Índice de Capítulo

    — Uau — exclamou Pandora, cruzando os braços. — Que história, hein. Quem diria que o terror dos Vulkaris é, na verdade, um Vulkaris. Se eu não tivesse visto o que vi, jamais acreditaria.

    Seu tom era provocativo, mas seus olhos diziam outra coisa. Talvez ainda estivesse processando tudo.

    — Lembre-se — adverti, minha voz firme. — É um segredo.

    — Um segredo por outro — respondeu ela rapidamente, um brilho travesso nos olhos. Então piscou para mim e acrescentou, num tom quase casual: — Meu sobrenome é Gaio Argus.

    Minha mente levou um segundo para processar.

    Gaio Argus.

    O sobrenome da família imperial.

    — O quê? — soltei, chocado.

    Pandora sorriu de canto, inclinando a cabeça levemente.

    — Meu primeiro nome, esse sim, é um segredo de verdade.

    Fiquei encarando-a, ainda tentando digerir a informação. Ela era da linhagem imperial? Era difícil imaginar Pandora, com seu jeito irreverente e feroz, sentada em um trono, envolta em seda e joias.

    Ela deve ter lido minha expressão, porque riu e balançou a cabeça.

    — “Pandora” combina mais comigo, não acha?

    Assenti, ainda meio atordoado.

    — Combina.

    Ela soltou um suspiro, como se finalmente tivesse decidido contar algo que guardava há muito tempo.

    — Sou parente distante do Imperador Juliani. Minha família sofreu um atentado quando eu era criança. Só eu sobrevivi.

    Senti um nó apertar em minha garganta. Pandora raramente falava de sua vida pessoal, e agora entendia o porquê.

    — Na época, houve motivos para que eu fosse escondida. Cresci longe da pompa da corte, como plebeia. Quem me criou foi Hass, um dos generais de meu pai.

    Ela fez uma pausa, olhando para a areia como se enxergasse ali os fantasmas do passado.

    — E antes que você pergunte: não, não quero vingança. Nem me meter nesse vespeiro que são as intrigas imperiais. Quero continuar minha vida de gladiadora em paz. Foi por isso que eu e Hass paramos de nos falar. Ele quer que eu revele minha identidade e assuma o que é meu por direito. Mas eu não quero nada disso.

    Havia uma convicção em sua voz que não deixava dúvidas.

    Fiquei boquiaberto, sem saber o que dizer. A mulher que estava à minha frente não era apenas uma gladiadora talentosa. Ela era uma peça perdida da realeza, alguém que poderia reivindicar um destino completamente diferente se quisesse.

    Mas ela não queria.

    Pandora ergueu os olhos para mim e disse, num tom mais leve, mas ainda assim carregado de significado:

    — Se eu fosse você, ficaria atento a essa sua contraparte sombria. Eu não confiaria nele nem um pouco.

    A seriedade em sua voz me fez estremecer.

    Ela então se levantou, espanou a areia do corpo e estendeu a mão para mim.

    — Agora, vamos treinar.

    Havia um brilho de diversão nos olhos dela, mas algo me dizia que, depois dessa conversa, nada mais seria exatamente igual entre nós. Talvez nunca tivesse sido.

    Treinamos até o meio da noite, desta vez focados na minha magia. Não repetimos a técnica de respiração que havia desencadeado o problema anterior, mas, ainda assim, com as orientações de Pandora, comecei a enxergar o uso da magia em combate de uma forma diferente. Ela não tratava o mana como um recurso isolado, mas como parte do corpo, algo vivo e integrado aos movimentos.

    A lua alta derramava sua luz pálida sobre a arena quando Pandora deu um passo para trás, observando-me com os braços cruzados.

    — Acho que por hoje chega — disse, com um suspiro.

    Assenti, sentindo o peso do cansaço se acumular. Tanta coisa havia acontecido naquele dia que a batalha em equipe já parecia uma lembrança distante, como se pertencesse a outra vida.

    Me virei para sair, mas a voz dela me deteve.

    — Espere.

    Parei e olhei por cima do ombro.

    — Preciso te falar uma coisa. Você já ouviu a piada do pato?

    Franzi o cenho.

