Capítulo 90: Evolução
Empolgado pelo meu feito, repeti os passos mais três vezes, ajustando a postura a cada nova tentativa. O suor escorria pelo meu rosto e ensopava minha camisa, grudando o tecido no corpo. Consegui chegar a vinte e sete passos no total, um número que, apesar de não ser perfeito, me deixava satisfeito. Estava esgotado, minhas pernas tremiam e a dor nas costas parecia um peso adicional que eu carregava, queimando a cada movimento. Ainda assim, por mais exausto que estivesse, um sorriso teimoso se recusava a sair do meu rosto.
Talvez fosse a satisfação de superar meus próprios limites. Ou talvez, por ter sido criado na Casa Vulkaris, esse desejo por maestria corporal estivesse entranhado em minha essência. O combate físico sempre foi uma prioridade para os meus, e, parando para pensar, talvez fosse esse um dos motivos de eu nunca ter me dedicado tanto aos caminhos da magia. Mesmo agora, já tendo aceitado meu destino como mago, ainda me pegava priorizando o treinamento do corpo, buscando refinar meus reflexos e minha resistência ao invés de me aprofundar nos mistérios arcanos. Estava fazendo isso sob a tutela de uma especialista em combate corporal, e não de um mestre da magia. O que isso dizia sobre mim? Para me tornar um verdadeiro mago, eu teria que mudar completamente minha maneira de ser e de pensar.
Soltei um suspiro, afastando esses pensamentos, e ergui os olhos para o céu. O sol já havia subido consideravelmente, tingindo a arena com tons dourados. Mais da metade da manhã já tinha se passado. Onde estava Pandora?
A sede me tomou de assalto, e fui até um canto da arena, onde um barril de água potável estava sempre disponível. Mergulhei a mão na superfície fria do líquido e me servi com uma grande concha, bebendo de um só gole. A água desceu queimando pela garganta, refrescante, mas insuficiente para apagar o calor que consumia meu corpo. Peguei outra concha cheia e despejei sobre minha cabeça, sentindo o alívio imediato do frescor escorrer por minha pele. Respirei fundo, fechando os olhos por um instante, deixando que o cansaço se dissipasse pouco a pouco.
Quando senti que estava pronto para recomeçar, voltei ao centro da arena. Minha respiração desacelerou conforme me concentrava novamente. Fechei os olhos por um instante, circulando minha mana pelo corpo, sentindo-a pulsar em meu interior como um segundo coração. Então, com um movimento fluido, iniciei os passos mais uma vez. Cada movimento era calculado, cada deslocamento era feito com precisão. Contei um, dois, três… vinte e sete.
Fui tirado de meu estado contemplativo por um som inesperado. Palmas.
Virei o rosto na direção da arquibancada e encontrei Pandora de pé, me aplaudindo com um sorriso divertido no rosto.
— Muito bom, cabeçudo. Mas não era pra ter mudado isso até a antevéspera da luta — disse ela, cruzando os braços. — Mas já que já meteu o pé na lama, vamos em frente.
Antes que eu pudesse responder, ela saltou da arquibancada com um movimento ágil e pousou na areia. Assim que se aproximou, percebi algo estranho. Seu andar estava diferente, uma leve mancada que ela tentava disfarçar. Além disso, haviam marcas roxas em seus braços e no queixo, evidências claras de que alguém tinha batido nela pra valer.
Meu olhar se estreitou, mas antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ela me cortou com um revirar de olhos.
— Eu também tenho que treinar, sabia? Não me olhe assim. Meu corpo já dói um bocado sem você ficar me medindo desse jeito.
Inclinei a cabeça ligeiramente, observando-a de soslaio.
— Aí — disse ela, brincando, tentando aliviar a tensão.
Não consegui evitar um riso baixo enquanto balançava a cabeça e voltava para o centro da arena.
— Bem, você queimou algumas etapas, mas tudo bem. Íamos chegar a isso antes da luta de qualquer jeito.
Pandora me observou por um instante, seus olhos carregavam um cansaço profundo, como se ela sustentasse o peso do mundo sobre os ombros. Havia algo mais ali, uma exaustão que ia além do físico.
— Vou te explicar uma coisa — disse ela, sua voz mais grave do que o normal. — Para cultivarmos, utilizamos a circulação de mana, onde, a cada movimento, ficamos mais lentos, pesados e sentimos a resistência aumentar. Parece contra intuitivo, mas é assim que fortalecemos nosso controle. Essa respiração precisa ser mantida o tempo todo, até se tornar algo automático. Com prática, você fará isso até dormindo.
