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    Até o cair da noite, eu e Torreta havíamos duelado seis vezes. Algumas vezes, ele conseguia me manter à distância, obrigando-me a desviar de seus disparos e buscando brechas para me aproximar. Em outras, eu finalmente conseguia avançar, trocando golpes corpo a corpo. Em duas dessas ocasiões, minha lâmina encontrou a dele, ou melhor, uma extensão de sua armadura, que se remodelava para formar uma espada, capaz de bloquear meus ataques. O metal rangia a cada impacto, faíscas saltavam entre nós, e o choque reverberava pelos meus braços. 
     
    Apenas um único golpe meu encontrou um espaço em sua defesa, deslizando por uma brecha na placa metálica e abrindo um corte superficial. Um filete de sangue manchou sua armadura, mas ao invés de raiva, vi um brilho de respeito em seus olhos. 
     
    — Nada mal, garoto. — Ele bufou, limpando o ferimento com as costas da luva. — Mas não se ache demais, ainda estou inteiro. 
     
    No meio do dia, Rosa apareceu acompanhada de alguns de seus funcionários, trazendo nosso almoço. O cheiro de carne assada tomou conta da arena, atiçando nossa fome já avassaladora. Havia uma variedade de assados, batatas e outros vegetais, além de uma barrica de cerveja e algumas poções de cura e recuperação de mana. Não houve cerimônia: atacamos a comida como animais famintos. As poções foram usadas conforme a necessidade, cada um dos lutadores avaliando suas próprias condições antes de decidir se tomava ou não. 
     
    Torreta, apesar de sua resistência, precisava de mais tempo para se recuperar. Seu estilo de combate tinha um ponto fraco evidente: a recuperação lenta. Enquanto ele descansava, voltei-me para Marreta, aproveitando a chance para testar ainda mais minha nova habilidade. 
     
    Desde que aprendi a amplificar meus sentidos e funções cerebrais com mana, ainda não havia perdido uma única luta contra ele. E isso o deixava furioso. 
     
    — Que merda, garoto! — ele exclamou, ofegante, depois de ser derrubado mais uma vez. — Tua mãe te deu leite de quê pra ficar tão forte assim? Eu sou quase um círculo acima de você, mais experiente, e já me superou? 
     
    Ele se sentou na areia, resmungando, enquanto eu simplesmente caía de costas, exausto. O corpo pesado, os músculos tensionados e os ossos latejando como se tivessem sido fundidos ao fogo. Mesmo com as poções, sentia-me espremido até a última gota de energia. Nunca antes havia forçado tanto meu corpo com mana. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim estava mudando. 
     
    Senti ligações sutis dentro do meu próprio corpo se formando e se consolidando. Meus músculos, ossos, tendões e nervos, que antes eram temporariamente modificados pelo miasma, estavam se tornando permanentemente adaptados. O que Drael havia feito comigo não era apenas uma mudança passageira e estava, enfim, se enraizando, pelo menos, era o que parecia.
     
    Com o treinamento que Pandora me ensinou, eu estava me tornando o que deveria ter sido desde o início. E, como ela mesma dissera, esse era apenas o primeiro passo. 
     
    A luta contra Germano ainda me esperava, mas, pela primeira vez, eu não me sentia à mercê do destino. 
     
    Eu estava pronto para enfrentá-lo, ansioso até.
     
    Pandora estava afastada, sentada sozinha na areia, a alguns metros de onde os outros descansavam. Seu olhar vagava pelos detalhes da arena, distante, enquanto o vento noturno soprava fios de seu cabelo rebelde contra o rosto. Algo estava errado. 
     
    Eu sentia a tensão nela, como se sua pele fosse uma superfície frágil prestes a rachar. Diferente da garota séria, porém despreocupada, atenta, porém brincalhona, agora ela era apenas uma fachada fechada, carregando um peso imenso nas costas.
     
    Por tudo o que ela já havia feito por mim, eu queria retribuir. Pelo menos estar ao seu lado, mostrar que ela não precisava suportar aquilo sozinha. 
     
