O salão era adornado com tapeçarias e detalhes em ouro, refletindo a influência da família Destadt sobre a cidade de Vallendrea. São descendentes de antigos donos de grandes minas de ouro da região de Hiutan. No centro, sobre uma mesa de mármore, repousava uma relíquia: uma antiga manopla com inscrições anímicas, capaz de criar uma promessa inquebrável entre duas almas. Esta promessa apenas cessaria caso uma das partes viesse a falecer ou quebrasse o contrato, o que resultaria em terríveis consequências. Dois representantes estavam frente a frente, ambos com uma presença marcante, mas de naturezas opostas.

    Lorde Destadt, de postura confiante, inclinou-se levemente para o conselheiro do reino, o qual presidia a reunião.

    — A manopla deve retornar à nossa família — afirmou com sua voz cheia de convicção — Vann Destadt foi o último proprietário legítimo, e ela sempre pertenceu aos Destadt. É um artefato que carrega nosso nome, nosso sangue.

    Do outro lado, o comandante da guarda real, manteve-se firme, mas comedidamente respeitoso.

    — Lorde Destadt, com o devido respeito, a manopla foi encontrada pela guarda e reivindicada pelo reino. Sua utilidade vai além de linhagem. Ela é uma ferramenta que pode servir à justiça, beneficiar a corte e a estabilidade da cidade. Sob nossa custódia, será usada para servir ao povo, não a interesses particulares.

    O conselheiro olhou de um lado para o outro, ponderando. — Os Destadt têm um vínculo antigo com este artefato — comentou — excelência, conforme disposto na cláusula testamentária do contrato original, fica explicitamente estabelecido que qualquer bem ou relíquia de valor histórico ou sentimental, uma vez identificado como parte da herança da família, deve, obrigatoriamente, ser destinado aos descendentes diretos, visando preservar a continuidade e a integridade do patrimônio familiar. Tal disposição assegura que o objeto permaneça sob a posse dos herdeiros legítimos.

    O Lorde sorriu, certo de que a decisão pendia a seu favor. Mas, nesse instante, uma jovem mulher surgiu ao fundo do salão, segurando um diário antigo, com a capa desgastada pelo tempo. Ela se aproximou da mesa central mantendo o olhar firme.

    — Senhores, peço licença. — Todos voltaram seus olhares para ela, surpreendidos. O som de seus passos se destacava pelo tribunal. — Meu nome é Helara, trabalho no departamento penitenciário. Trago evidências capazes de mudar o rumo desta decisão.

    O conselheiro fez um sinal para ela prosseguir, mas o juiz tentou a impedir.

    — Senhorita, este tribunal segue regras rígidas. A senhorita deveria ter feito a apresentação das provas antes, para passassem por uma análise crítica e…

    — Não, Hugo, eu insisto!

    O juíz entrou em uma espécie de transe, identificável à olhos inábeis.

    — Mas, existe uma abertura constitucional. Eu a permito. Prossiga, por favor.

    Sussurros de dúvida cobriram o salão, mas ninguém ousou dizer nada contra o juiz, nem o próprio Destadt, até porque já estava convicto dessa vitória.

    “Ela o chamou pelo nome? Que falta de profissionalismo.” Era o que diziam.

    Então, a moça abriu o diário, revelando páginas amareladas e cheias de anotações.

    — Aqui estão registros pessoais de uma jovem chamada Laurient. Ela foi uma vítima do escravagista e suposto homem intitulado de Vann Destadt. Em seu diário, ela relata encontrar registros de como ele, na verdade, não pertence à linhagem da família Destadt; seu nome verdadeiro era Ubran, e ele forjou sua identidade para infiltrar-se entre os nobres, décadas atrás, e ganhar acesso a uma antiga estrutura que o mesmo chamara de “O Coliseu”.

    Um murmúrio correu pelo salão. Lorde Destadt ficou pálido, tentando recompor-se

    — Isso… isso é um absurdo! Onde encontrou esse caderno?

