Índice de Capítulo

    O relógio passava das 23h, como Mikael viu em seu celular. 

    — Não tenho mais tempo.

    Seu polegar percorreu o aplicativo de bloco de notas aberto, uma lista selecionada de destinos turísticos zombando dele na tela: Monte Rushmore, ArtForms Gallery, Prairie Berry Winery. Todas as coisas que um visitante normal poderia gostar. 

    — Vamos para a caçada.

    À noite, a escuridão, antes contida pelos últimos lampejos do crepúsculo, envolvia a cidade. Mikael, moldado por noites intermináveis de insônia e treinamento incansável, personificava a vigilância cautelosa da cidade.

    Seu rosto, gravado com a determinação calma de alguém que conheceu a exaustão incessante, não dava indícios de uma cobiça monstruosa que se escondia nas sombras.

    O vasto céu acima, uma tela escura salpicada de estrelas, carregava um terror único. Era um silêncio cheio de medo, um vazio que se abatia sobre todos. Era a quietude antes da tempestade, a respiração suspensa antes que a mandíbula da fera se abrisse, revelando uma variedade assustadora de dentes afiados e garras mortais, cada um brilhando com uma fome de eras passadas.

    Para Mikael e para os que estavam em vigília com ele, os Mephistos representavam uma ameaça constante e oculta. Essas criaturas eram a essência das sombras, alterando-se e fundindo-se com a escuridão ao seu redor. Eram como murmúrios noturnos, elusivos e com formas que se entrelaçavam ao caos imperceptivelmente.

    A cena urbana à frente deles parecia uma fotografia paralisada no tempo. Veículos parados criavam uma barreira desordenada na estrada. Luzes teimosas piscavam em algumas janelas, os últimos lampejos de civilização desafiando a extensão da noite. O único som que perturbava o silêncio era o eco cadenciado das botas de Mikael na calçada irregular.

    Um vislumbre de movimento capturou sua atenção. Sob um poste de luz isolado, uma mulher permanecia de guarda, envolta em um halo de luz amarela enfermiça. A mão de Mikael ergueu-se instintivamente, não para acenar, mas num gesto de calma precaução. Ele avançou com passos medidos, seus sentidos aguçados tanto para a possível ameaça quanto para um tênue sinal de conexão humana.

    — Tudo bem contigo? Deve ser insônia para você estar acordada até agora. É um pouco arriscado.

    Ela permaneceu obstinadamente virada de costas, uma estátua iluminada pela luz fraca. Mikael hesitou, enquanto o silêncio se estendia entre eles. Então, com um movimento lento e compassado, ele se moveu para frente de forma a encará-la completamente.

    — Ser ignorado desse jeito dói bastante.

    Ele notou uma sombra caindo sobre seu rosto – uma cortina de seu próprio cabelo, obscurecendo sua expressão. Inclinou-se o corpo ligeiramente, permitindo que a pouca iluminação incidisse diretamente sobre o emblema. Era o distintivo de Agente de Campo da Classe Veterano.

    — Sou da Unidade Expedicionária de Caça. — começou, com a voz baixa e comedida. — Tô aqui para encontrar uma solução. Qualquer informação que você possa me dar sobre o que tenha visto será de grande ajuda. 

    Mas este encontro, como tantos outros, não produziu respostas concretas. A resposta da mulher, quando veio, foi um sussurro arrepiante:

    — O céu e a terra logo estarão envoltos em trevas, e a lua será tingida de sangue.

    A decepção o consumiu. Esta não foi a primeira vez que suas perguntas cuidadosamente formuladas foram recebidas com pronunciamentos tão confusos. A cidade parecia estar repleta desses indivíduos, agarrados a uma esperança que transcendia a lógica.

    — Outro que acredita nisso. — murmurou, um toque de frustração colorindo sua voz. 

    Uma aura misteriosa envolvia o caminho de Mikael pela rua. Escassos segredos pertenciam à residência semi-sombreada diante dele.

    Sombras rodopiantes ondulavam nas paredes, lançadas pela luz trêmula que entrava pela porta entreaberta, tecendo padrões que aludiam a um acontecimento antigo e negligenciado.

    Uma suave brisa noturna soprava pela entrada, trazendo um leve toque de lástima, como se a casa estivesse respirando em um silêncio reflexivo. Mikael estava ciente do ambiente carregado, um fascínio sombrio que despertou sua curiosidade profissional.

    — Tem coisa escondida por aqui.

    As manchas de sangue no umbral sugeriam uma entrada tumultuada do exterior para o interior.

    Mesmo intrigado, Mikael adentrou o local, embora a escuridão escondesse os detalhes.

    Ele avançou com cautela, alerta a qualquer surpresa, atento ao ranger das tábuas sob seus pés enquanto vasculhava o local.

    — E se tiver algo escondido, vai se arrepender de ter me escolhido como visitante.

    A luz fraca da lua não era suficiente para distinguir todos os pormenores, então ele procurou um interruptor e, com um pouco de sorte, encontrou-o na sala de estar, banhando o espaço com luz artificial.

