Capítulo 95: A véspera
Atordoado pelos acontecimentos, percebi que vagava sem rumo pelas ruas da cidade. O movimento era escasso àquela hora. Alguns bêbados cambaleavam de volta para suas casas, enquanto outros, mais cautelosos, apressavam o passo, buscando sempre a segurança da luz das tochas espalhadas. O céu estava encoberto, e relâmpagos iluminavam a noite. O cheiro de chuva se espalhava no ar.
Quando retomei a consciência da situação, me vi diante da mansão de Jorjen. Respirei fundo e segui para minha residência. Tomei um banho, e ao me deitar, estranhei o vazio da cama. O sono veio rápido. Amanhã seria a véspera da minha luta com Germano — e da luta de Pandora com Hass.
Acordei com Philip cutucando meu rosto, inquieto. Nossa ligação me permitia sentir sua agitação. Ele queria desesperadamente me avisar de algo.
Sentei-me na cama. A luz da manhã ameaçava invadir o quarto pelas frestas das janelas. Ainda estava letárgico, mas o comportamento de Philip não deixava espaço para preguiça.
Ele mordiscou minha bochecha, insistente. Levantei, levando-o comigo até a escrivaninha — e então percebi.
Meu quarto estava repleto de outros membros do meu exército de espiões. Nunca tinham desobedecido minhas ordens dessa maneira. O que quer que estivesse acontecendo, era sério.
— O que está havendo? — murmurei, observando as pequenas criaturas ao meu redor.
Philip tentava me chamar pela nossa ligação. Ele queria que eu ouvisse, não apenas a ele, mas todos ali.
Lembrei-me do ensinamento de Shade. Evocando pequenos tentáculos de miasma, conectei-me a eles. Antes, fazia isso com poucos de cada vez, mas agora, pela urgência, me liguei a todos simultaneamente. Precisava das informações o quanto antes. O último treino com Pandora e a luta com Germano estavam se aproximando.
A conexão se formou e, imediatamente, senti meu miasma ser sugado com voracidade, como se as criaturas estivessem morrendo de sede no deserto.
Meus níveis de mana e miasma despencaram. Tonturas me atingiram, mas me apoiei na escrivaninha, resistindo. Uma enxurrada de imagens, sons e cheiros invadiu minha mente, uma avalanche de informações caóticas. De alguma forma, meu cérebro processou tudo, descartando o inútil e montando um mosaico perturbador.
Desde a madrugada, houve um aumento alarmante de espiões inimigos circulando pela cidade. Ratos esgueiravam-se pelos becos, aves espreitavam dos telhados, cães e gatos de rua moviam-se de forma estranhamente coordenada, como se obedecessem a um comando invisível. Eles não estavam apenas vagando sem rumo: estavam à procura de algo ou alguém.
Algumas dessas criaturas seguiam pessoas discretamente, mantendo-se sempre na penumbra, enquanto outras ficavam de tocaia nos telhados, ocultas nas sombras, observando cada movimento abaixo. Em determinados momentos, pareciam se comunicar entre si, mudando de posição de maneira organizada, como se estivessem ajustando uma rede invisível de vigilância.
Duas de nossas unidades foram eliminadas durante a noite. As poucas informações que consegui reunir indicavam que foram emboscadas de maneira rápida e precisa, sem chances de reagir. Se antes os inimigos apenas sondavam o terreno, agora estavam agindo de forma mais agressiva e meticulosa.
Meus pensamentos voltaram imediatamente aos homens de preto da noite anterior. Um calafrio percorreu minha espinha.
Se mantivéssemos nosso cerco defensivo, cedo ou tarde, acabaríamos criando uma zona cega: um espaço onde o inimigo não conseguiria coletar informações. Mas esse próprio vazio poderia nos denunciar. Se eles percebessem a ausência de dados em um ponto específico, poderiam deduzir nossa localização de forma indireta, não pelo que viam, mas pelo que deixavam de ver. Isso até já poderia ter acontecido.
Mais uma vez, orientei nossos espiões a debandar. Apenas Philip permaneceria comigo. O aumento súbito de espiões inimigos pela cidade era preocupante, e eu não queria chamar atenção. Meu plano agora era simples: manter-me alerta ao andar pelas ruas e, se tivesse sorte, interceptar um desses infiltrados.
