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    Adormeci rapidamente, mas a tranquilidade não durou. Algo me incomodava, uma presença distante que sussurrava no fundo da minha mente, insistente, chamando-me sem palavras. Era a ligação que eu tinha com Shade. Mesmo no sono, meu inconsciente atendeu ao chamado.

    O sonho começou de forma nebulosa, como se eu estivesse flutuando sobre um mundo distante. Aos poucos, os contornos se tornaram mais nítidos. Vi uma cidade estranha, encravada no coração de uma floresta densa, onde as árvores se entrelaçavam com a arquitetura de pedra e madeira, como se a própria natureza estivesse tentando engolir aquela civilização. Havia uma arena no centro, mas diferente das que eu conhecia. Seu piso não era de areia ou pedra, mas um gramado selvagem e manchado de vermelho escuro. O cheiro metálico de sangue pairava no ar, misturado ao aroma úmido da terra revolvida. Uma sensação ruim rastejou pela minha pele, uma mistura de angústia e expectativa sombria.

    Era uma visão fragmentada, estática em alguns momentos, mas carregada de emoções que não eram minhas. Talvez pela distância ou pela interferência da bruma, minha conexão com Shade e as garotas não era direta, mas mesmo assim, eu captava o que sentiam, como se ecos dos seus pensamentos se misturassem ao meu sonho.

    Então, a vi.

    Uma vulpina de pelos dourados e olhos verdes brilhantes. Ela se parecia com Nix, mas era menor, mais magra, e sua expressão estava tomada por um ódio selvagem. Correntes de ferro negro envolviam seus pulsos e tornozelos, e uma coleira bruta segurava seu pescoço. Sua respiração era ofegante, seus músculos estavam retesados como os de um animal encurralado, e seus olhos faiscavam de fúria cega.

    Assisti enquanto ela era arrastada para o centro da arena. As correntes foram soltas, e no instante seguinte, ela se lançou para frente como uma besta enlouquecida. Suas garras rasgaram o ar, seus dentes brilharam ao sol e, em um frenesi animalesco, ela atacou tudo o que via pela frente. Não havia hesitação, apenas fúria, uma violência pura e destrutiva que me fez estremecer.

    Senti o desespero de Nix como uma faca cravada no peito. Sua raiva e inconformidade se misturavam ao choque de Selune. Elas estavam ali, assistindo, impotentes diante do que acontecia.

    Outra imagem tomou conta da visão. Vi o lupino que estivera no baile de máscaras, o mesmo com quem Nix antagonizou. Seus olhos carregavam desprezo, um olhar frio e avaliador, como se estivesse diante de algo inferior. Ele conversava com alguém, sua expressão impassível, mas através da conexão, eu percebia a tensão em Nix e Selune.

    Vi-as tentando negociar, oferecendo dinheiro, influência, qualquer coisa para libertar a irmã de Nix. Mas cada tentativa era rejeitada. A resposta era sempre a mesma: ela não estava à venda.

    Pior ainda, a própria irmã de Nix a rejeitava. Ela não queria ser resgatada.

    Os dias passaram na arena. Nix e Selune voltavam sempre, assistindo, impotentes, enquanto a vulpina transformada em fera dilacerava um adversário após o outro. Os combates eram brutais, sem misericórdia. O cheiro de sangue se tornava cada vez mais forte, encharcando minha mente com as imagens viscerais. Cada batalha era mais cruel que a anterior.

    Eu sentia a dúvida de Nix crescer, um conflito interno que corroía sua determinação. Seria possível salvar sua irmã? Ou ela já estava perdida para sempre? Mas mesmo em meio à incerteza, um sentimento permanecia firme e inabalável: Nix não desistiria.

    As imagens foram se dissipando, deixando para trás um peso em meu peito. Meu sono foi inquieto, repleto de sensações que me acompanharam até o amanhecer. Quando dei por mim, os primeiros raios de sol atravessavam as persianas da janela.

    Me levantei devagar, o corpo pesado e a mente enevoada. Fui até a bacia, lavei o rosto com a água fria, tentando afastar o resquício do sonho. Mas a verdade era que aquilo não era apenas um sonho. Algo estava acontecendo, e eu precisava entender exatamente o que era.

    De onde estava, imerso em meus próprios problemas, a única coisa que me restava era desejar a elas boa sorte. Mas sabia que isso não era suficiente. A sensação de impotência me corroía, um peso incômodo que se alojava em meu peito.

    Passei a língua pelos dentes, tentando dissipar o gosto amargo que persistia em minha boca, mas era inútil. As imagens do sonho — ou melhor, da visão — continuavam gravadas em minha mente, cada detalhe vívido como se eu ainda estivesse lá, assistindo àquele espetáculo brutal sem poder intervir.

    Respirei fundo e me forcei a seguir adiante. Pandora me esperava, e o dia traria novos desafios, mas, por mais que tentasse me concentrar no que estava por vir, parte de mim continuava presa naquela arena selvagem, nos olhos desesperados de Nix e na brutalidade sem sentido que consumia sua irmã.

