Mais uma vez, as gotas de sangue de um criminoso foram derramadas nas frias ruas de pedra de Vallendrea. Rerdram puxou grosseiramente o cabo da lança que estava fincada abaixo do ombro do rapaz; seu pulmão direito tinha sido perfurado pelo metal. Não havia salvação para uma criatura dessas, tão comumente tratada como um ser inferior. Seu destino já estava traçado, na mesma hora que Rerdram havia pisado naquele local.

    A rua era estreita, cercada por muros descascados e janelas quebradas. O vento gelado sibilava através das frestas, carregando o cheiro de sujeira e abandono, misturado ao ferro quente do sangue derramado. Uma lua pálida espreitava entre as nuvens, lançando uma luz mortiça sobre Rerdram.

    Ele sacudiu a lança mais uma vez, retirando o excesso de sangue da lâmina, e girou a pulseira em seu braço. A luz do luar refletiu no cabo metálico, antes que a lança se contorcesse, como serpentes de fumaça prateada, até desaparecer de sua mão.

    — Isso… é injusto. — A infame criatura, desprezada por Rerdram, balbuciava enquanto saia sangue de sua boca. Seu rosto estava pálido, os olhos vidrados pelo medo e pela dor. — Vocês têm acesso às melhores relíquias distorcidas.

    — Você é a escória da civilização… por acaso acha que tem algum direito de reclamar? — As palavras saíram frias, carregadas de desdém. Rerdram sequer piscava os olhos.

    — Tão… inocente. — Um sorriso torto e ensanguentado se formou em seus lábios, antes que a última fagulha de vida abandonasse seu corpo. Ele morreu ajoelhado no chão, recusando-se a cair, como se sua missão o mantivesse firme até o fim.

    Rerdram parou, observando o cadáver imóvel. O vento chicoteava seu sobretudo negro. “Foi uma luta difícil. Apesar disso, todos os reféns estão seguros, isso é o que importa”. Ele estava na periferia da cidade, na área urbana mais humilde de Vallendrea, precisamente distante o suficiente da moradia dos Morvayne. O cheiro de urina e madeira podre infestava o beco, e ratos esgueiravam-se pelas sombras.

    Ele soltou as cordas que amarravam os civis e destapou suas bocas, enquanto seus olhos ainda relutavam em abandonar o cadáver ajoelhado. “Nenhum morto? Claro, exceto o sequestrador. Mas a Morfose estava indicando para os reféns, então… que estranho.”, pensou.

    — Finalmente, alguém nos salvou! — disse uma mulher, suas mãos ainda tremiam enquanto segurava os cantos do vestido sujo.

    Os cidadãos começaram a se dispersar, alguns tropeçando em seus próprios pés. Tamanho era o desespero para deixar aquele maldito lugar. Rerdram tentou abordar alguém para questionar sobre a situação, mas todos se esquivavam com murmúrios apressados e olhares ignorantes.

    — Fique calma, senhora. Pode me explicar exatamente o que houve aqui? O sequestrador falou sobre alguma coisa?

    — Ô, por favor, estamos aqui por mais de duas horas, deixe-me ir para casa, estou faminta e quero ver meus filhos e meu marido, eles devem estar preocupados. Mas, no geral, nada foi dito pelo criminoso. — Ela andou para os lados, escapando dos questionamentos de Rerdram, quase tropeçando nos escombros acumulados na viela.

    Um homem, ainda no fundo do galpão, massageava seus pulsos, como se estivesse mais desconfortável com as amarras do que o resto dos reféns. Ele parecia não estar com nem um pouco de pressa para sair dali. Fora andando tranquilamente para fora. Sua expressão estava séria, como se não se importasse com aquele infortúnio momentâneo. Seus pesados olhos focaram em Rerdram por alguns segundos, enquanto se aproximava de sua figura intimidadora, conhecido por muitos como um detetive experiente; mas para os criminoso, ele não passava de um cão da guarda de Vallendrea, um covarde com medo de se rebelar.

    — Ei, você. Pode me emprestar um pouco do seu tempo para responder algumas perguntas? — A voz de Rerdram era firme, mas o homem não parecia intimidado.

    — Mas é claro, seria uma honra poder contribuir. — Suas palavras soavam frias como aquela noite. Seu olhar vazio transmitia um desconforto difícil de descrever.

    — Tá… então, ele fez alguma ameaça específica?

    — Deixe-me tentar lembrar… foram duas longas horas que ficamos presos aqui, provavelmente até mais; talvez meia hora a mais. Pode ser um pouco difícil de se lembrar, ele conversou sobre bastante coisa… vou pensar em algo mais específico. — O refém falava lentamente, como se estivesse indiferente àquela situação, e seu olhar vagava preguiçosamente pela rua deserta.

    Rerdram o observou atentamente. Algo naquela postura despreocupada não fazia sentido. Todos os outros reféns estavam em pânico, mas aquele homem parecia… entediado.

    Após vinte minutos de conversa arrastada e desconexa, Rerdram desistiu. — Certo, obrigado, é melhor eu ir… — disse, impaciente.

    O homem lançou lhe um último olhar pesado, como se quisesse gravar o rosto de Rerdram em sua memória. Então, calmamente, andou pela viela e chutou o cadáver do criminoso com desprezo.

    — Não consegue nem arrastar uma luta direito, imbecil. E ainda se permite morrer. — Ele cuspiu no chão, o som ecoando sinistramente nas paredes de pedra.

    Rerdram estava em uma charrete pelas ruas escuras de Vallendrea, em direção à central do departamento, já distante daquele cenário. O silêncio da madrugada era quebrado apenas pelo som dos cascos do cavalo ecoando nas pedras irregulares. As casas ao longo do caminho eram velhas, de madeira apodrecida e telhados tortos, dando, para aquela parte da cidade, um ar fantasmagórico.

    Imediatamente, sua visão ficou turva, a realidade ao seu redor pareceu distorcer-se, como se o tempo e o espaço estivessem se misturando. Imagens piscavam em sua mente, flashes de um lugar que ele reconhecia: A casa do chanceler, perto do mercado central.

    Pessoas gritavam; chamas avançavam vorazmente pelas moradias, pintando-as com tons de laranja e vermelho. Corpos caíam enquanto a fumaça densa sufocava o ar, e a expressão de terror em seus rostos congelava no tempo. As labaredas serpenteavam entre as vítimas, rápidas e impiedosas.

    Rerdram estremeceu, voltando à realidade com o coração acelerado. O cocheiro se assustou por um momento, pela inquietação repentina do rapaz. Não havia tempo a perder. A Morfose havia mostrado uma chacina prestes a acontecer, e ele sabia exatamente onde. Apertando os punhos, começou a correr na direção do mercado central.

    O vento parecia uivar à sua volta, o avisando que aquilo não era mais uma de suas simples visões. “Droga… é melhor contatar a Laurient antes”.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota