Capítulo 26: O valor de uma vida
“Compaixão, aceitação, perdão. O que significam? Por que esses sentimentos me vêm à mente em um momento que deveria ser tão desesperador? Talvez seja melhor assim. Minha existência trouxe sofrimento para todos — até para vocês… não é, mãe? Mas pessoas como ele deveriam ser eliminadas. Só trazem dor onde existe amor, não é, pai?” Rounn falava consigo mesmo, murmurando debaixo da copa da árvore onde estava amarrado.
“Mas essas pessoas… acham que sou um monstro. Talvez eu seja mesmo. Elas não merecem um destino tão cruel; apenas estão lutando pelo que acreditam ser certo. São como eu… como eu era antes. Vou apenas ficar aqui, amarrado a este tronco de ipê, esperando que os insetos e as pragas reivindiquem meu cadáver. É o destino mais puro que alguém pode carregar: alimentar os mais fracos com o próprio corpo.”
Já haviam se passado quatro dias desde o ritual. Seu corpo suplicava com dor, nem que fosse por migalhas de comida. O pleófago que habitava em seu interior, enlouquecia por alguma fonte de energia, estava sedento por poder. Devorava as últimas proteínas do corpo do jovem, ele estava definhando por dentro e por fora, por causa de sua morfose. Estava sendo traído pelo seu próprio corpo. Além dos efeitos da sonolência, considerando todos os fatores que atrapalhavam seu sono.
O amanhecer chegou à vila de Lantiva com a suavidade de uma brisa fresca. Os telhados de palha ainda carregavam gotas de orvalho, e a névoa rasteira abraçava os campos onde o trigo ondulava preguiçosamente ao vento. O aroma do pão recém assado escapava pela janela da padaria do Sr. Odair, que já estava com os braços enfarinhados até os cotovelos.
— Mais rápido, garoto! — ralhou ele com Teros, seu aprendiz de cabelos desgrenhados, que tentava em vão dar forma a uma massa rebelde. — Se fizer outro pão torto, eu é que vou te torcer igual a essa massa!
— Quero ver alguém reclamar quando provarem, mesmo que pareça uma pedra — Teros bufou, mas segurou o riso.
Enquanto isso, na praça principal, crianças corriam atrás de um cão vira-lata que latia feliz, fugindo das pequenas mãos ansiosas. As barracas começavam a se montar ao longo das ruas de pedra irregular. Liana, a tecelã, ajustava seus tecidos coloridos sob o olhar atento de uma cliente exigente.
— A tonalidade de azul desse vestido está muito opaco, além de mal pintado — disse a mulher de sobrancelhas arqueadas.
— Opaco é sua cara — Liana murmurou entre os lábios.
— Como disse?
— Disse que talvez prefira o verde esmeralda, é isso mesmo?
— Eu escutei o que disse, sua bruxa velha.
— Se não for comprar, então vá embo… pera, você me chamou de bruxa velha? Pois agora os preços dessa bruxa velha irá soltar um feitiço para esses preços subirem, que tal?
— Ah não, Liana, deixa de frescura. Você é a única que me vende umas boas tralhas por essas bandas.
— Tralhas? Pois então… — Seu olho direito piscou involuntariamente. — Vai querer o verde esmeralda ou não? Troco pelo peso de três Lumplumas, esse é o preço para as clientes com boca suja.
— Três? Mas era só um! tudo bem, tudo bem… me desculpe.
No outro extremo da praça, dois homens discutiam diante de uma carroça com rodas quebradas.
— Eu disse pra reforçar os eixos antes de colocar tanta carga! — vociferou Ardun, o ferreiro, com as mãos enormes apoiadas na cintura.
— E eu disse que sua forja faz eixos fracos como galhos secos! — retrucou o velho agricultor de rosto queimado pelo sol.
A discussão atraiu alguns curiosos, que começaram a opinar sem serem convidados.
— Eu já vi o Ardun fazer uma espada que cortava pedra! — disse um jovem animado.
— Mas será que faz uma roda que aguenta sete sacos de batatas? — provocou outro.
— Sete? Eu disse que o peso máximo era de cinco saco de batatas! Esse seus ouvidos devem estar tampados de cera e pelos, isso sim.
— Ih foi? hm, mas rapaz… me desculpe então pelo incomodo. — Coçou o queixo.
A manhã prosseguia com a melodia natural da vida. Uma velha senhora varria a entrada de sua casa enquanto reclamava das folhas caídas. Um casal discutia sobre onde plantar as ervas do jardim. Na beira do riacho, uma adolescente jogava pedras na água enquanto observava o reflexo das árvores com um suspiro distante.
Quando o sino tocou às quatro da madrugada, todos se reuniram em volta do antigo ipê-amarelo, onde o jovem “Koran” estava amarrado. Era preciso presenciar o sofrimento alheio para compreender a verdadeira essência de Foullan. Apenas aqueles que estavam além do plano terreno da dor poderiam receber sua benção. Era necessário livrar-se das amarras do prazer, da limitação do conhecimento concreto e da insignificância do corpo material. Mas apenas para eles, é claro.
