Alya fitava suas mãos trêmulas, enquanto sua mente vagava por uma imensidão de vozes angustiantes e ameaçadoras. As palavras das pessoas a atingiam como flechas de pontas metálicas enferrujadas.

    — Não ela… ela não fez nada. Se acalmem.

    As pessoas se irritaram com o posicionamento de Galand diante da situação. Uma criatura tão vil não teria o direito de opinar sobre os nobres e puros vallendreanos. A difamação estava se tornando agressão por parte dos cidadãos que se amontoavam. Um homem segurou Alya pela gola da blusa, e seu irmão lhe desferiu um soco com a mão esquerda em seu rosto. Ela mal se moveu.

    — Não toquem nela! — Galand reagiu sem pensar, sobrepujando o agressor. Sua força física era desproporcional ao homem que agora se encontrava arremessado ao chão — Droga… Argh… eu… eu não quis, mas você me obrigou a usar a força, senhor.

    — Como ousa agredir o meu irmão! Por que está defendendo esta assassina?

    O homem deitado tentou se levantar, demonstrando intenção de lutar contra Galand, mas seu irmão o interrompeu:

    — Não faça isso, não vale a pena. Melhor contatar ás autoridades. Será a nossa palavra contra a desses maltrapilhos.

    — Desgraçados… — Galand apertou o punho. Sua paciência já estava se esgotando. — Alya, anda, vamos sair desse lugar…

    Um guarda o neutralizou, colocando-o contra o chão e segurando seus braços. Fora chamado por uma senhora que mal presenciara a situação; de acordo com ela, Galand estava descontrolado.

    — Argh.

    Alya continuava paralisada, olhando para o cadáver da criança, que até poucos segundos parecia são e salvo em suas mãos. Estava se sentindo cada vez mais tonta. O homem que revelou-se ser o tio da criança estava enterrando Alya sob gritos, cheios de saliva e violência, até que ele comentou:

    — Olhem só para essa inútil! Não serve nem para proteger os próprios companheiros… — O tio da criança exaltou seu comentário em meio ao balbúrdio da multidão.

    — Isso mesmo, contenham esses criminosos! — O público vaiava a dupla; era como um coral descontrolado, sem um maestro para harmonizar aquela gritaria.

    — Alya, faça alguma coisa! — gritou Galand.

    Os transeuntes a cercavam, empurrando-a e jogando coisas em sua cabeça, que se mantinha baixa como a de uma marionete desarmada.

    Em um instante, tudo escureceu. Ela soltou um grito arrebatador, grunhindo pela noite indomável. Tão forte que fez até as lamparinas ornamentais da rua tremularem. Segurou o pescoço da primeira vítima que viu pela frente… pobre coitado. Levantou-o como um coelho assustado entre as presas de um cão. Esmagou-o entre os dentes e lançou sua carcaça sobre a multidão, derrubando os reles fracotes como pinos de boliche. Em seguida, pisoteou a cabeça do guarda que segurava Galand, antes que tivesse qualquer reação. O sangue espirrou em seus olhos, mas, ao limpá-los, deparou-se com a imagem daquele mesmo velho homem, agora reclamando sobre ela ter matado sua sobrinha.

    Tudo pareceu um sonho muito bem arquitetado, criado pelo próprio desejo inconsciente de Alya.

    — Onde… estou? — Ela parou de fitar as mãos e olhou ao redor, confusa, sem entender como havia chegado ali. Começou a andar para longe, passando pelas pessoas como se nem estivessem ali, pisando em seus pés e esbarrando em seus torsos. “Mas que lugar é esse? Quem é essa gente?”

    O homem, que antes choramingava pelo cadáver da suposta neta morta, demonstrou um sorriso repentino, abaixou a aba do chapéu e saiu do local sem mais nem menos.

    — Alya? Para onde vai? — Galand tentava chamar sua atenção, ainda neutralizado pelo guarda. “Ah não, isso não… de novo não.” Ele tentava assobiar mesmo com o peito pressionado contra o chão. Olhava para Alya, que continuava a ignorá-lo, passando entre os habitantes. — Me solta, você precisa me soltar, isso é uma emergência!

    — Você agrediu um cidadão da alta classe. Tem o direito de permanecer calado — disse o soldado, empurrando sua cabeça contra o chão com mais força.

    — Não, não, não… Alya! — “Merda, logo agora… estou sem minhas sementes”, pensou Galand, enquanto socava o chão.

    “Rounn, onde está Rounn? Argh.” Alya pôs a mão na testa devido a uma repentina dor de cabeça, como se estivesse forçando demais uma engrenagem velha a girar. “Mas quem é Rounn?”

    Ela se afastava cada vez mais de seu colega de trabalho. Incomodada com a indiferença da garota, o guarda tentou segurá-la para não fugir.

    — Você precisa responder a justiça, senhorita.

    — Não me enche, porra. — Ayla tentou socar o homem, mas Rerdram apareceu subitamente ao seu lado. Segurando seu ombro esquerdo, ele sussurrou algo em seu ouvido. O braço de Alya congelou no ar e depois caiu.

