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    Me aproximei da cama onde Selune repousava, hesitando por um instante antes de sentar-me ao seu lado. Observei-a em silêncio, tentando captar qualquer mudança em sua condição. A febre, que por dias havia atormentado seu corpo, finalmente parecia ter cedido. Sua respiração era ritmada e calma, como se estivesse envolta em um sonho tranquilo. O tom saudável e rosado de sua pele havia retornado, dissipando o cinza pálido que antes dominava. Um peso invisível ergueu-se dos meus ombros, substituído por um alívio cauteloso.

    Embora ela não tivesse despertado, algo em sua postura transmitia serenidade. Era como se estivesse descansando profundamente, e não mais presa em uma batalha silenciosa por sua vida. Um pensamento sutil e otimista surgiu: talvez o pior já tivesse passado.

    Antes que pudesse me perder em reflexões, Nix entrou no quarto. Sua presença sempre parecia iluminar o ambiente, mas naquele momento havia algo diferente nela: uma determinação que refletia em cada movimento.

    — Venha, vamos tomar banho — disse ela, puxando minha mão com firmeza. Seu sorriso era travesso, e ela mordeu o canto do lábio inferior de maneira sugestiva, como se soubesse exatamente o que estava fazendo.

    Por um instante, hesitei. Parte de mim queria continuar ali, velando Selune, mas o toque de Nix e sua energia irresistível dissolveram minhas preocupações momentaneamente. Deixei-me levar, correndo com ela até a sala de banhos, onde o vapor quente e o som da água criavam um refúgio temporário para a tensão acumulada nos últimos dias.

    Na manhã seguinte, despertei em uma cama vazia. A sensação incômoda de ter perdido a hora me atingiu antes mesmo de abrir completamente os olhos. Nix não estava ao meu lado, e as sombras projetadas no quarto indicavam que o sol já estava alto. O cansaço, acumulado como uma maré silenciosa, finalmente me alcançara, arrastando-me para um sono mais profundo do que o esperado. Só então percebi o quanto eu estava exausto.

    A semana anterior fora um teste de resistência. Treinamentos intensivos com Gérard e Claire haviam consumido minhas forças físicas, enquanto as manobras políticas e intrigas envolvendo Zia, Dante e os Vulkaris drenavam minha energia mental. Além disso, havia as responsabilidades com minha mãe, Selune e Nix, e a pressão para preparar os magos para André.

    Porém, mesmo enquanto recapitulei mentalmente tudo o que havia acontecido, uma sensação persistente de que algo importante escapava à minha atenção começou a me incomodar. Era como se houvesse uma peça faltando no quebra-cabeça que minha mente tentava montar.

    Os dias haviam passado rapidamente — mercalis, thalos, venaria — e agora era lunis, o sábado que marcaria nossa estreia no Matadouro. O treino do dia anterior fora focado em reforçar os pontos fracos de Claire, Gérard, Joaquim e Joana, e eu os havia lembrado da importância daquele compromisso.

    Antes de sair para buscar Gérard, decidi verificar Selune. Ao entrar no quarto, encontrei Karlom e Nix ao lado dela. Ambos estavam atentos, como sentinelas fiéis.

    — Como ela está? — perguntei, cruzando o espaço até a cama.

    — Na mesma — respondeu Nix, seu tom um misto de preocupação e resignação.

    Karlom, com sua expressão séria habitual, adicionou: — Seus sinais vitais estão fortes, mais fortes do que quando ela estava acordada. Mas, por algum motivo, ela não desperta.

    Ele parecia incomodado, como se as respostas escapassem até mesmo de sua lógica analítica. Por um momento, fiquei em silêncio, observando Selune, minha mente vagando para memórias antigas. As histórias de infância, com suas princesas adormecidas despertadas por um beijo, surgiram em minha mente como um sussurro distante. Era um pensamento tolo, quase risível, mas não pude deixar de me perguntar…

    Inclinando-me sobre ela, encostei meus lábios nos dela, num gesto mais instintivo do que racional. Quase imediatamente, senti um puxão estranho, como se algo drenasse minha energia. Era uma sensação fria e vazia, que me fez recuar rapidamente, ofegante e tonto.

    Selune, no entanto, começou a se mexer. Lentamente, levou as mãos aos olhos fechados, espreguiçando-se como uma criança ao despertar de um longo sono. Quando abriu os olhos, notei algo alarmante: eles, normalmente prateados, estavam negros como piche. Um calafrio percorreu minha espinha.

    No entanto, conforme ela piscava, eles voltaram ao tom prateado habitual, mas uma aura opressiva de miasma pareceu explodir ao seu redor. Nix deu um passo instintivo para trás, enquanto Karlom arregalava os olhos, atordoado. Mas, gradativamente, Selune recobrou o controle, a aura de miasma diminuindo até desaparecer completamente.

    Antes que pudesse perguntar ou processar o que acabara de acontecer, ela olhou para nós com um sorriso suave, como se tudo estivesse perfeitamente normal.

    Nix, aliviada, atirou-se sobre Selune, envolvendo-a em um abraço apertado e sem hesitar. Sua expressão de preocupação foi substituída por um sorriso largo e lágrimas que escorriam livremente, refletindo o peso que havia sido tirado de seus ombros. — Você está de volta! — sussurrou, sua voz embargada pela emoção.

    Karlom, sempre contido e sério, não conseguiu esconder a onda de sentimentos que o dominava. Ele respirou fundo, mas as lágrimas que bordejavam seus olhos o traíram. Com um movimento hesitante, pousou uma mão sobre o ombro de Selune, como se precisasse confirmar que ela estava realmente ali, desperta e viva.

