Índice de Capítulo

    Eu e Marreta fizemos mais quatro “sparrings” naquela tarde. Cada embate se tornava mais intenso, mais competitivo, mas também mais respeitoso. A cada confronto, aprendíamos um pouco mais um com o outro. Depois de cada luta, discutíamos nossos erros e acertos, pontuando os movimentos bem-executados e as falhas que poderiam nos custar caro em uma situação real. Marreta não economizava críticas, mas sua franqueza vinha sem arrogância. Ao mesmo tempo, ele ouvia minhas observações sem orgulho ferido, um traço raro em combatentes experientes.

    Quando enfim paramos, exaustos e cobertos de suor, cada músculo do meu corpo protestava. As pancadas cobravam seu preço, e eu sentia cada hematoma começando a se formar sob a pele. Marreta deu um tapa forte no meu ombro e riu, ofegante.

    — Prometi uma bebida — disse, puxando-me sem cerimônia pelo antebraço. — E sei exatamente onde vamos.

    Ele me arrastou pelas ruas estreitas, ignorando minhas tentativas de recusar. O sol já se punha, tingindo os prédios de tons dourados e alaranjados, mas as sombras da cidade já se estendiam como um presságio da noite. Quando paramos diante do estabelecimento, tive minhas dúvidas.

    O bar ficava a poucos quarteirões do Matadouro. O prédio de dois andares, feito de alvenaria robusta, ostentava uma pintura escura que o tempo e a fuligem haviam tornado indefinida. No crepúsculo, a cor parecia oscilar entre um marrom encardido e um cinza desgastado. Sobre a porta, uma tabuleta de madeira exibia um javali sorridente, suas presas proeminentes desenhadas com um exagero quase cômico.

    Marreta empurrou a porta, e o cheiro forte de bebida, suor, comida e fumaça me atingiu como um soco. O salão estava lotado. Mesas espalhadas de forma caótica, a maioria já ocupada, enquanto apenas algumas permaneciam vazias, sempre com cadeiras puxadas, como se esperassem donos que logo voltariam. No fundo, uma lareira crepitava, lançando sombras trêmulas sobre a parede oposta ao balcão. Uma escada de madeira levava ao mezanino, e foi lá que meus olhos se fixaram por um momento.

    Empoleiradas no corrimão e na grade do andar de cima, várias garotas se exibiam sob a luz bruxuleante das lamparinas. Vestiam roupas mínimas, o tecido fino revelando mais do que escondia. Os lábios pintados e os olhos carregados de maquiagem davam a elas um ar ao mesmo tempo sedutor e desgastado. Algumas riam, outras lançavam olhares calculados para os clientes lá embaixo. A vitrine viva de um mercado onde não era preciso perguntar o preço.

    Antes que eu pudesse absorver melhor o ambiente, Marreta me empurrou em direção a uma mesa ocupada. Dois homens já estavam ali.

    Um deles era um anão. Uma visão incomum em terras humanas, o que fez minha atenção se fixar nele por instinto. Seu rosto era marcado por rugas de expressão e uma barba cerrada e bem aparada. Os olhos eram atentos, avaliando-me com um misto de curiosidade e desinteresse.

    O outro era um homem magro e esguio, de feições quase delicadas, mas com um olhar afiado demais para ser confundido com o de um ingênuo.

    — Esse é o Sombra — apresentou-me Marreta, apontando para ambos com seu queixo.

    O anão nem esperou que eu dissesse algo. Ele me encarou por um instante, tomou um gole da sua caneca e então falou, com um tom carregado de ironia:

    — Sabemos muito bem quem ele é. Lior Aníbal, o Terror dos Vulkaris. Aqui, não precisamos de codinomes.

    Ele deu um meio sorriso antes de acrescentar, como se fosse um detalhe insignificante:

    — Sou Marius.

    Senti meu estômago afundar. O apelido me acompanhava como uma sombra maldita e, se continuasse a se espalhar, os Vulkaris logo tomariam providências para que eu desaparecesse. Ser uma ferida aberta na honra deles não era algo que eu pudesse me dar ao luxo de ignorar, independentemente do que meu pai, patriarca dos Vulkaris, tivesse dito.