    Queria ajudá-las, encontrar uma forma de libertá-la antes que fosse tarde demais. Mas, ao mesmo tempo, sabia que meus próprios problemas estavam longe de serem insignificantes. A simples lembrança de Germano fez um arrepio percorrer minha espinha. O duelo contra ele não era apenas uma questão de orgulho ou rivalidade — era uma ameaça real, um obstáculo que eu precisava superar.

    Ainda não sabia como, mas de uma coisa eu tinha certeza: eu iria vencê-lo.

    Quando cheguei à arena, Pandora não estava ali. Aquilo era incomum. Ela sempre era pontual, metódica, disciplinada. Mesmo assim, não me deixei distrair. Tinha um objetivo claro. Respirei fundo, livrei-me da camisa e senti o ar frio da manhã roçar minha pele suada.

    A arena estava vazia, e apenas o som do vento cortava o espaço ao meu redor. Fechei os olhos por um instante, me concentrando. Respirei e comecei a circular a mana conforme havia aprendido com Pandora. Aos poucos, senti o fluxo de energia se espalhar por meu corpo, quente e pulsante, preenchendo cada músculo, cada articulação.

    Então, iniciei os passos da estranha coreografia que acompanhava a circulação da mana. O movimento parecia simples, quase natural, mas a cada sequência, a resistência invisível se acumulava, como se algo pressionasse contra mim, tentando me deter. Meu recorde era quatorze passos. O de Pandora, setenta e dois.

    Dei o primeiro passo, depois o segundo. O peso começou a surgir por volta do quinto. A sensação era sufocante, como se estivesse sendo arrastado para o fundo de um oceano denso e invisível. Dez passos, e meu corpo inteiro gritava em protesto. Treze, e meus músculos queimavam como se estivessem pegando fogo. Quatorze. Quinze. Minha respiração ficou pesada, meus batimentos aceleraram. Então, no décimo sexto passo, meu joelho cedeu, e eu fui ao chão com um baque seco.

    Ofeguei, minha visão turva pelo esforço. Meu corpo pulsava de exaustão, o suor escorrendo por minha pele como se eu tivesse corrido quilômetros sem parar. Mas, ao invés de desistir, respirei fundo, reuni minha força e me preparei para tentar novamente.

    Levantei-me, ainda sentindo o peso esmagador sobre meus ombros, e comecei outra vez. Agora, porém, algo estava diferente. Conforme realizava os movimentos, percebi que o maior desafio não era apenas resistir à pressão, mas manter a harmonia entre meus passos e a circulação da mana. Se a energia fluía rápido demais, meus movimentos desaceleravam, criando um atrito insuportável. Se tentava acompanhar a coreografia sem ajustar o fluxo, a resistência me travava.

    Então, uma ideia maluca surgiu. E se, ao invés de tentar conter a mana, eu a acompanhasse? E se, ao invés de forçar a circulação a se ajustar ao meu ritmo, eu acelerasse meus movimentos para acompanhar a velocidade dela?

    Fechei os olhos e respirei fundo. A sensação era a de estar à beira de um penhasco, prestes a saltar. Mas eu saltei, abraçando o desconhecido.

    Dei o primeiro passo, sentindo a mana pulsar mais livremente dentro de mim. O segundo veio mais rápido. O terceiro, ainda mais ágil. A resistência ainda estava lá, mas dessa vez, ao invés de me puxar para baixo, parecia me empurrar para frente.

    Cinco passos. Dez. Meu coração martelava como um tambor de guerra. Quinze. Dezesseis. Um número além do meu recorde. A mana circulava intensamente, cada vez mais rápido, e meu corpo lutava para acompanhá-la.

    Meus músculos queimavam, minha visão começava a desfocar, mas continuei. Dezessete. Dezoito. Era como tentar correr ao lado de um furacão, como se eu estivesse na beira de um vórtice que poderia me engolir a qualquer momento. Mas, ao invés de recuar, eu me adaptei. Meu corpo encontrou o ritmo, meus movimentos começaram a fluir como a correnteza de um rio, rápidos e ininterruptos.

    Dezenove. Vinte. Um rugido de esforço escapou da minha garganta. Minha pele formigava com a sobrecarga de mana, como se eletricidade pura percorresse meus músculos, expandindo minha percepção. Pela primeira vez, senti que estava no limiar de algo novo, um estado de sintonia perfeita entre corpo e energia.

    Então, no vigésimo primeiro passo, uma pisada em falso. Meu pé não encontrou firmeza, e todo o momento acumulado se virou contra mim. Meu corpo foi projetado para frente, e o impacto contra o solo veio rápido demais.

    A dor explodiu pelo meu ombro e costelas, cortando minha respiração. O ar escapou dos meus pulmões em um choque seco, e, por um momento, tudo o que consegui fazer foi deitar ali, ofegante, sentindo o calor do esforço ainda queimando sob minha pele.

    Vinte e um passos. Eu tinha superado meu limite.

    E, pela primeira vez, senti que estava verdadeiramente avançando. A força e a velocidade que atingi eram incríveis, e aquilo era apenas o começo.

    Um primeiro passo rumo ao impossível.

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