    A garota se viu naquela mesma prisão que Helara nomeara como “O Caminho de Ferro”. Mas dessa vez, tudo estava cedendo. Como em um sonho distorcido, as rochas impenetráveis que revestiam as paredes se desfaziam lentamente por aquele local vazio. Suas únicas lembranças eram a escuridão devoradora e o sangue gélido de suas vítimas, jazendo encardido sobre o chão de pedra. Além das correntes — aquelas velhas e imponentes correntes… essas, ela jamais esqueceria.

    Sua respiração estava ofegante e quente, definhando como qualquer outra coisa naquele lugar. Seu corpo estava suspenso no espaço, preso pelas correntes que lhe apertavam os pulsos. Ela ergueu vagarosamente a corrente, com os cabelos negros caindo nos olhos; estes vagavam pela sala, saudando o resto de suas últimas memórias presentes.

    — Já fazia um tempo que não ficava consciente, não é, Laurient? — Uma criatura escamosa de seis pernas comentou, enquanto devorava as paredes da prisão ao seu lado.

    — Sua… despre… — Laurient tentou falar, mas gaguejou como um idoso com uma doença neurodegenerativa.

    — O que foi? Está esquecendo das palavras? Hehehe. Em alguns meses tudo que conheceu será esquecido. Então, só haverá Alya.

    — Helara… — Sua voz bufou com ódio; o nome saiu como a baforada de um dragão em ira. Esse nome ela não esqueceria. Estava enterrado no fundo de suas memórias mais emotivas.

    — Apenas relaxe, e eu te prometo que nunca mais sentirá esse pesar em seu coração, hehe. Aliás, suas memórias são podres e têm gosto de meia suja… mas pelo pagamento, vale a pena.

    Laurient soltou um grito do fundo da alma, puxando as correntes com toda sua força física… mas não era dessa força que ela precisaria para sair dali. As correntes tremularam, e das paredes saiu poeira — mas nada adiantou.

    Fora de sua mente quase extinta, Rerdram coordenava os cidadãos absortos pela rua como um rebanho de ovelhas. O povo o escutava, mas sua figura de autoridade mais lembrava a de um lobo cinzento do que a de um pastor comedido. Sem mais nenhuma palavra:

    — Alya, está tudo bem?

    — Err… — Após o assobio, ela olhou para os lados como se estivesse perdida, mas logo recobrou o ocorrido. — Rerdram? Como chegou aqui tão rápido? — perguntou Arya.

    — Se eu realmente tivesse chegado rápido, já teria impedido vocês de fazerem besteira. Qual a situação em que se meteram agora? — coçou o rosto, respirando fundo.

    Galand suspirou de alívio ao ver Rerdram estabilizando a situação estressante que ele e Alya haviam criado.

    — Solte-o. Eu assumo daqui — disse Rerdram, lançando um olhar intimidador ao soldado que mantinha Galand imobilizado. — Voltem todos para casa, imediatamente!

    — Sim, senhor. — O homem bateu continência e soltou Galand, obedecendo cegamente às ordens.

    — Não nos diga o que fazer! Eu pago o seu salário, eu mando em você! Seu trabalho é nos servir. Prenda esses dois assassinos!

    Alguns outros transeuntes concordaram com o posicionamento do homem, que já gritava para chamar atenção de forma deliberada. Antes que o aristocrata pudesse terminar de falar, Rerdram estalou os dedos, e o guarda ao seu lado o segurou, amarrando-lhe os braços nas costas.

    — Vamos, circulando.

    — Como ousa me agredir dessa forma? Que desrespeito! Eu sou herdeiro de três gerações de conselheiros reais e patrono da guarda da cidade! A minha família financiou a muralha que protege esses miseráveis que agora se afastam como ratos! — Voltou-se para Rerdram com desprezo escancarado. — Não nos diga o que fazer, seu homem de farda. Eu pago o seu salário com os impostos da minha vinha. O seu trabalho é nos servir! Prendam esses dois assassinos! E se este homem continuar a dar ordens que não lhe cabem, que seja punido por insubordinação! Ei, guarda, está me escutando? Faça alguma coisa! — Desesperado, ele olhou ao redor, buscando apoio dos cidadãos. — Vocês todos viram! Viram como fui desrespeitado! Isso é uma afronta! Eu vou reportar isso ao conselho! Argh! Serão todos mortos, MORTOS!

    “Odeio esses tolos que não sabem o seu lugar”, Rerdram e o homem pensaram ao mesmo tempo.

    A voz daquele traste detestável, como pensava Rerdram, desapareceu aos poucos conforme se distanciava. Ainda em frente à casa que estava em chamas, Galand e Alya explicaram o ocorrido.

    — O colar envolto no pescoço do cadáver do bebê deve ser um artefato com propriedades ilusórias. Mas por que alguém desperdiçaria uma relíquia tão poderosa? Vocês viram algum suspeito?

    — Não, senhor. Não vi mais ninguém dentro da casa — respondeu Alya.

    — Não acho que tenha sido um incêndio qualquer. Vamos ter que abrir uma nova investigação.

    — Acha que pode ter alguma relação com o caso do parasita? — Galand cruzou os braços.

    — Você me deu uma ideia… precisamos conversar a sós.

    — Por que vocês sempre me excluem, hein?

    — Foi mal, Alya. É coisa do trabalho. Ordens de Helara.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota