Índice de Capítulo

    O cansaço da noite anterior ainda pesava sobre meus ombros, mas quando a serviçal me despertou ao nascer do sol, a rotina logo tomou conta de mim. O cheiro do café da manhã recém-preparado preenchia o ar, trazendo uma sensação de normalidade àquele início de dia. A jovem, solícita, aguardava, à postos, que eu tomasse o desjejum, mas bastaram algumas palavras educadas para dispensá-la. Ultimamente, a ausência de Nix e Selune fazia com que as serviçais rondassem mais do que o habitual, talvez tentando preencher o vazio de comandos que agora pairava na casa.

    Enquanto mastigava um pedaço de pão e bebia meu chá, chamei Philip. O camundongo logo subiu à mesa com a mesma agilidade de sempre. Seus olhos brilhavam de curiosidade, como se tentasse adivinhar por que eu o convocara tão cedo.

    “Você vai até o local onde o cadáver está sendo investigado”, ordenei, transmitindo a mensagem pela ligação que compartilhávamos. “Quero saber tudo. Identidade, causa da morte, qualquer detalhe que conseguir reunir. E mantenha nossos espiões atentos. Não quero surpresas no nosso território.”

    Philip guinchou em resposta, mas pela conexão ficou claro que algo não estava certo: o miasma. A ausência de Shade deixava os espiões em estado debilitado, e seria necessário suprir suas necessidades para que continuassem operando de forma eficaz.

    — Caramba, justo hoje — suspirei, atordoado. Minhas palavras mal passaram de um murmúrio, mas o peso delas ressoava. O dia seria puxado. Primeiro o treino com os magos da equipe de André, depois a inevitável sessão com Pandora, que provavelmente terminaria comigo apanhando mais uma vez.

    Levantei-me, troquei de roupa e segui para a mata. Philip reuniu os espiões, e em questão de quinze minutos, eu já havia fornecido miasma suficiente para todos. Era um processo exaustivo, mas necessário. Felizmente, nenhum deles tinha algo urgente a relatar, o que me deu um pouco de alívio. Antes de partir, deixei Philip encarregado de tudo e segui para a arena da universidade, onde aconteceria o treino.

    Cheguei cedo, como de costume. A arena estava tranquila, ainda sem o burburinho dos outros participantes. O sol nascente iluminava o espaço com uma luz dourada, quase serena, mas a tranquilidade não se refletia em minha mente.

    Já presentes no local, vi André, Alissande, e os novatos, Aiden e Victor. Os dois últimos haviam cruzado meu caminho no corredor há alguns dias, com aquela conversa enigmática que ainda ecoava em minha cabeça. Não sabia se era paranoia ou intuição, mas algo neles não me inspirava confiança.

    André, sempre enérgico, ergueu uma mão em cumprimento quando me viu, enquanto Alissande mantinha-se reservada, concentrada em ajustar algum detalhe de seu equipamento. Aiden e Victor apenas me lançaram olhares rápidos, quase avaliativos, antes de voltarem à conversa particular que pareciam compartilhar.

    O dia prometia ser longo e cheio de desafios, e eu sabia que, entre aquele treino e os compromissos com Pandora, teria pouco tempo para respirar. Mas, como sempre, a única opção era seguir em frente.

    Aproximei-me lentamente do grupo, com as palavras de André rompendo o silêncio assim que me juntei a eles.

    — Ficou sabendo do atentado que acometeu a Casa Nymeris? — ele perguntou, com a voz carregada de curiosidade. — Uma das primas foi gravemente ferida, mas não sei dizer qual delas.

    Nymeris. O nome soou em minha mente como um eco, trazendo consigo memórias enterradas. Minha mãe, Lady Isolde, era uma filha da Casa Nymeris, mas eu pouco sabia sobre as intrigas de sua antiga casa. Como uma família matriarcal, os filhos homens eram sempre criados nas casas dos pais, enquanto as filhas cresciam na ilha isolada dos Nymeris. Por sorte — ou pela rigidez hierárquica dos Vulkaris — minha irmã havia escapado desse destino. Ainda assim, era estranho pensar que, de forma indireta, uma das garotas atacadas poderia ser minha prima.

    — Não fiquei sabendo de nada — respondi, tentando manter a voz neutra.

    Antes que André pudesse continuar, Alissande aproximou-se do grupo com aquele ar casualmente superior que parecia ser parte de sua essência.

    — Estão falando do que aconteceu com os Nymeris? — perguntou, enquanto cruzava os braços. — Talvez isso abale a Casa. Ouvi dizer que um dos times é liderado por Maya Nymeris.

    Ela fez uma pausa, inclinando levemente a cabeça para mim.

    — Minha irmã Cassiopeia é parente deles. Não tenho informações concretas, mas talvez ela saiba de algo.

    Então, com um sorriso zombeteiro, acrescentou:

    — Você poderia falar com ela, Lior. Afinal, ela te ama, não é?

    Sua risada cortou o ar antes que eu pudesse reagir. Desde o jantar dos Vulkaris, Cassiopeia fazia questão de deixar claro o desprezo que sentia por mim, como se fosse um esforço consciente de me diminuir. Ainda assim, por mais que suas palavras fossem carregadas de veneno, ela tocara em um ponto que fazia sentido. Minha mãe, Lady Isolde, ainda tinha influência considerável dentro da Casa Nymeris. Através dela, poderia obter respostas. Não que eu fosse dividir qualquer descoberta com eles, é claro.

    Minha mente, porém, parecia um emaranhado de intrigas e conspirações. O ataque à casa de André, onde sua mãe e irmã haviam sido intoxicadas por miasma. O rato espião que vigiava Selune, e o cadáver de seu criador, encontrado antes que pudesse ser interrogado. Havia ainda a figura sombria da mestra por trás de tudo isso, orquestrando nas sombras. E agora, o ataque à Casa Nymeris. Era difícil acreditar que esses eventos não estivessem interligados. Mas até onde era paranoia minha, e até onde essas conexões eram reais?

    Sem informações suficientes, cada hipótese parecia uma teia, uma linha tênue que eu não conseguia seguir até o fim. Ainda assim, minha intuição dizia que havia algo maior por trás desses eventos dispersos, uma correlação que, no momento certo, se revelaria.

    Enquanto o grupo debatia sobre os ataques, outros participantes começaram a chegar. O som de passos e conversas encheu a arena, mudando a atmosfera. A energia no ar tornou-se mais densa, como a calmaria antes de uma tempestade. Em instantes, estávamos todos reunidos, o momento de distração desaparecendo para dar lugar à seriedade do treino.

    Respirei fundo, afastando da mente as intrigas e os enigmas que me atormentavam. Haveria tempo para investigar, mas não agora. Meu foco precisava estar aqui. Este era o meu time, e eu, como líder dos magos, precisava avaliá-los, testá-los. O treino de hoje não seria apenas para eles aprenderem — seria para eu entender quem realmente poderia ser confiável.

    Novamente, fomos separados em dois grupos: os magos e os especialistas corporais. Antes de qualquer coisa, lembrei das lições de Pandora e comecei a ajustar minha respiração, circulando minha mana como ela havia me ensinado. No mesmo instante, senti o peso aumentar em meu corpo. Era como se cada movimento fosse arrastado, amarrado a correntes invisíveis. Um desconforto inicial, mas também um sinal de que estava no caminho certo para fortalecer meu controle.

    Olhei para meus colegas à minha frente, analisando-os com cuidado. Quem ali sabia sobre cultivo? Essa informação parecia ser tão valiosa quanto secreta. Não era algo que eu tivesse aprendido antes, e isso me incomodava. Será que outros jovens nobres também eram mantidos no escuro? Ou eu era o único aqui sem acesso a algo tão básico?

    Com essas perguntas rodando em minha mente, dei início ao treino como planejado.

    — Antes de mais nada, quero agradecer a todos por estarem aqui novamente — disse, minha voz firme, mas com um tom de leveza. — Isso é um sinal de que fiz algo certo na sessão passada.

    Houve alguns risos discretos, e alguns dos rostos à minha frente relaxaram. Continuei, agora mais sério:

    — Quero saber quem continuou com os treinos físicos.

    Observei atentamente as expressões. Quando meus olhos pousaram em Victor e Sabrina, notei as caretas de ambos. Suspirei, cruzando os braços.

    — Tô vendo que temos gente que não levou isso a sério. — Minha voz ficou mais dura, quase cortante. — Vamos precisar que todos deem umas voltas na arena novamente. E deixo claro: quem não mostrar ao menos alguma melhora hoje vai voltar pra casa mais cedo.

    Victor abriu a boca para protestar, mas levantei a mão, interrompendo-o antes que pudesse falar.

    — Ah, e não esqueçam que tenho a autorização de André para isso.

    O grupo ficou em silêncio, e o peso da minha autoridade pairou no ar. Eu não estava ali para fazer amigos — pelo menos não no treino. Havia trabalho a ser feito, e quem não estivesse disposto a se esforçar não tinha lugar ali.

    — Agora, sem mais enrolação. Vamos começar.

    Apontei para a arena, já esperando que a movimentação deles fosse bem mais rápida desta vez.
     

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (2 votos)

    Nota