Ela fez uma pausa, respirando fundo antes de continuar:
— Seu núcleo, seus meridianos, sua mente e seu corpo vão se esgotar. Você vai se sentir drenado, exausto, como se estivesse queimando por dentro. Mas, no final, essa pressão constante força o seu crescimento. É como manter seu corpo em um regime de treinamento incessante, um processo que nunca para.
Ela se sentou na areia, soltando um pequeno gemido de dor ao dobrar os joelhos. Seu rosto se contraiu por um momento, evidenciando que os ferimentos recentes ainda a incomodavam.
— O que você fez agora, intuitivamente, era algo que eu ia te ensinar mais para frente — ela disse, passando a mão na perna dolorida. — Quando liberamos nossa mana para circular livremente, deixamos que ela percorra nossos canais sem restrições. Os passos que te ensinei determinam o caminho e a velocidade dessa circulação. Quando fazemos isso corretamente, nosso corpo se adapta e se aprimora naturalmente.
Ela me olhou de soslaio e então acrescentou, num tom mais pensativo:
— Um corpo de quinto círculo, como o meu, é muito mais forte que o seu, de terceiro…
Pandora interrompeu a própria fala, seus olhos de repente se arregalando. Sua expressão mudou da serenidade para a mais pura surpresa.
— Espera… — ela murmurou, me observando como se eu fosse alguma criatura exótica.
Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ela se moveu rapidamente. Começou a me examinar com as mãos, puxando meu rosto para olhar dentro da minha boca, apalpando meus ombros, me virando de costas. Quando percebi que ela estava prestes a puxar minha calça para continuar a análise, segurei seu pulso e dei um basta.
— O que diabos está acontecendo?! — perguntei, afastando-me um passo.
Ela piscou algumas vezes antes de responder, ainda parecendo atordoada.
— Não faz nem uma semana que você estava no terceiro círculo incompleto — disse, quase para si mesma. — Agora não só completou o terceiro círculo, como já formou uma base aparente para o quarto… Você chegou ao quarto círculo incompleto.
Houve um silêncio carregado.
— Nunca vi uma evolução tão rápida assim — completou, me olhando como se eu fosse uma aberração.
Eu também estava surpreso, mas no fundo sabia a razão disso. Drael havia modificado meu corpo de uma maneira que eu ainda não compreendia totalmente. Meu núcleo de pedra, minha estrutura quimérica, meus canais de mana aprimorados… Tudo isso havia sido moldado através de uma espécie de engenharia biológica. Se eu estava evoluindo rapidamente, era apenas um reflexo dessas mudanças.
Pandora ainda me observava, embasbacada, mas agora sem me tocar. Aproveitei para cortar seus pensamentos antes que ela decidisse fazer mais algum exame invasivo.
— Bem, você estava me explicando algo antes dessa sua crise existencial.
Seu olhar desfocado encontrou o meu, como se ela estivesse tentando lembrar onde havia parado.
— Hum?
— Meu treino. Você estava me explicando algo sobre a respiração e a circulação de mana.
— Ah, sim… — Ela piscou algumas vezes e então se recompôs. Seu tom voltou ao normal, e os olhos recuperaram o foco. — O que eu estava dizendo é que seu corpo já é naturalmente forte por estar saturado de mana. Mas quando aplicamos essa respiração e circulação contínua, conseguimos ir além das limitações do nosso círculo. Esse é um segredo que as grandes Casas guardam a sete chaves.
Franzi o cenho.
— Nunca ouvi falar disso antes…
— E não ouviria mesmo — ela respondeu, cruzando os braços. — Muitas Casas só revelam determinados segredos quando seus herdeiros atingem um certo nível, ou apenas para determinadas linhagens internas. Seu irmão Roderick, por exemplo, não sabe cultivar. Agora, o outro… Victor… Ele sabe.
Isso chamou minha atenção.
— Como você sabe disso?
Ela deu um pequeno sorriso e balançou a cabeça.
— Vi na arena, durante o duelo.
— Então você me assistiu.
— Estava curiosa para ver o nível da juventude de hoje em dia — disse, dando de ombros.
Seus olhos carregavam um brilho analítico, e eu percebi que, por trás da provocação, havia um real interesse no que eu poderia me tornar.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.