    — Além disso, ela acentua os crimes hediondos cometidos pelo Ubran, e que, originalmente, a manopla não era de sua posse legítima, e sim de outro homem — respondeu Helara, segura —, esse diário é prova suficiente de que a posse da manopla nunca foi verdadeiramente dos Destadt. —

    — Por favor, senhorita — disse o conselheiro.

    — Permita-me.

    Ela leu as anotações do diário diante de todos que estavam presentes.

    — Tudo o que está escrito neste diário é a verdade. Fomos às ruínas do local nomeado de “O Coliseu” e encontramos os resquícios de suas pesquisas, além de cadáveres e… outras coisas grotescas. Está tudo abandonado e, em breve, confiscaremos todo o laboratório. Considerando que os registros que há neste caderno foram encontrados e, logo, concretizados como fatos. Então, não teria motivos para a autora mentir na revisão diária de suas anotações.

    O salão do tribunal mergulhou em um silêncio sepulcral. As palavras lidas daquele diário pareciam ecoar nas paredes, impregnando o ar com uma tensão espessa. Cada frase impactava os ouvintes, expondo segredos que muitos ali jamais imaginariam. “Tudo o que está escrito neste diário é a verdade”, a frase pesava na mente de cada pessoa presente, e a ideia de que o sagrado nome dos Destadt havia sido maculado dessa forma deixava até os mais fervorosos apoiadores em choque.

    O público, antes inquieto, agora se mantinha imóvel, absorvendo a verdade que surgira de maneira tão abrupta. Os murmúrios se espalhavam, mal contendo a surpresa e o escândalo. Alguns rostos revelavam horror; outros, uma satisfação maquiavélica. Não era apenas uma disputa pela posse de um artefato, era o colapso da reputação de uma das famílias mais influentes da cidade.

    Após alguns instantes, ouviu-se um ruído vindo da bancada da família Destadt. O próprio Lorde Destadt tentava, em vão, manter a compostura. Seus olhos vagavam pelo salão como se buscassem uma saída, uma palavra que pudesse desmentir as provas esmagadoras, mas ele não encontrou nada. Levantou-se, limpando o suor da testa, e então finalmente quebrou o silêncio:

    — Isto… isto não prova nada. Quem garante que… que esses registros não foram forjados? Esse diário pode muito bem ter sido… manipulado por aqueles que… que querem a queda de minha família… — Pobre Destadt, nem ele acreditava nas próprias palavras.

    Sua defesa soava vazia, quase patética, em contraste com a robustez dos registros apresentados. O público trocava olhares, alguns contendo sorrisos disfarçados. Parecia óbvio que o destino do julgamento já estava selado, e a mera sugestão de uma fraude soava como desespero.

    Helara, que havia apresentado o diário, permaneceu em pé, com o olhar firme sobre o juiz. O presidente do júri trocou um olhar significativo com os demais e, com um aceno, confirmou a decisão. Ele bateu o martelo, selando o veredito:

    — Ao avaliar as evidências apresentadas e a veracidade dos registros encontrados no diário, o júri decide que a manopla deverá ser transferida à custódia dos militares, uma vez que a família Destadt não possui o direito legítimo sobre ela. O falso vínculo que o senhor Vann Destadt mantinha com este artefato está, por fim, exposto.

    O murmúrio no salão se intensificou, desta vez acompanhado de sussurros de incredulidade e satisfação. A decisão havia sido tomada, e os Destadt haviam perdido não só a manopla, mas também a credibilidade que sustentava seu poder.

    Após a decisão sobre a manopla, o presidente do júri se levantou, sua expressão assumindo uma seriedade ainda mais rígida. Helara sai pelas portas da frente, confiante, de ombros bem-postos e de postura ereta.

    — Além disso, considerando a gravidade dos relatos e a autenticidade dos registros apresentados, o juiz ordena a emissão imediata de um mandado de busca e apreensão. Este mandado deve ser cumprido nas propriedades da família Destadt, para examinar documentos, objetos e quaisquer evidências adicionais que comprovem o uso ilícito do Coliseu para atividades criminosas.