O sol já havia nascido, tingindo o céu com tons pálidos de laranja e rosa. A cidade começava a ganhar vida, com mercadores abrindo suas barracas e trabalhadores saindo para suas funções diárias. Depois de lidar com Philip e os espiões, tomei um banho rápido para espantar a letargia e segui para o desjejum. Minha mente, no entanto, já estava no Matadouro.
Ao chegar, vi que já me aguardavam. Pandora estava ao lado de Marreta, os braços cruzados e a postura atenta. Marius também estava ali, assim como o anão do dia anterior e um homem que eu ainda não conhecia. Ele era alto e robusto, a cabeça completamente careca, com rugas profundas em torno dos olhos que lhe davam um ar experiente. E, claro, Rosa.
Ela se destacava mesmo sem tentar. Os cabelos vermelhos presos em um coque prático, o corpo forte e bem treinado, e o olhar afiado que parecia enxergar através de mim. Rosa não era apenas a organizadora do Matadouro. Ela ainda lutava, e qualquer um que duvidasse disso não duraria muito tempo.
Ela me avaliou por um momento, os olhos passeando pelo meu corpo, analisando detalhes que eu sequer percebia em mim mesmo.
— Está de parabéns, Pandora — disse, por fim, com um leve sorriso. — Ele realmente evoluiu muito em um curto espaço de tempo.
— O mérito é dele — respondeu Pandora, sem hesitação. — Ele treina duro e não reclama.
Rosa assentiu, parecendo satisfeita. Então, indicou o homem careca ao seu lado.
— Esse é Alex. Um gladiador aposentado e um dos guerreiros mais duros que conheço. Ele está ajudando Pandora no treinamento.
O tal Alex estendeu a mão, e eu a apertei. Seu punho era enorme, áspero como pedra, e a força em seu aperto deixava claro que, apesar da aposentadoria, ele ainda era um lutador.
Rosa olhou para todos nós, séria.
— Hoje não temos hora para terminar. Quero todos dando o máximo. Amanhã é a luta de vocês dois, e não quero desculpas. Ao treino!
Com isso, ela se retirou, deixando-nos com a missão do dia.
Pandora virou-se para mim, já assumindo um tom mais didático.
— Estarei ocupada com Alex. Mas lembre-se: circule seu mana acompanhando os movimentos do corpo. Quanto mais natural for esse fluxo, mais força e velocidade você terá.
— Certo — respondi, absorvendo a instrução.
Ela apontou para Marreta e Marius.
— Marreta e “Torreta” já sabem o que fazer.
Aquilo me fez lançar um olhar de canto para Marius, um sorriso zombeteiro nos lábios.
— Torreta, hein?
Marius me encarou de volta, a expressão fechada.
— Vá pentear macacos — resmungou ele, cruzando os braços.
Não consegui evitar uma risada baixa. O dia mal tinha começado, mas já prometia ser longo.
Pandora e Alex se afastaram para um dos lados da arena, imersos em seu próprio treinamento. Marreta e Torreta me chamaram para o outro lado, ambos com expressões que deixavam claro que eu teria trabalho pela frente.
Marreta me analisou por um instante antes de começar a explicar:
— Germano é um especialista em controlar o espaço ao redor e usar o terreno a seu favor. Se ele mantiver a distância, você estará em apuros. Meu amigo aqui — bateu no ombro largo do anão — é um cara como ele. Prefere lutar de longe, dificultando a aproximação. Hoje, vamos trabalhar estratégias para encurtar essa distância e, já que você é um mago, ver o que pode fazer para surpreender o desgraçado.
Assenti, absorvendo a informação.
— Certo.
Torreta caminhou alguns passos para trás, criando espaço entre nós. Com um sorriso malicioso, ele ergueu uma das sobrancelhas e provocou:
— Hora da verdade, moleque. Vamos ver o que o tão falado Terror dos Vulkaris tem para oferecer, se você morrer, pode deixar que colocarei flores no seu túmulo. Gostei de você.
Cerrei os dentes, sentindo a adrenalina começar a correr.
— Cai dentro
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.