texto à minha frente.

    “Meu estimado filho,

    Espero que estas palavras o encontrem bem. Compartilhei suas últimas preocupações com Althéa, o que trouxe tanto alívio quanto novas inquietações. Ela mencionou que uma organização secreta tem agido nas sombras do torneio. Seus membros estão movimentando recursos para patrocinar jovens aparentemente sem grande destaque e sabotar outros. Ações que incluem ameaças e chantagens a Casas menores, forçando-as a mudar ou retirar patrocínios previamente acordados. Apesar de nossos esforços, não conseguimos descobrir seus verdadeiros objetivos nem o beneficiário final de tais manobras.

    Fiquei sabendo que o treinamento conjunto de seu time começará amanhã. Tome cuidado, meu filho. Sua posição embaixo dos holofotes atrai tanto aliados quanto inimigos. E lembre-se: as ameaças mais perigosas muitas vezes vêm de dentro.

    Com amor, Mamãe.

    P.S.: Convenci Cassiopeia a não matá-lo à primeira vista. Não estrague isso.”

    O peso das palavras era palpável, como se cada linha carregasse a voz de minha mãe me alertando sobre os perigos que se aproximavam. Conjurei uma pequena chama mágica e deixei que ela devorasse a mensagem até não restar nada além de cinzas.

    Peguei papel, pena e tinta e comecei a redigir minha resposta. Escrevi que havia descoberto indícios de que alguns de nossos inimigos poderiam estar utilizando miasma. Não entrei em detalhes; sabia que isso levantaria perguntas que eu preferia evitar. Também mencionei o fato de uma arma de tecnologia exclusiva de nossa família ter surgido na arena clandestina, no Matadouro. O relato era direto, mas suficiente para alertá-la sem criar pânico.

    Ao terminar, chamei Shade. Ela assumiu sua forma de corvo negro, pousando elegantemente na escrivaninha. Entreguei a carta, que ela segurou com o bico antes de alçar voo pela janela, desaparecendo na direção do horizonte.

    De volta ao silêncio do quarto, senti uma presença às minhas costas.

    — Terminou? — Selune perguntou, sua voz calma, mas com um leve tremor de ansiedade.

    Virei-me, encontrando seus olhos prateados que brilhavam com uma mistura de dúvida e determinação.

    — Terminei. — Respondi, levantando-me. — Depois do almoço, começamos. Não vamos permitir que nada nem ninguém nos desestabilize.

    Selune assentiu, sua postura se firmando, como se quisesse demonstrar que estava preparada para o que viesse. Ao lado dela, Nix concordava com um movimento de cabeça, como se validasse nossa decisão.

    — Depois do almoço, então. — Selune murmurou, levantando-se. — Mas quero deixar uma coisa clara: eu confio em você. Não me decepcione.

    Havia um peso nas palavras dela, algo que ia além do pedido usual. Balancei a cabeça, sério, ciente da responsabilidade que assumia.

    — Não vou.

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