    — O pato?

    — Sim. O pato voa, nada e anda… mas não faz nada disso direito. Você é como ele. Quer fazer tudo, mas não se especializa em nada. Entende?

    Fiquei em silêncio por um momento, deixando as palavras dela ecoarem. Entendia, sim. Mais do que ela imaginava.

    Pandora estalou a língua e colocou as mãos na cintura.

    — Bem, amanhã quero levar esse seu corpo especial ao limite, ver exatamente o que ele é capaz de fazer. Depois disso, vamos trabalhar em uma abordagem de luta única para você. Algo que só você pode fazer.

    Fiz que sim com a cabeça. A ideia de ter uma especialidade real, algo que fosse meu, sem depender dos poderes incertos de Mahteal, ou de qualquer outra entidade obscura era estranhamente reconfortante.

    — Então, até amanhã — disse ela, dando as costas e caminhando na direção oposta.

    Observei-a por um instante antes de sair do Matadouro e seguir para a mansão. O vento frio da noite roçou minha pele, mas meu corpo ainda estava quente do treinamento.

    Amanhã, então.

    Seria bom, pela primeira vez, descobrir algo que fosse verdadeiramente meu.

    Enquanto caminhava de volta para a mansão, senti a exaustão se espalhar por meu corpo. Cada músculo doía, um lembrete do treinamento intenso, mas minha mente ainda estava desperta, girando com tudo o que havia acontecido. A conversa com Pandora, a revelação sobre sua origem, o aviso de Mahteal… e agora, essa ideia de encontrar minha especialidade.

    Ser um “pato”.

    Ela estava certa. Eu sabia um pouco de tudo, mas não era excepcional em nada. Sempre me adaptei, sempre improvisei, mas nunca tive algo que fosse meu. Pensamentos de ser um impostor tinham rodeado minha mente sem cessar desde quando Germano tinha me intimidado.

    Isso precisava mudar.

    A noite estava silenciosa, interrompida apenas pelo som das minhas próprias passadas e pelo vento frio que soprava pelas ruas. O Matadouro ficava afastado, então tive tempo para pensar enquanto me dirigia à mansão.

    O que eu queria ser, afinal?

    Força bruta? Já existiam lutadores muito melhores do que eu nisso. Eu podia ser forte, meu corpo um construto poderoso, mas nunca seria o mais forte.

    Magia pura? Meu controle ainda era falho. Eu conseguia produzir efeitos poderosos, mas sem precisão, sem consistência. Além disso, meu nível de mana ainda era baixo demais para depender unicamente disso em combate real.

    Velocidade? Reflexos? Eram vantagens úteis, parte do meu arsenal, mas não o bastante para me definir.

    Técnicas de espada? Eu tinha meses de treino. Mesmo com talento e dedicação, nunca poderia me igualar àqueles que treinavam desde a infância, que respiravam esgrima todos os dias.

    A verdade era que, até agora, eu só sobrevivera porque Mahteal, ou o miasma dentro de mim, havia se manifestado para me salvar. Com ele, eu era mais poderoso. Mas também me tornava um tabu.

    Miasma era o domínio dos Necros e dos magos corrompidos. Aqueles que ousavam manipulá-lo eram caçados, perseguidos pela Igreja do Julgamento e Retribuição, que podia executar qualquer um de seus usuários sem necessidade de julgamento. Se dependesse demais desse poder, um dia ele poderia se voltar contra mim — ou pior, contra aqueles ao meu redor.

    Talvez a resposta estivesse justamente nisso.

    Talvez minha especialidade não fosse ser o melhor em um único aspecto, mas integrar todas as minhas habilidades de maneira única.

    Um caminho híbrido.

    A força que eu tinha, mas sem depender apenas dela. 
    A magia que eu podia aprender a controlar, combinada com minhas outras habilidades.

    A velocidade e os reflexos aplicados de maneira eficiente.

    O miasma… se fosse impossível negar sua presença, então eu precisaria aprender a dominá-lo sem me perder nele.

    Eu não precisava escolher um único caminho.

    Eu precisava criar o meu próprio, e se Pandora pudesse me ajudar, iria me aproveitar disso.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota