Capítulo 68: Recuperação?
A cama onde Selune descansava ao meu lado estava tão quente que, em algum momento da noite, o desconforto me venceu. Fui forçado a levantar e procurar refúgio no sofá, onde Nix já estava, encolhida em uma posição quase felina. O calor que irradiava dela era tanto que parecia preencher o ambiente com uma sensação sufocante. Deitei-me no espaço apertado ao lado de Nix, que resmungou algo incompreensível antes de virar para o outro lado. Apesar do desconforto físico e do turbilhão de pensamentos, acabei adormecendo ali, em um sono inquieto e superficial.
Quando a manhã finalmente chegou, fui acordado por um cheiro pungente e nauseante que parecia infiltrar-se em cada canto do cômodo. Minha mente, ainda lenta do sono, foi rapidamente tomada pelo alarme. Por um instante, um pensamento aterrorizante passou pela minha cabeça: será que Selune havia perdido o controle sobre suas funções?
Levantei-me apressado e me aproximei da cama, tentando entender o que estava acontecendo. O que encontrei foi algo muito mais estranho e perturbador. O lençol sob ela estava completamente encharcado por um líquido escuro e viscoso, que também manchava o cobertor que a cobria. O odor era quase insuportável, um cheiro ácido e pútrido, como se as próprias impurezas de seu corpo estivessem sendo expelidas em uma espécie de purgação involuntária.
Nix, que se levantava lentamente do sofá, veio até o meu lado, franzindo o nariz e fazendo uma careta visivelmente incomodada.
— Mas que diabos é isso? — perguntou ela, a voz carregada de nojo e preocupação.
— Não sei — respondi, minha voz mais firme do que eu me sentia. — Mas precisamos limpar isso antes que piore. Vai buscar alguém para trocar esses lençóis e traz água morna e limpa. Precisamos limpá-la.
Sem hesitar, Nix assentiu e saiu rapidamente do quarto, seus passos ecoando pelo corredor.
Enquanto esperava, peguei uma das minhas camisas limpas e comecei a tirar o excesso daquele líquido escuro de seu corpo, tentando ser o mais cuidadoso possível para não perturbá-la. Apesar da estranheza da situação, algo chamou minha atenção. A tonalidade de sua pele, antes marcada por um tom acinzentado, estava mudando. Aos poucos, aquele tom opaco dava lugar a um rosado vivo, muito semelhante à aparência da jovem elfa que eu havia visto no oceano de mana de Selune.
Pouco depois, Nix retornou com duas serviçais que carregavam lençóis limpos e uma bacia de água morna. Juntos, começamos a remover as roupas de cama sujas e a limpar o corpo de Selune com panos úmidos. O cheiro ainda era forte, mas parecia diminuir à medida que trabalhávamos, e a mudança em sua pele se tornava mais evidente.
Foi nesse momento que Karlom entrou no quarto. Ele não disse nada de imediato, apenas se aproximou e observou o que estávamos fazendo. Seus olhos se fixaram no rosto adormecido de Selune, e, após alguns instantes, ele murmurou, quase para si mesmo:
— Incrível… a corrupção está desaparecendo.
Aquelas palavras me pegaram desprevenido. Até então, eu estava focado em lidar com a situação imediata, mas ouvir Karlom afirmar que a corrupção estava desaparecendo trouxe uma onda de alívio. Pela primeira vez, senti uma esperança verdadeira na recuperação plena de Selune. O peso que eu carregava no peito desde que tudo aquilo começou parecia diminuir. Além disso, a mudança na atitude de Karlom, sempre tão crítico e acusador, era um alívio adicional.
Quando chegou o momento de trocar as roupas de Selune, Nix e as serviçais nos expulsaram do quarto sem cerimônias. Aceitei a interrupção como uma oportunidade de respirar um pouco e aliviar minha mente. Segui para a cozinha, onde preparei um café da manhã simples, mas reconfortante. Cada bocado que dava na comida quente parecia afastar um pouco da tensão acumulada.
Depois do almoço, confiei Selune aos cuidados de Nix e Karlom. Ela ainda precisava de muito repouso, mas parecia estar em boas mãos. Eu, por outro lado, tinha meus compromissos e precisava de algo que me distraísse da confusão de pensamentos. Me encaminhei até a arena da universidade, onde o treinamento com André e os outros estava marcado para a tarde.
A caminhada até a arena foi tranquila, mas o silêncio ao redor contrastava com o tumulto interno que eu ainda sentia. O cheiro pútrido daquela manhã parecia ter se impregnado na minha memória, um lembrete constante de que as coisas ainda estavam longe de voltarem ao normal. No entanto, com cada passo, o frescor do ar e a antecipação do treino ajudavam a clarear minha mente. Por ora, eu precisava focar no presente. O resto poderia esperar.