— Irmãos de Credence, estamos aqui hoje em comunhão, mais uma vez, para agradecer e rezar pela alma deste jovem que caiu em desespero devido à profanação. Vamos continuar o ritual de purificação até que a natureza tenha piedade de sua mente frágil e de seu corpo que vive em constante sofrimento. Oremos…
Rounn não estava se sentindo bem. Já fazia oito dias que ele continha o parasita dentro de si. A criatura clamava por alimento, por energia. Ela precisava de carne, precisava de poder. Seu estômago se revirava bruscamente. “Não, você não pode sair agora. Isso não pode acontecer”, ele pensou.
Sentia algo se mexendo entre seus braços e pernas e dentro de seus órgãos. Era a primeira vez que sentia aquele ser tão primal se rebelar grosseiramente. A sensação o repugnava, fazendo-o lembrar da primeira vez que o expeliu. Mas ele… ele sempre voltava. Aquele maldito ser já fazia parte dele. Todos da comunhão olharam para seu rosto contorcido em expressões grotescas. Pararam a oração, espantados com a cena.
— Ancião, isso é normal? — uma das seguidoras questionou.
— Não, minha filha…
Rounn começou a gritar, mas não de dor:
— Tenha piedade de suas almas, por favor. Eles verão nossos ferimentos e seguirão seus caminhos. Nada farão; são indiferentes ao nosso destino. Mesmo que os outros digam maldades, perdoe-os. Eles não sabem o que fazem, não sabem o peso de suas palavras.
Rounn suplicava em uma de suas orações para que o pleófago não os matasse. Mas era tarde demais. A substância negra já havia alcançado seu esôfago. Fraco e inóspito, Rounn era um hospedeiro imperfeito naquelas circunstâncias. Era apenas o curso da natureza, como diziam os aldeões de Lantiva. Eles apenas se esqueceram de uma coisa: sob as regras naturais deste mundo, os fracos sucumbem.
Era inesperado que o garoto morresse de fome, pois ele era o mais forte. O pleófago, um opressor imparável da natureza, caçava um por um. Sob a forma de uma aranha, suas patas artificiais permitiam movimentação muito mais rápida do que na forma convencional de sua espécie. Como se tivesse adquirido inteligência através do cérebro de Rounn. A sinfonia da noite estava se compondo naquele momento. Ele se contentava com os gritos daqueles que trataram seu hospedeiro com arrogância.
Era um espécime impressionante, considerando a limitação intelectual de sua espécie. Se Vann Destadt tivesse presenciado isso…
A vila estava em chamas. O sangue daqueles considerados puros agora estava espalhado pela grama verde. Haviam se tornado um só com o mundo, exatamente como desejavam.
“Não… não era isso que eu queria. Não aguento mais ver tanto sofrimento. Tanta violência em vão”, Rounn pensou.
Um homem surgiu em meio às chamas e destroços do vilarejo. Ele empunhava uma lâmina, indo em direção a Rounn. Suas roupas estavam rasgadas, sua pele perfurada. Feridas eram visíveis em vários locais do corpo. Seus olhos estavam vazios e embranquecidos como os de um cadáver. Frágil como um esqueleto, ele cambaleava de um lado para o outro. Seu crânio parecia rachado, seu tórax mais expandido que o comum.
Ele se aproximou do garoto, fazendo-o presenciar o pleófago saindo por seus orifícios, mas ainda controlando seu corpo. Apesar da degradação do receptáculo de carne, sua garganta estava intacta, exatamente como planejado pelo parasita. Era um prenúncio para o que aconteceria em seguida.
— O que foi, garoto? Perdeu sua sede de vingança? — disse o “aldeão”, imponentemente.
Rounn abriu os olhos, espantado.
— Impossível! — Ele retrucou, tossindo com cansaço.
— Posso não ter muito tempo de vida, mas… nesses oito dias que estive com você, já pude compreender esses dilemas humanos.
— Eu não sabia… não sabia que sua raça era consciente — balbuciou Rounn, com a garganta seca.
— Há muitas coisas que não sabe sobre nós. — Ele colocou a mão do cadáver na nuca de Rounn. — Escute: foda-se esse mundo. As pessoas vão e vêm; não pense demais nisso. Eles dão preço à tudo, mas não sabem o valor de nada. Quer ter compaixão? Tudo bem, isso é bom. Mas, falando como alguém que tem um tempo de vida extremamente curto, esqueça toda essa merda e viva. Lute e lute. Vá atrás dela, da garota… ela faria o mesmo por você. E eu sei que é isso que você quer. Exploda essa merda toda, se for preciso. Mas, Rounn…
Ele vomitou sangue.
— Este corpo já está cedendo…
Cortou a corda que o prendia.
— Sabe qual o valor de uma vida, garoto?
O cadáver caiu com um baque no chão, sujando o tronco da árvore e as gramíneas ao redor, dando fim ao pleófago. Deixando o questionamento em sua mente. Rounn empurrou o corpo para a frente, liberando-se do resto das amarras. Ao lado da mesa ritualística, pousava aquela mesma lâmina que o fez possuir o corpo do roedor.
— Então era aqui que estava o outro pedaço. Isso pode ser útil. — Guardou no bolso.
Andou mais alguns passos tortos para longe dali, mas logo caiu. Sua visão estava borrada, mas ele não podia desistir, não depois de tudo aquilo. Observou a alvorada resplandecer além da copa dos pinheiros, indicando o começo de uma nova manhã.
— Laurient… eu prometo. Iremos colorir este mundo de amarelo, juntos!
Engoliu a terra do chão, alimentando-se dela. Continuar lutando… era o que suplicava em seu coração. Era esse… o valor de sua vida?
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