    Uma onda de murmúrios percorreu o público novamente, desta vez com tons de preocupação. A ideia de revistar a casa de uma família tão poderosa era quase impensável, mas os fatos que surgiram exigiam uma ação contundente.

    — Além disso, este tribunal irá agendar uma nova sessão para deliberar exclusivamente sobre as possíveis atividades ilegais cometidas pela família Destadt no chamado Coliseu. A natureza das acusações requer uma investigação formal e um julgamento específico para apurar a responsabilidade criminal dos envolvidos. Estamos tratando de questões que envolvem integridade, abuso de poder e crimes que não podem ser ignorados. Este julgamento será conduzido com a máxima seriedade, e todos os envolvidos devem estar preparados para responder à justiça. –

    Durante julgamentos e eventos públicos, Helara sempre se mostrava uma mulher imparcial e controlada, exatamente como seus superiores esperavam que se comportasse. Mas, naquela noite, esse teatro de marionetes havia acabado. Ela ganhara, precisamente como havia calculado. Caminhava ao lado do tenente pelo caminho de ferro, uma das alas mais escuras de um dos presídios de Vallendrea. Era utilizado para deter prisioneiros de guerra, ou pelo menos era o que diziam.

    — Haha, impressionante o seu trabalho, Helara. Uma das suas piores atuações e, mesmo assim, enganou a todos aqueles imbecis. Mas tenho que aclamar sua imaginação, de onde tirou todas aquelas ideias?

    — Não inventei nada, tenente, tudo o que está no diário é verídico.

    — Essa é mais uma de suas piadas?

    — Por acaso está me confundindo? Com os Destadt fora de jogo, as influências e pressões político-econômicas não afetará mais este distrito militar, com suas regras e medidas de proteção cívica forçada. Além da constante vigilância ao meu trabalho e outros fatores que não precisarei mais me preocupar. Agora imagine, tenente, se eles conseguissem o poder de dominar qualquer um, o poder de um acordo inquebrável nas mãos da Elite. Quanto aos militares… o poder da relíquia pode até ser uma pedra no sapato, mas é melhor que nas mãos dos Destadt. Aliás… – Ela destranca uma porta de metal maciço.

    — Pelas barbas de Hornnek! — O homem gritou abismado.

    O tenente se aproximou vagarosamente daquela cela que mais parecia uma cena de crime. A mulher acorrentada a 5 palmos do chão se mantinha inerte, presa as correntes de aço pelos pulsos.

    — Esse é… um tratamento bem mais desumano do que eu esperava de você, Helara. Mas, tudo bem. – Analisava a moça cada vez mais de perto

    — Bom que tenha se interessado. — Trancou a porta o prendendo lá dentro

    — Ei! O que significa isso? – Esmurrou o metal pesado inúmeras vezes.

    Ela acena para ele pela pequena fresta da porta. As paredes da sala inibiam o som, sobrando apenas um ruído branco nos ouvidos do homem, exceto pela respiração regular da garota. Havia uma alavanca ao lado, e então ela a aciona. O tamanho das correntes aumentava conforme as engrenagens iam girando, mesmo após os pés dela tocarem no chão. O militar se mantinha nos limites da sala, tentando evitar aquilo lhe esperava: a morte. Após alguns segundos de tensão, nada parecia acontecer, até que o barulho das engrenagens cessou. Ele sentou-se ao chão, a observando fixamente.

    — Isso é alguma brincadeira? Eu irei lhe reportar para o batalhão. Me tire daqui! – Continuou, enquanto batia na porta. — Helara! Eu não estou…

    Seu sangue jorrou pelas grades da fresta, sujando o chão. Uma ínfima gota caiu no rosto da carcereira, e ela limpou-a com a língua.

    — Eles até podem ter um exército, mas eu, tenho a arma.

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