Diferente do dia do duelo com Roderick, a entrada da arena estava vazia, sem multidões ou olhares curiosos. Não havia ninguém ali me esperando, o que trouxe uma certa tranquilidade. Contudo, não pude evitar o contraste: naquele dia fatídico, cada passo meu parecia acompanhado por sussurros e olhares. Hoje, apenas o som dos meus próprios passos ecoava no espaço vazio.
Segui pelo caminho conhecido, guiado pelas memórias e pela familiaridade daquele lugar. Quando me aproximei da entrada principal da arena, comecei a ouvir risos e vozes ecoando pela estrutura. Menos apreensivo, adentrei o recinto e me dirigi à área de treino.
De longe, meus olhos captaram o brilho característico dos cabelos castanho-avermelhados de André. Ele estava ao lado de Alissande, conversando animadamente. Ao redor deles, vi outros rostos conhecidos. Antony e Valéria, primos de André, estavam ali, rindo de algo que Celina e Melina — primas de Alissande — pareciam contar. Elara, Yorg, James e Sabrina completavam o grupo.
Entre os meus próprios amigos, vi Joana, Joaquim, Claire e Dante, que acenaram quando perceberam minha chegada. O ambiente parecia descontraído, mas senti um peso súbito ao lembrar de algo importante.
“Gérard!”
Dei um tapa na testa, frustrado. Com tudo o que tinha acontecido nos últimos dias, tinha me esquecido completamente de chamar Gérard para o treino.
— Que burro que eu sou… aff. — murmurei para mim mesmo, tentando decidir se ainda havia tempo de resolver isso.
Enquanto ponderava, ouvi passos atrás de mim. Virei a cabeça para encarar dois jovens que vinham conversando em voz baixa. Suas figuras contrastavam: um deles vestia um manto que o cobria da cabeça aos pés, enquanto o outro, menor e mais chamativo, trajava roupas coloridas que quase doíam nos olhos.
Os dois se aproximaram. O encapuzado abaixou o capuz, revelando sua fisionomia. Ele tinha pele morena, cabelos pretos levemente ondulados e olhos negros que pareciam sondar minha alma. Sua expressão era séria, carregada de intensidade.
Ele me encarou diretamente, como se procurasse alguma fraqueza em mim. Finalmente, ele quebrou o silêncio:
— Aiden, mas pode me chamar de “Conflito” (strife).
A forma como pronunciou o apelido parecia carregada de significado.
— Sou Lior — respondi, mantendo o tom neutro. — Estão no time do André?
Antes que Aiden pudesse responder, o outro jovem, o de roupas extravagantes, entrou na conversa. Ele se colocou entre nós, com um sorriso travesso nos lábios. Seus olhos verdes, brilhantes e hipnóticos, pareciam olhar em várias direções ao mesmo tempo, nunca se fixando em um ponto específico. Seus cabelos pretos, ondulados, caiam até os ombros, conferindo-lhe uma aparência andrógina que atraía olhares.
— Lior, hein? O terror dos Vulkaris. — Ele riu, um som melodioso e zombeteiro, como se acabasse de contar uma piada que só ele entendia.
— Sou Victor, mas pode me chamar de “Delirante” (raver). — disse, piscando um olho para mim, provocantemente, mas com um tom de diversão.
Antes que pudesse responder à provocação, Aiden colocou uma mão firme no ombro de Victor, empurrando-o levemente para a frente.
— Não ligue para ele. Nos encontramos na arena. — disse, com um tom firme e uma ênfase especial na palavra “arena”, como se o local fosse mais do que apenas um espaço físico.
Os dois passaram por mim, com Aiden mantendo seu passo decidido e Johvi lançando um último olhar brincalhão por cima do ombro. De longe, observei enquanto eles se aproximavam do grupo, cumprimentando os outros e se integrando rapidamente. Havia algo magnético neles, embora as vibrações que passavam fossem completamente opostas.
Enquanto tentava processar o encontro, senti uma mão no meu ombro. Era Claire, que tinha se aproximado sem que eu percebesse.
— O que foi isso? — perguntou ela, com uma sobrancelha arqueada, claramente intrigada.
— Não sei dizer. — respondi, ainda assimilando o breve encontro.
Joaquim vinha logo atrás, um sorriso despreocupado no rosto, mas seus olhos revelavam curiosidade. Ele cruzou os braços enquanto parava ao nosso lado.
— Intensos, não? — comentou, num tom quase divertido.
— É, pode-se dizer que sim. — murmurei, ainda observando os dois de longe.
Sem querer prolongar o assunto, joguei os braços ao redor dos ombros de Claire e Joaquim, trazendo-os para mais perto enquanto os guiava em direção ao grupo.
— Nada disso importa agora. Vamos treinar.
O sorriso de Claire relaxou, e Joaquim apenas riu da minha tentativa de desviar o foco, mas ambos me acompanharam sem mais perguntas.
Respirei fundo, tentando dissipar a estranha sensação que aquele encontro havia deixado em mim. Caminhei até André e Alissande, que conversavam ao lado dos outros. Era hora de cumprimentar todos e me preparar para o treino.
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