    Levantei-me com um suspiro cansado e fui até ela. Assim que me aproximei, seus olhos verdes me encontraram, e por um instante tive certeza de que ela lera meus pensamentos. Como sempre fazia. 
     
    Um sorriso tímido, quase imperceptível, surgiu em seus lábios. 
     
    — Me desculpe — ela disse baixinho. 
     
    Fiz um gesto rápido com a mão, cortando sua fala. 
     
    — Não há nada para desculpar. Você tem seus próprios fardos para carregar. Eu entendo. Na verdade, eu é que devia pedir desculpas por ser tão lerdo e um aluno péssimo. 
     
    Ela soltou uma risada curta, mas eu falava sério. 
     
    — Está pronto? — Pandora perguntou, desviando o olhar para o céu, onde as primeiras estrelas começavam a surgir. 
     
    Respirei fundo antes de responder. 
     
    — Estou na minha melhor forma. Se isso significa estar pronto, então sim. — Virei o rosto para ela. — E você? Está pronta? 
     
    Ela remexeu os pés na areia, hesitou. Seus ombros se tensionaram novamente, como se uma corrente invisível os puxasse para baixo. Então, finalmente, respondeu: 
     
    — Igual a você, talvez. Consegui empatar com Alex nas últimas duas lutas. Ele está fora de forma, mas ainda assim é um círculo inteiro acima do meu. — Ela fez uma pausa, seus olhos endurecendo. — Mas Hass… Ele é um verdadeiro monstro. Não sei o que esperar dele. 
     
    Nossos olhares se encontraram, e eu vi algo raro em Pandora: dúvida.
     
    — Se você vai ganhar ou não, isso não importa agora — falei, convicto. — O importante é saber que deu o seu melhor no treino. Se deixar ele entrar na sua cabeça, já terá perdido antes mesmo de pisar na arena. 
     
    Ela me encarou por um momento, surpresa. 
     
    Levei a mão ao rosto e esfreguei a bochecha. 
     
    — Minha bochecha ainda arde do tapa que você me deu quando me tirou do jogo mental de Germano.
     
    Pandora piscou antes de soltar uma risada espontânea. 
     
    — Bem, você tem razão. Não posso deixar isso entrar na minha cabeça.
     
    Seu riso dissipou parte do peso que a oprimia. Não era muito, mas já era um começo. 
     
    Ela me olhou pensativa, como se decidisse se perguntava ou não.
     
    — Quer me mostrar o que aprendeu nesses dois dias em que não fiquei no seu pé? 
     
    Assenti e estendi a mão para ajudá-la a levantar-se. 
     
    — É claro. Nunca poderia recusar uma dança a uma dama. 
     
    Ela riu e, para minha surpresa, corou. 
     
    Seguimos juntos para o centro da arena, sob os olhares dos outros lutadores. Eu agora percebia que a carga sobre os ombros de Pandora havia diminuído, ainda que um pouco, isso me deixou contente.
     
    Ela se posicionou, seus olhos verdes fixos em mim, avaliando cada movimento enquanto eu caminhava até meu lugar na arena. O vento noturno soprava, carregando consigo o cheiro de suor e poeira, mas tudo ao redor desaparecia conforme nos preparávamos. 
     
    Pandora sacou sua espada e ergueu o escudo, ajustando sua postura com a precisão de quem já treinou incontáveis vezes. Seu corpo parecia relaxado, mas eu sabia que era apenas aparência. Ela estava pronta para atacar no menor descuido meu. 
     
    Respirei fundo, sentindo o fluxo de mana pulsar em meu corpo. Peguei minha espada e conjurei minhas esferas protetivas, que flutuaram ao meu redor, refletindo a luz bruxuleante das tochas. Meus músculos estavam tensos, mas o cansaço do dia se dissipava diante da excitação do momento. 
     
    Circulando minha mana como ela havia me ensinado, ergui o queixo e fiz um leve aceno com a cabeça. 
     
    Pandora respondeu com um sorriso discreto. 
     
    Então, sem hesitação, nos movemos. 
     
    A areia explodiu sob nossos pés quando avançamos um contra o outro, espadas erguidas, prontos para medir forças mais uma vez. Mas, acima de tudo, prontos para nos divertir.

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