    A reação mais inesperada, porém, veio de Shade. Ela se ajoelhou aos pés da cama, abaixando a cabeça como em uma prece ou reverência. Então, começou a murmurar palavras em uma língua que eu não compreendia. Sua voz era baixa, quase um sussurro, mas havia uma intensidade palpável em seu tom, como se cada sílaba carregasse um significado profundo.

    Selune ouviu em silêncio, seus olhos brilhando de maneira peculiar. Então, respondeu com uma única palavra na mesma língua, sua voz firme e autoritária. A reação de Shade foi imediata: ela levantou a cabeça de forma abrupta, como se uma ordem tivesse sido dada. Seus olhos se fixaram na elfa, carregados de algo que parecia ser tanto devoção quanto espanto.

    Eu abri a boca para perguntar o que estava acontecendo, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Gérard entrou no quarto.

    — Lior, estou pronto! Marcus está na carroça, esperando para nos levar — anunciou, sua voz animada, mas impaciente.

    Fui tirado de meus pensamentos abruptamente, meu olhar alternando entre Selune e Gérard. Apesar do alívio que sentia pelo despertar dela, a apreensão ainda me pesava. As memórias do miasma, de suas propriedades corruptoras e do perigo que representava, não me deixavam em paz. O que acontecera enquanto ela estava inconsciente? E aquela troca enigmática com Shade… o que significava?

    Mas o tempo era curto, e não podia me permitir ceder a essas perguntas naquele momento. Respirei fundo, aproximando-me de Selune.

    — Preciso ir. Depois conversamos — murmurei, inclinando-me para lhe dar um beijo na testa.

    Selune apenas assentiu, seu olhar sereno, mas atento. Havia algo nos olhos dela, um brilho que eu não conseguia decifrar. Ela parecia calma, mas uma parte de mim não conseguia deixar de sentir que algo havia mudado.

    Com um último olhar para todos no quarto — Nix, ainda segurando a mão de Selune, Karlom perdido em pensamentos e Shade em silêncio respeitoso —, deixei o ambiente.

    Pouco depois, estávamos novamente na antessala sob as arquibancadas do Matadouro. O ambiente era o mesmo de sempre, com o cheiro de poeira, suor e metal pairando no ar. As vozes abafadas da multidão acima formavam um murmúrio constante, uma antecipação para os eventos que estavam prestes a ocorrer.

    Assim que Gérard e eu chegamos, Domina surgiu no corredor que levava à antessala, sua presença impossível de ignorar. Vestida de forma provocante, ela esperava por meu primo com um sorriso que era tanto convite quanto ameaça.

    — Supremo! — gritou ao vê-lo, e Gérard parou, visivelmente desconfortável, enquanto ela vinha em sua direção com aquele andar exageradamente insinuante.

    — Cuidado — murmurei para ele, baixo o suficiente para que só ele ouvisse. Ele apenas meneou a cabeça, indicando que tinha entendido.

    — Me interessei por você, bonitão — disse ela, direta como sempre. — Você está escondendo uns segredinhos que atiçaram minha curiosidade. E, quando fico curiosa, não largo minha presa…

    Sem perder tempo, empurrei Gérard para dentro da sala e pedi licença a Domina com uma desculpa rápida.

    — Estamos atrasados e precisamos nos aprontar.

    Já passando pela porta, sussurrei para ele:

    — Lembre-se, nossos segredos são nossos. Não vá fazer bobagem por causa de um rabo de saia.

    Ele me lançou um olhar misto de incredulidade e raiva, como quem quisesse me lembrar que o maior “caçador” de saias ali era eu.

    — Eu sou eu, e você é você — respondi, encerrando o assunto antes mesmo que começasse.

    Dentro da antessala, nem tivemos tempo para nos acomodar. Claire veio até mim e, sem aviso, me envolveu em um abraço apertado.

    — Nossa, você demorou.

    Olhei para ela, surpreso, e percebi o rubor em seu rosto quando se afastou, claramente constrangida. Gérard me olhou como se dissesse: “tá vendo”.

    — Seu nome não está no card das lutas — ela disse, com uma pontada de nervosismo na voz.

    — Deixe-me ver.

    Ela me levou até onde os cartazes com os combates estavam afixados, e lá estava a confirmação: meu nome realmente não constava. Aquilo era preocupante. Antes de pensar em algo, cumprimentei os outros que estavam ali e troquei olhares curiosos.

    A mulher robusta de outro dia apareceu na porta, chamando-me com aquela voz firme que não deixava espaço para hesitação.

    — Sombra, vamos! Rosa quer ver você no escritório.

    Olhei para meus amigos, que me encararam com olhares inquisitivos. Dei de ombros, sinalizando que não sabia o que estava acontecendo.

    — Não baixem a guarda e não vacilem. Se eu não voltar a tempo da luta de vocês, boa sorte — disse, antes de seguir a mulher para o escritório de Rosa.

    Enquanto caminhávamos, notei que a arena estava mais movimentada do que o habitual. Do corredor dos bastidores, era possível ouvir a agitação do público que começava a lotar as arquibancadas.

    — Como é mesmo o seu nome? — perguntei, tentando quebrar o gelo. — Está enchendo… Algum evento especial?

    — Eu sou a Tina — respondeu ela, sem me olhar. — Temos dois visitantes, gladiadores da arena clandestina de Klumdum, uma das cidades sob influência dos Umbrani. Talvez eles lutem hoje, e o pessoal está animado por isso.

    Aquilo chamou minha atenção. Arena clandestina? Klumdum? Gladiadores? Era muita coisa para processar, mas, antes que pudesse perguntar mais, chegamos ao escritório de Rosa.

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