    A mão pesada de Marreta pousou no meu ombro e me empurrou para a cadeira ao lado dele, sem dar espaço para hesitação. Antes que eu pudesse sequer me ajeitar, uma jovem magra de cabelos loiros curtos e espetados surgiu ao nosso lado, equilibrando uma bandeja com quatro canecas de cerveja. Não havíamos pedido nada, mas isso não parecia importar.

    — Aqui está, bonitão — disse ela, entregando uma das canecas a Marreta com um sorriso travesso. Seus olhos brilharam enquanto flertava descaradamente. — Vi você entrando e já trouxe o seu preferido. Quem é seu amigo?

    Ela me olhou, avaliando-me rapidamente, e percebi o instante exato em que Marreta hesitou. Engasgou, e tive certeza de que estava prestes a me apresentar como “o Terror dos Vulkaris”.

    — Ele é o Sombra — disse, por fim, com naturalidade. — Um gladiador novato, mas com grande potencial. Estou dando umas aulas particulares pra ele.

    A garota riu, inclinando-se um pouco mais para perto.

    — Eu bem que gostaria de ter aulas suas, Clark querido. — Ela piscou e se afastou com um olhar cheio de segundas intenções.

    Fiquei um segundo em silêncio, então soltei uma risada curta. Clark. Então esse era o verdadeiro nome de Marreta. Ele bufou, revirando os olhos, e tomou um gole da cerveja.

    Quando a moça sumiu entre as mesas, ele se virou para os outros dois homens na mesa.

    — Pandora está treinando ele.

    O homem esguio ergueu uma sobrancelha, inclinando-se ligeiramente para frente.

    — A Dama de Gelo? — Havia uma ponta de descrença na voz do homem magro. — Ela não se mistura com a gente. Muito estranho isso.

    Ele então me lançou um olhar avaliador e acrescentou, como se só agora se lembrasse da formalidade:

    — A propósito, sou Ludo.

    Acenei em reconhecimento, sem comentar nada. Aparentemente, Pandora não fazia questão de confraternizar com os demais gladiadores, e o apelido que haviam dado a ela me fez rir por dentro.

    O anão soltou um resmungo, recostando-se na cadeira com um ar de quem já sabia mais do que todos ali.

    — Ela tá fazendo isso porque a Rosa mandou — disse, tomando um longo gole da cerveja antes de continuar. — Se o fedelho aqui não ganhar do Germano em dois dias, ela perde metade da arena pro almofadinha do Haroldo.

    Marreta estreitou os olhos.

    — Quem te contou isso?

    O anão ergueu a caneca em um brinde silencioso antes de responder, com um sorriso presunçoso:

    — Tenho minhas fontes.

    Ele fez uma expressão importante, como se estivesse à frente de um grande segredo, mas Marreta apenas balançou a cabeça, descrente.

    Então franziu a testa e disse:

    — Rosa me contou, mas só porque treinei ele hoje. Ela disse que era segredo.

    A conversa fluiu depois disso. Entre goles de cerveja, risadas ocasionais e provocações sobre lutas passadas, o clima ficou mais leve. Em momentos assim, era fácil esquecer o peso dos problemas que me rondavam.

    As garotas do andar de cima, sempre atentas a clientes promissores, desceram em algum momento e passaram a circular entre nós. Uma ou outra se sentava no colo de alguém, deslizando dedos por pescoços e sussurrando promessas melódicas, feitas para seduzir e convencer. Algumas eram diretas, outras jogavam com a provocação, testando limites antes de insistir na venda de seus serviços.

    O ambiente pulsava com uma energia crua, uma mistura de tensão e euforia que vinha do álcool, das risadas, dos olhares furtivos e das barganhas veladas.

    Por um tempo, entre a bebida, a conversa e as garotas, permiti-me relaxar.

    Eu não percebi de imediato que algo havia mudado. A princípio, achei que fosse o álcool turvando meus sentidos, deixando tudo mais lento, mais distante. Mas então, as vozes ao meu redor começaram a diminuir, como se fossem engolidas por uma névoa invisível. O tilintar das canecas cessou, e até os passos das garotas no chão de madeira pareciam mais leves, quase silenciosos. Olhei para Marreta, que estava quieto, os olhos fixos em algo atrás de mim.

    — O que está acontecendo? — perguntei, minha voz soando mais alta do que deveria no silêncio que se instalava.

    Marreta não respondeu, apenas inclinou a cabeça em direção ao palco improvisado no canto do bar — um pequeno tablado sustentado por quatro barris em pé. Virei-me, ainda meio desorientado, e então a vi.

    Uma garota de cabelos negros como a noite, longos e ondulados, subia com cuidado em uma cadeira para alcançar o palco. Sua pele era pálida, quase etérea sob a luz fraca das lanternas. Usava um vestido longo, de um vermelho profundo, que parecia fluir ao seu redor como se fosse parte da névoa que pairava no ar.

    Ela segurava um alaúde, o brilho da madeira polida refletindo a pouca iluminação do bar. Seus olhos, grandes e escuros, varreram o salão, e por um instante, tive a impressão de que se fixavam em mim.

    O silêncio caiu como um feitiço. Até a respiração dos presentes pareceu suspensa.

    Ela ajustou as cordas do alaúde com dedos ágeis e, sem cerimônias, começou a tocar. As primeiras notas eram suaves, melancólicas, como se extraídas das profundezas da memória de alguém. Então, sua voz preencheu o espaço.

    Era clara e doce, mas carregada de um peso melancólico, como se cada palavra fosse uma lágrima nunca derramada.

    Na névoa que cai sobre o mundo,
    Onde o tempo se perdeu,
    Dois corações se desencontram,
    Mahteal e Malena, um adeus.
    Ele, um guerreiro de espada fria,
    Ela, uma flor de luar,
    Prometeram-se eternidade, 
    Mas o destino os fez apartar.
    A névoa cresceu entre eles, 
    Um véu que não se pode romper, 
    Mahteal chamou por Malena,
    Mas só o eco pôde responder.
    Ela esperou na margem do rio,
    Onde as águas cantam dor, 
    Enquanto ele lutava em batalhas, 
    Que roubaram seu amor.
    Agora, nas noites sem estrelas, 
    Quando a névoa cai de novo,
    Dizem que seus espíritos se encontram,
    No vale do eterno luto.
    Mahteal e Malena, um conto, 
    De amor que não pôde ser, 
    Separados pela névoa, 
    Mas unidos no querer.

    A última nota ecoou no salão silencioso. Por um instante, ninguém se moveu.

    Senti um aperto no peito, como se a melodia tivesse despertado algo há muito enterrado dentro de mim. Fora de meus sonhos, jamais ouvira falar de Mahteal; já Malena fora mencionada por Selune. Que outros segredos sobre essas figuras a garota conhecia? Eu precisava descobrir.

    Olhei ao redor e percebi que não era o único afetado. Até Marreta, sempre tão descontraído, parecia lutar contra uma emoção que não sabia nomear.

    A garota segurou o alaúde com cuidado e fez uma pequena reverência. O bar explodiu em aplausos, mas ela não sorriu.

    Sem pressa, desceu do palco e desapareceu entre a multidão, deixando para trás um rastro de mistério. As conversas recomeçaram, mas em tons mais baixos, como se todos tivessem medo de quebrar o encanto da canção.

    Olhei para Marreta, que finalmente parecia se recompor.

    — Quem era ela? — perguntei, minha voz ainda carregada pela melodia.

    Ele tomou um longo gole de cerveja antes de responder.

    — Ninguém sabe ao certo. Ela aparece de vez em quando, canta uma música e some. Dizem que é uma viajante, que vem de terras distantes. Outros juram que é um espírito, condenado a cantar sua tristeza para sempre.

    Fitei a multidão onde ela desaparecera, mas não havia mais sinal dela. Apenas a melodia permanecia, ecoando dentro de mim.

    Levantei-me, murmurando uma desculpa qualquer, e saí do bar. O ar frio da noite me envolveu enquanto meus olhos procuravam pela cantora misteriosa.

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