Antes de “desmaiar”, um frio cortante atravessou seu peito e uma escuridão o engoliu sem aviso prévio. Não havia som, nem chão, nem qualquer traço de realidade. Apenas sua consciência, que vagava por um espaço infinito… incoeso para mentes humanas tão limitadas. E ele… o primórdio dos tempos; o exórdio dentre todas as criaturas… Rounn presenciou sua existência, nem que tenha sido por meros milésimos de segundo. Sua forma “física” era indefinida e incompreensível. Então, ele puxou a mente do garoto com um de seus emaranhados negros e o colocou dentro do corpo do roedor.

    De repente, veio o choque. Uma nova percepção nasceu em sua mente, estranha e primitiva. Suas patas, patas pequenas e ágeis, se moviam involuntariamente sobre uma superfície de folhas secas. Sentiu a textura áspera da terra úmida sob seus pés diminutos, os farfalhares invisíveis do solo intensificados como um rugido próximo.

    O ar não entrava por narinas humanas; agora, passava por uma cavidade estreita, trazendo consigo um turbilhão de odores intricados e vívidos: musgo, folhas apodrecidas, o perfume metálico de insetos esmagados. Os olhos, agora mais próximos do chão, percebiam apenas borrões entre luzes e sombras.

    Rounn tentou se mover, mas o corpo novo e desajeitado cambaleou como uma marionete. Seus músculos insignificantes tremiam a cada tentativa de controle. Nem ele mesmo sabia o que estava acontecendo. Ele girou ao redor, confuso, enquanto uma onda de instinto o impelia a correr em círculos.

    Ao redor, os aldeões observavam o ritual de longe.

    — Vamos esperar mais alguns minutos — disse o ancião.

    Para quem assistia de fora, observou o ferimento do roedor se fechar, que fora causada pela ponta de uma lança. As feridas se curaram, como se a carne estivesse viva e se reajustasse em novos órgãos. A realidade e a luz pareciam se distorcer ao redor. Os ossos estalavam em seus lugares, e a pele necrosada tornava-se firme e intacta. As tochas ao redor da clareira tremularam, projetando sombras instáveis.

    — Em nome de Foullan! — exclamou o ancião.

    Alguns aldeões fizeram o sinal de proteção no peito, enquanto o ancião murmurava palavras de contenção.

    — A realidade não deveria se curvar dessa forma… — ele murmurou, segurando com força o cajado ornamentado.

    Uma dor aguda atravessou a mente de Rounn, como se uma lâmina quente cortasse sua percepção. Ele foi arrancado daquele corpo diminuto e arremessado de volta ao seu próprio, como se não fosse bem vindo ali.

    Arfante, abriu os olhos. A sensação do chão familiar sob seu corpo humano o trouxe um alívio imediato. Ao seu lado, o roedor que antes se movia com vida agora se desfazia como pó soprado ao vento. A pele enrugava e escurecia, como se estivesse necrosando diante dos olhos de todos. Os pelos caíram, e a carne murchou até revelar ossos frágeis, que por fim se transformaram em pó.

    A clareira ficou em completo silêncio. Nem mesmo os insetos ousavam romper a tensão.

    Rounn tentou se levantar, mas suas pernas tremiam, sua mente ainda estava atordoada. O olhar das pessoas ao redor era carregado de pavor e condenação.

    — Maculado… — sussurrou uma mulher com máscara de palha.

    — Observem, povo de Lantiva, a face de um homem abandonado por Deus, um traidor de Foullan. Ele desrespeitou os nossos princípios. Maculou sua própria imagem. Ele profanou a ordem da vida e da morte! — O ancião proclamou.

    O ancião bateu o cajado no chão, o som ecoou como um trovão.

    — Um maculado se revelou entre nós. Ele deve ser levado à cidadela e contido imediatamente!

    Os aldeões, agora unidos pelo medo e pela tradição, avançaram com cordas nas mãos. Fendrik liderava o grupo, os olhos brilhando com uma satisfação que nunca antes tinham visto, como se estivesse sentindo uma satisfação; uma sensação de dever cumprido.

    — Amarrem-no! — gritou ele.

    — Esperem! Mas ele… ele é uma boa pessoa — protestou Talia, tentando impedir o pior.

    Mas era tarde demais. Todos a ignoraram. As mãos de Rounn foram agarradas com força, e as cordas se apertaram em torno de seus pulsos. Ele não protestou, seu cérebro humano limitado ainda tentava processar as “infinitas” informações que sua mente trouxe, ao retornar para o corpo.

    — Eu sabia! EU… escutaram? EU estava certo, imbecis. — Fendrik os encarou com frieza. — Os profanos ainda estão por aí, eu avisei.

    Ele fora carregado impiedosamente e de maneira descuidada pelas mulheres mascaradas. O amarraram no tronco de uma árvore, no meio da vila, para que rezassem todas as noites até os próximos dias (até que o sacrificado morra de fome). Os cidadãos de Lantiva seguiam a uma antiga religião, eles adoravam a uma criatura superior e eterna, chamada Foullan. Cujo o arauto fundador, Credence, através de uma revelação celestial, instituiu que todos aqueles que fossem considerados profanos, deviam ser extinguidos.

    — Povo de Lantiva… fiéis seguidores de Credence, hoje estamos reunidos para erradicar este maculado da face da Terra. Foullan nos absolveu deste mal que poderia nos consumir, deste infortúnio que caminhava entre nós. Ele nos concedeu a chance de livrarmo-nos desta praga de maneira pacífica, para que nossos corações possam encontrar paz perante esta execução. Por isso, a própria natureza guiará o curso da morte deste jovem… tão jovem, e já maculado. Evitemos a vingança e a ira, pois, caso contrário, nossos corações se profanarão como o dele. Agora, oremos:
    Oh, Grande Senhor do Sagrado Jardim, purifique as tuas flores mais belas e livrai-nos daqueles que caíram como folhas secas, profanando teu jardim… — Levantou as mãos.

    Rounn abriu os olhos vagarosamente. Tudo parecia um pouco borrado, com manchas de luz invadindo sua visão. Seus tímpanos tiniam, como se houvesse uma pressão nos ouvidos e dentro de sua cabeça, distorcendo todo o discurso do ancião. Aos poucos, as imagens começaram a se tornar mais nítidas. Ele levantou a cabeça, com a saliva escorrendo pelas vestimentas, como se acabasse de acordar de um sono pesado. As poucas memórias que adquiriu enquanto era um roedor, naquela pequena escala de tempo, que agora lhe pareciam distantes e confusas, começaram a invadir sua mente. Após a oração, as pessoas pareciam estar indo embora, para cumprir seus afazeres, como se ele nem estivesse ali. Talia correu em sua direção e parou em sua frente. Ela ergueu sua mão para tocar na dele, mas vacilou, com medo do tipo de monstro que ele poderia ser.

    — Eu não acredito que isso foi acontecer… logo com você. Com a gente…

    — Não está acontecendo nada entre nós, Talia. Meu coração já pertence a outro alguém. Vá embora. — Sua voz soou fria, como uma ventania invernal, empurrando-a para o abismo de onde veio. — Permita-me morrer sozinho, pelo menos terei, enfim, meu descanso.

    Ela pôs as duas mãos na boca, franzindo o cenho. Sua reação parecia instável.

    — Fendrik tinha razão… — disse Talia, com a boca ainda tapada. Ela correu de volta para o vilarejo, longe daquela imagem atroz, que agora, queria esquecer.

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