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    Acordei com uma bota empurrando meu rosto. Não sabia onde estava, e minha mente demorava a conectar os fatos. O chão de areia áspera sob mim e o som abafado do vento pareciam estranhos até que a voz dela cortou o ar, e as memórias da noite anterior me invadiram de uma vez.

    — Bom dia, flor do dia. — Pandora sorriu de forma zombeteira, uma pitada de sarcasmo na voz.

    Tentei responder algo, mas a dor tomou conta de mim. Tudo doía. Braços, pernas, costas… até mesmo respirar parecia um esforço monumental. Da minha garganta só saiu um grunhido abafado, como o de um animal ferido.

    — Não mandei você parar ontem. Olha o estado em que ficou. Como vamos treinar agora? — provocou, rindo enquanto se abaixava ao meu lado.

    Seu sorriso era irritante, mas não tive forças para responder. Quando Pandora me puxou pelas axilas para me colocar sentado, um rosnado de dor escapou de meus dentes cerrados.

    — Quietinho aí. Vou fazer uma coisa que aprendi com Hass. Vai aliviar um pouco, mas só um pouco. E se você não descansar depois, vai ferrar ainda mais o seu corpo. — Sua voz ficou levemente séria no final.

    Senti suas mãos espalmarem minhas espáduas e, logo em seguida, o calor crescente de sua mana fluir para dentro de mim. Era intenso, uma energia palpável que percorria meus canais de mana em busca do meu núcleo. Tudo parecia melhorar por um instante, até que uma barreira invisível surgiu, bloqueando o fluxo.

    Pandora franziu a testa, interrompendo o processo.

    — Está bloqueando. Assim não vai rolar.

    — Não fui eu. Não consigo controlar isso. — Minha voz saiu entrecortada, mas pelo menos já conseguia falar.

    Ela se levantou, cruzando os braços enquanto me analisava com aquele olhar desconfortável, como se estivesse desvendando meus segredos mais profundos.

    — Mais segredos, hein? — murmurou, pensativa.

    Aproveitei a pausa para me levantar também. Seu método tinha funcionado, ainda que parcialmente. Sentia que meu corpo ainda estava pesado, mas pelo menos conseguia me mover e pensar de forma mais clara. 

    — E magia de cura? Posso usar? — perguntei, apreensivo.

    — Não. — Pandora balançou a cabeça, sua expressão firme. — Isso não é algo que você cura. É o acúmulo de mana nos seus músculos, ossos e tendões. Está se ligando às impurezas para expurgá-las. Cultivar é a única forma de resolver isso. Ou melhor… piorar, antes de melhorar. Entendeu?

    Assenti, mesmo sem ter certeza se tinha compreendido totalmente.

    Ela me observou de perto por um momento antes de falar novamente:

    — Vai praticar ou vai desistir?

    Respirei fundo, ignorando o cansaço, e comecei a sincronizar respiração, mana e movimentos. Concentrei-me tanto quanto pude, cada passo parecia um desafio insano. Avancei um, dois, três passos… e continuei. Quatorze. Foi o máximo que consegui antes de desabar novamente, esgotado.

    — Muito bom. — Pandora bateu palmas, um leve sorriso em seus lábios. — Isso nos poupou um dia inteiro de treinamento.

    Mesmo com o corpo em frangalhos, um sorriso se formou em meu rosto. Foi um elogio sincero, e, pela primeira vez, senti que o tinha conquistado por mérito próprio.

    — Tira esse sorriso besta da cara. — Pandora cortou minha satisfação no ato. — Isso é só o começo. Agora vamos, de novo. E, dessa vez, vamos inverter a respiração, a circulação de mana e os movimentos.

    Minha vontade quase desmoronou naquele momento, mas forcei-me a prestar atenção enquanto ela demonstrava a nova sequência. Ainda que minha alma gemesse em protesto, eu sabia que aquilo era necessário.

    Depois de mais algumas horas de prática intensa, Pandora se aproximou de mim com aquele olhar de quem estava prestes a dizer algo inesperado. Sem aviso, ela se inclinou e… me cheirou.

    Arqueei as sobrancelhas, surpreso e desconfortável.

    — Não é o que sua mente poluída tá pensando, mana. — Ela revirou os olhos ao ver minha expressão. — As impurezas do seu corpo estão saindo.

    Antes que eu pudesse formular uma resposta, ela se virou de costas, murmurando algo. Achei ter ouvido as palavras “muito cedo”, mas não consegui ter certeza.

    — Não para, continua o que está fazendo. — Ela ordenou, afastando-se e me deixando novamente sozinho com meu treino.

    Outra hora se passou, e, à medida que o esforço físico aumentava, percebi que meu suor tinha mudado. Era grosso, quase viscoso, com uma coloração escura. Meu corpo parecia estar purgando algo, e a cena de Selune, deitada em sua cama e expelindo um líquido semelhante, voltou à minha mente. Agora eu entendia o que era.

    Pandora reapareceu, aproximando-se com uma expressão de desgosto enquanto segurava o nariz com os dedos.