    O lugar estava uma bagunça, com móveis revirados e cobertos de teias de aranha. Através da sujeira das janelas, um facho luminoso do luar entrava, lançando um brilho fantasmagórico sobre o piso coberto de poeira. Mas foi o cheiro que mais agrediu seus sentidos. Era uma mistura de elementos: madeira mofada e apodrecida, um odor que contraía seu estômago e uma doçura fraca a nauseante que sugeria algo muito pior. Mikael franziu a testa, murmurando palavras em um grunhido de nojo:

    — Cacete, isso tá insuportável.

    Uma faixa carmesim manchava o chão com um respingo mórbido de tinta contra o pano de fundo do abandono. Serpenteava pelo grande hall de entrada, conduzindo seu olhar para a boca escancarada de uma porta dupla na extremidade oposta. 

    Andou em direção. Seus olhos, já ardendo por causa das partículas de poeira que giravam no ar estagnado, dispararam em direção à boca aberta da porta do local. A escuridão se acumulava, espessa e impenetrável, segredos promissores que era melhor deixar enterrados. 

    Mikael alcançou o interruptor de luz que se projetava da parede ao lado da porta. O metal estava frio e escorregadio devido à sujeira. Quando o clique do interruptor ecoou no silêncio de uma tumba, um brilho severo inundou tudo em volta, cegando-o momentaneamente. Após sua visão clarear, notou dois corpos esparramados no chão num quadro grotesco. 

    As moscas, encorajadas pelo súbito influxo de luz, banqueteavam-se com abandono mórbido em sua carne exposta, deixando para trás uma rede de rastros negros e brilhantes. 

    — Ah… Parece que a festa aqui foi para poucos convidados.

    Coçou a cabeça, tentando compreender a carnificina diante de seus olhos.

    — Então, um Mephisto está por trás disso, certo? Isso parece bastante plausível. A ideia de que as vítimas chegaram a esse ponto por conta própria não me parece correta. — Balançou a cabeça, como se estivesse processando a informação. Então, de repente, algo o intrigou e ele se deteve: — Não… espere um pouco.

    Mikael se aproximou dos corpos caídos no chão e agachou-se, examinando as feridas que se espalhavam por cada parte deles.

    — Esses cortes são profundos. Precisos. Não são as garras desajeitadas de um Mephisto. Este atacante… — Parou, franzindo a testa. Uma inquietação tomou conta de seu rosto. — … era humano. 

    Ele olhou para os membros superiores. Seus olhos permaneceram nos padrões específicos das feridas.

    — E não qualquer humano. — Gesticulou com as mãos, traçando os caminhos dos ferimentos nos braços. — Esses cortes são deliberados. Planejados. Existe um método para essa loucura. Alguém aqui sabia exatamente o que estava fazendo.

    Mikael se levantou. O ar casual de antes desapareceu, dando lugar a uma definição sombria. A presença humana nesse massacre havia mudado completamente a situação. Não se tratava mais de um ataque aleatório de criaturas; era um ato deliberado de crueldade. E Mikael, sentindo o peso dessa nova realidade, percebeu que estava diante de um quebra-cabeça muito mais complexo.

    — E o que mais me intriga é o motivo. Mephistos e humanos geralmente não têm muitos desentendimentos desse tipo. — disse, coçando o queixo — O caso aqui é mais complicado do que eu imaginei.

    Olhando-o, era um homem e uma mulher, e não pôde deixar de sentir a ironia cruel que permeava a cena. 

    — Parece que o até que a morte nos separe realmente levou esse casal a sério.

    Mikael empurrou ligeiramente os pés, movendo-os para o lado. Em seguida, identificou um símbolo misterioso, como se estivesse exibindo algo que fazia parte de um ritual.

    — Há mais para ver.

    Ele se agachou para inspecioná-lo melhor: precisamente desenhado, formava um círculo com padrões de linhas intrincados e detalhados, destacando uma figura geométrica central que simbolizava uma entidade.

    — Usando o sangue das vítimas… É um artifício tão banal.

    Ele franzia a testa, aprofundando-se na análise do símbolo. Com a ponta dos dedos, seguia os padrões, absorvendo a essência do desenho. Seus olhos examinavam cada centímetro, demonstrando uma concentração intensa.

    — Hmm, entendi… É realmente complicado, né? Humanos se unindo à Mephistos e usando seus corpos como oferenda. Isso vai além da loucura, é uma traição à nossa própria humanidade.

    Ele começou a conectar os pontos, analisando as possíveis implicações da simbologia. Quanto mais se aproximava da verdade, mais sua apreensão aumentava. Cada contradição e cada resposta evasiva intensificavam seu desejo de entender completamente.

    — Normalmente, seus truques capturam a alma da vítima. Estes dois devem ter sido os primeiros a ser sacrificados. — Ele esfregou as têmporas com os dedos. — Não consigo compreender como alguém pode se degradar tanto a ponto de fazer alianças com essas coisas e sacrificar vidas humana. É um crime imperdoável.

    Ele tirou o celular do bolso e acessou o bloco de notas, nas anotações dos lugares que desejava visitar.

    — Vamos descobrir se o mesmo ocorre aqui.

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