    — Agora chega! Vá tomar um banho. Amanhã continuamos, e te garanto: vai ser um dia muito interessante.

    Olhei para o céu e calculei que ainda tínhamos mais umas duas horas de luz do dia. Apesar de estar exausto, sentia uma energia renovada.

    — Eu não me importo de treinar mais — falei, limpando o suor escuro do rosto. — Na verdade, depois de suar esse treco preto, estou me sentindo bem. Mas tem mais uma coisa…

    Pandora cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.

    — Que coisa?

    — Amanhã eu tenho uma sessão de treino com meu time. Você sabe, o torneio dos jovens nobres. É o time que vamos levar para competir.

    Pandora soltou uma risada curta, mas sem humor.

    — Você tem noção de que a Rosa depende de você pra manter isso aqui funcionando, né? — Ela abriu os braços em um gesto largo, indicando todo o Matadouro ao redor.

    Suspirei, balançando a cabeça em concordância.

    — Vamos noite adentro então, concorda com isso? — Ela sorriu, sabendo que eu não tinha outra escolha.

    Resignado, apenas assenti.

    — Mas, antes disso, vá para a sala de banho se limpar e se trocar. — Ela franziu o nariz. — Você tá com um fedor insuportável.

    A exaustão ainda pesava em meus ossos, mas suas palavras carregavam um comando implícito que eu não ousava desobedecer. Enquanto caminhava lentamente para o banho, só conseguia pensar no que Pandora ainda tinha reservado para mim naquela noite.

    Quando retornei, limpo e com o corpo um pouco mais leve, encontrei Pandora na arena. Ela treinava sozinha, com uma espada em uma mão e um escudo na outra. Por um instante, fiquei parado na entrada, sem querer interromper. Ali, à sombra do portal, podia observá-la sem ser notado — ou assim pensei.

    Ela se movia com uma fluidez impressionante, quase hipnótica. Cada passo era preciso, cada golpe calculado, como se ela dançasse em perfeita sintonia com uma música que só ela podia ouvir. Os movimentos eram lentos, mas carregavam uma certeza inabalável, como se ela soubesse exatamente o que fazer e quando fazer. Sua expressão era de concentração absoluta, um contraste gritante com o sorriso provocador que costumava exibir.

    O sol, baixo no horizonte, tingia o céu com tons dourados e vermelhos, refletindo no suor que brilhava em sua pele. Era impossível não perceber a força e a graça que emanavam dela, e, por um momento, fiquei ali, hesitando, como se a visão dela fosse algo sagrado que eu não deveria perturbar.

    Eu pensei em pigarrear, em anunciar minha presença de forma educada, mas Pandora, sendo Pandora, não me deu essa chance.

    — Pode vir — disse ela, sem sequer olhar para mim. — Já senti sua presença de longe.

    Engoli em seco, surpreso, mas não deixei transparecer. Saí da sombra do portal e caminhei até a areia, sentindo o calor do chão penetrar através das botas. Ela guardou o escudo e a espada com uma calma irritante, depois se virou para mim. O sorriso que iluminava seu rosto não era de boas-vindas; era um sorriso sádico, cheio de uma satisfação quase perversa.

    — Chegou a hora que você queria tanto — ela disse, inclinando ligeiramente a cabeça. — Vai apanhar de mim.

    As horas que se seguiram foram um borrão de dor e frustração. Pandora não poupou golpes nem palavras. Ela me atacava sem piedade, cada golpe encontrando um ponto do meu corpo que parecia gritar de exaustão. Eu tentava desviar, bloquear, reagir, mas era como tentar lutar contra uma tempestade.

    O sol desapareceu completamente antes que eu conseguisse perceber, e o céu escuro foi iluminado apenas pelas tochas ao redor da arena. Quando finalmente caí na areia pela enésima vez, meu corpo estava destruído. Manchas roxas espalhavam-se pelos meus braços e pernas, e meus músculos pareciam feitos de chumbo.

    Pandora parou na minha frente, os braços cruzados, olhando para mim como se eu fosse a maior decepção do mundo.

    — Chega — ela declarou, sua voz carregada de irritação. — Já tô te batendo há um tempão e você nada de usar o que aprendeu. Qual é o seu problema?

    Cada palavra era como um golpe adicional, mas ela tinha razão. Eu não tinha feito nada do que havia treinado. Apenas apanhei, sem reagir, como um boneco de treino.

    Enquanto limpava a areia da roupa, com dificuldade, a verdade finalmente me atingiu. Pandora tinha armado aquilo. Não tinha me dado nenhuma instrução antes do sparring. Tudo isso fazia parte do plano dela — ou talvez do sadismo dela.

    — Eu… não sabia como — murmurei, inseguro, evitando olhar para ela.

    Pandora bufou, exasperada, e revirou os olhos como se não conseguisse acreditar no que acabara de ouvir.

    — Não sabia como? — repetiu, quase rindo de mim. — Você tá de brincadeira, né?

    E, naquele momento, percebi que ela ainda não estava nem perto de satisfeita.

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